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A ideia de que os seres humanos são pessoas não-corporais habitando em corpos não-pessoais nunca desaparece. Embora as principais correntes do cristianismo e do judaísmo há muito tempo a tenham rejeitado, aquilo que às vezes é descrito como “dualismo corpo-ego” está de volta, quer vingança, e seus seguidores são legião. Seja nos tribunais, nos campi, ou nas mesas de salas de reunião, ele subjaz e molda o individualismo expressivo e o liberalismo social que estão em ascensão.

A rejeição cristã do dualismo corpo-ego foi uma resposta ao desafio à ortodoxia feito por aquilo que ficou conhecido como “Gnosticismo”. O gnosticismo é composto por uma variedade de ideologias, algumas ascéticas, e outras completamente o oposto disso. O que eles tinham em comum era a compreensão do ser humano – uma antropologia – que nitidamente divide o material ou corporal, por um lado, e o espiritual, mental ou afetivo, por outro. Para os gnósticos, era o imaterial, o mental e o afetivo que realmente importava. Aplicado à pessoa humana, isto significa que o material ou corporal é inferior, e se não for uma prisão da qual se deve escapar, certamente é um mero instrumento a ser manipulado para servir os objetivos da “pessoa”, entendida como o espírito, mente ou psique. O eu é uma substância espiritual ou mental; o corpo, apenas o seu veículo material. Você e eu, como pessoas, somos identificados inteiramente pelo espírito, mente ou psique, e de nenhuma forma (ou pelo menos no sentido mais atenuado) com o corpo que habitamos (ou ao qual estamos de alguma forma “associados”) e usamos.

Contra tal dualismo, a posição antignóstica afirma uma visão da pessoa humana como uma unidade dinâmica: um corpo pessoal e um eu corporal. Esta visão rival é encontrada em toda as Escrituras Hebraicas e no ensino cristão. Isso não é sugerir que o ensinamento cristão descarta a visão de que o indivíduo seja numericamente idêntico à sua alma imaterial. Os pensadores cristãos contemporâneos estão divididos quanto a se a alma é numericamente distinta da pessoa humana ou se é apenas a pessoa de uma forma radicalmente mutilada. Eles concordam, no entanto, sobre o ponto essencial, a saber, de que o corpo não é um mero instrumento extrínseco da pessoa humana (ou o “eu”), mas é uma parte essencial da realidade pessoal do ser humano. Cristo ressuscitou corporalmente.

Aristóteles, que rompeu com o seu professor Platão neste ponto, defende uma forma de “hilomorfismo”, conforme ele veio a ser chamado. Sem negar a existência da alma, ele afirma que a pessoa humana é um ser material (embora não apenas material). Nós não ocupamos ou habitamos os nossos corpos. O corpo vivo, longe de ser nosso veículo ou instrumento externo, faz parte da nossa realidade pessoal. Se ele não pode existir separado da alma, ele não é inferior. Ele faz parte de nossa dignidade pessoal e é o todo do qual nossa alma é a forma substancial. A ideia da alma como a forma substancial do corpo é a alternativa ortodoxa do cristianismo para a concepção herética da alma como um “fantasma na máquina”. Pode-se separar o corpo vivo da alma em teoria, mas não de fato; nós somos compósitos corpo-alma.

Assim, somos animais – animais racionais, mais precisamente, mas não puros espíritos ou intelectos. Nossa identidade pessoal através do tempo consiste na resistência dos organismos animais os quais nós somos. A partir disso segue-se uma afirmação crucial: a pessoa humana vem a ser quando o organismo humano também vem a ser, e sobrevive – como uma pessoa – pelo menos até o momento que o organismo deixa de ser.

Nós, no entanto, não somos animais brutos. Somos animais com uma natureza racional – organizada desde o princípio para o pensamento conceitual, e para a deliberação prática, julgamento e escolha. Essas habilidades intelectuais não são redutíveis ao puramente material. As criaturas que os possuem são capazes, com maturidade e em circunstâncias favoráveis, de chegar a ideias inteligíveis (e não apenas sensíveis) contendo opções de ação e de responder a essas ideias com escolhas que não são determinadas por eventos antecedentes. Nós não agimos de forma arbitrária ou aleatória, mas escolhemos com base em juízos de valor que nos inclinam em direção a diferentes opções sem qualquer obrigação. Não há contradição, na visão hilomórfica, entre a nossa animalidade e a nossa racionalidade.

Se tomarmos a visão gnóstica, por outro lado, então os seres humanos – os membros vivos da espécie humana – não são necessariamente pessoas e alguns seres humanos são não-pessoas. Aqueles que estão em estágios embrionários, fetais e no início da infância ainda não são pessoas. Aqueles que perderam a capacidade do exercício de certas habilidades mentais – vítimas de demências avançadas, em estado de coma por longos períodos ou minimamente conscientes – não são mais pessoas. E aqueles com deficiências cognitivas congênitas graves não são, nunca foram e nunca serão pessoas.

As implicações morais são claras. Temos razão para mantermos inviolável e proteger contra danos a vida pessoal; em contraste, podemos usar outras criaturas para nossos propósitos de forma legítima. Assim, alguém que aceite uma antropologia gnóstica, que separa a pessoa e o corpo da maneira que descrevi, achará fácil enxergar aqueles com capacidades mentais subdesenvolvidas, defeituosas ou diminuídas como não-pessoas. Eles acharão mais fácil justificar o aborto, o infanticídio, a eutanásia no caso de comprometimento cognitivo, e a produção, uso e destruição de embriões humanos para pesquisa biomédica.

Da mesma forma, tal antropologia subscreve à ideia do liberalismo social que rejeita a ética conjugal e sexual tradicionais e a visão do casamento como uma união entre macho e fêmea. Essa visão não faz sentido se o corpo for um mero instrumento da pessoa, a ser usado para satisfazer finalidades subjetivas ou produzir sentimentos desejáveis ​​na pessoa-como-sujeito-consciente. Se nós não somos os nossos corpos, o casamento não pode essencialmente envolver a união em uma só carne de um homem e de uma mulher, conforme judeus, cristãos e a ética clássica sustentam. Afinal, se o corpo não faz parte da realidade pessoal do ser humano, não pode haver nada moralmente ou humanamente importante na união “meramente biológica”, com exceção de seus efeitos psicológicos contingentes.

Pressupor um dualismo corpo-ego torna mais difícil compreender porque o casamento é um bem humano natural (em um sentido pré-político e até mesmo pré-religioso) com sua própria estrutura objetiva. Se a sexualidade é apenas um meio para nossos fins subjetivos, ela não seria o que quer que desejarmos que ela seja? Como ela poderia ser orientada para a procriação, ou exigir uma exclusividade permanente, por sua própria natureza?

Nós só podemos dar sentido a esta concepção de casamento como uma só carne se entendermos o corpo como verdadeiramente pessoal. Assim, podemos enxergar a união biológica entre um homem e uma mulher de forma distinta como uma união de pessoas – atingida, assim como a união biológica de partes dentro de uma pessoa, por meio da coordenação para um único propósito corporal do todo. Para o casal, este propósito é a procriação. Sua orientação para a vida familiar tem, portanto, um significado não “meramente biológico”, mas também humano e moral. Os cônjuges, em sua união corporal, renovam a união todo-abrangente que é o seu casamento. Esta visão, por sua vez, nos ajuda a dar sentido ao desejo natural de cuidar dos próprios filhos e à importância normativa de se comprometer a fazê-lo, sempre que possível, mesmo diante de custos pessoais. (A mãe deseja voltar para casa com o bebê que ela efetivamente deu à luz, e não com um atribuído a ela aleatoriamente a partir de uma reserva de bebês nascidos durante a sua estadia no centro da maternidade.) Esse instinto reforça uma ética sexual sólida, que especifica as exigências do amor conjugal e parental fiel, uma ética que parece inútil e cruel para os liberais sociais contemporâneos.

Para eles, afinal de contas, o que importa é o que se passa na mente ou consciência, não no corpo (ou no resto do corpo). A verdadeira unidade pessoal, na medida em que é possível a todos, é a unidade no nível afetivo, não no biológico. “Casamento” tende a ser visto, então, como uma instituição socialmente construída que existe para facilitar laços românticos desejáveis ​​e para proteger e promover os vários sentimentos e interesses das pessoas que entram em tais vínculos. Não se trata de uma parceria conjugal plena, mas sim de uma forma de companheirismo sexual-romântico ou parceria doméstica. Procriação e filhos são relacionados a ele apenas de forma contingente. Não há qualquer noção, mesmo indireta, de que o casamento seja uma parceria de procriação ou uma parceria cuja estrutura e normas são moldadas por uma orientação inerente à nossa natureza sexual para procriação e educação dos filhos. A concepção conjugal do casamento como uma união do tipo que é naturalmente realizada por meio dos cônjuges procriando e educando os filhos juntos chega aos ouvidos do neo-Gnóstico como algo ininteligível e até mesmo bizarro.

De fato, da forma como o liberalismo social contemporâneo apresenta o assunto, o sexo em si não é um aspecto inerente ao casamento ou parte de seu significado; a ideia da consumação marital por meio do ato sexual também parece bizarra. Assim como, para os liberais sociais, duas (ou mais) pessoas podem ter relações sexuais perfeitamente legítimas e valorosas sem serem casadas ​​entre si, da mesma forma, duas (ou mais) pessoas podem ter um casamento perfeitamente válido e completo sem sexo. É tudo uma questão de preferências subjetivas dos parceiros. O ato sexual consensual é valioso apenas na medida em que permite que os parceiros expressem os sentimentos que desejam – como afeto ou, até mesmo, dominação ou submissão. Mas se eles acabam não experimentando esse desejo, o sexo é inútil até mesmo dentro do casamento. Trata-se de algo meramente incidental e, portanto, opcional, assim como possuir um carro ou ter contas bancárias conjuntas ou separadas. Cada um com o seu gosto. A essência do casamento é companheirismo, e não o sexo, e muito menos a procriação.

E tudo isso explica, é claro, por que a ética liberal contemporânea apoia o casamento homossexual. Ela até mesmo sugere que o casamento pode existir entre três ou mais indivíduos em grupos sexuais (ou não-sexuais) poliamorosos. Uma vez que o casamento não depende de biologia e se distingue pela sua intensidade e qualidade emocional – a verdadeira “pessoa” é o eu consciente e sensível – os “casamentos” entre o mesmo sexo e poliamorosos são possíveis e valorosos da mesma forma básica que a união conjugal entre homem e mulher. Afinal, os parceiros nestes outros grupos também podem sentir afeto uns pelo outros e até mesmo acreditam que a qualidade de sua parceria romântica será reforçada pelo ato sexual mutuamente consentido (ou não, conforme o caso). Se isso é tudo de que se trata o casamento, então negar a eles o estado de casados significa negar “a igualdade marital”.

E então há o transexualismo e o transgenerismo. Se somos compósitos corpo-mente (ou corpo-alma), e não apenas mentes (ou almas) que habitam corpos materiais, então o respeito pela pessoa requer também o respeito para com o corpo, o que exclui a mutilação e outros ataques diretos à saúde humana. Isso significa que, exceto em casos extraordinariamente raros de deformidade congênita, levando ao extremo da indeterminação, nossa masculinidade ou feminilidade é discernível a partir de nossos corpos. O sexo é constituído por nossa organização biológica básica com respeito à função reprodutiva; é uma parte inerente do que e quem somos. Mudar de sexo é uma impossibilidade metafísica, uma vez que é uma impossibilidade biológica. Ou quase – pode se tornar tecnologicamente possível mudar o sexo de um indivíduo humano em um estágio muito inicial do desenvolvimento embrionário, seja alterando o genoma ou, no caso de um embrião masculino, através da indução de uma, digamos, insensibilidade androgênica, cedo o suficiente para que todo desenvolvimento sexual se dê conforme o de uma mulher. Claro, isso seria algo imoral, uma vez que implicaria uma intervenção corporal radical sem consentimento e com graves riscos.

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Assim, mudanças de sexo são biologicamente impossíveis sempre que se observe que a mudança de todas as capacidades sexuais da pessoa torne necessária a reversão de vários órgãos já diferenciados e outras características sexuais, de forma que a pessoa acabe não mais com o mesmo organismo. (Eu suspeito que esse ponto seja alcançado, pelo menos, bem cedo no útero.) Conforme Paul McHugh argumenta, desejar mudar de sexo é uma patologia, um desejo de deixar de ser a si mesmo e ser outra pessoa. Não é querer o próprio bem, mas querer a não-existência de quem se é.

Por outro lado, na visão liberal contemporânea, nenhuma dimensão de nossa identidade pessoal é realmente determinada biologicamente. Se você se sente como uma mulher presa no corpo de um homem, então você é apenas isso: uma mulher (“transgênera”). E você pode legitimamente se descrever como uma mulher, apesar do fato de que você é homem biologicamente, e tomar medidas – mesmo ao ponto de amputações e tratamentos hormonais – para conseguir uma aparência feminina, especialmente quando você acha que isso lhe permitirá se “sentir” mais totalmente uma mulher.

Mesmo essa forma de colocar a questão pode ir além do que está sendo dito. O que um indivíduo transgênero “macho-fêmea” pré-operação está dizendo quando afirma que é “realmente uma mulher” e que deseja uma cirurgia para confirmar esse fato? Ele não está dizendo que seu sexo é feminino; isso é obviamente falso. Nem ele está dizendo que seu gênero é “mulher” ou “feminino”, mesmo que admitamos que o gênero é parcial ou totalmente uma questão de autoimagem e presença social. É evidentemente falso dizer que este homem biológico  é percebido como uma mulher. Ele quer ser percebido desta forma. No entanto, a alegação pré-operação de que ele é “realmente uma mulher” é a premissa do seu apelo para a cirurgia. Assim, essa alegação é a priori. Ao que, então, ela se refere? A resposta não pode ser o seu senso interior. Afinal, isso teria que ser um senso interior de algo – mas não parece haver “algo” para que ele seja um senso de.

No entanto, para o neognóstico, o corpo é usado ao bel-prazer do eu consciente, ao qual está sujeito, e assim as mutilações e outros procedimentos não representam um problema moral em si. Nem seria contrário à ética médica realizá-los – de fato, pode ser antiético, para um cirurgião qualificado, recusar-se a realizá-los. Ao mesmo tempo, o neognóstico insiste que as mudanças cirúrgicas e até mesmo puramente cosméticas não são necessárias para que um homem seja uma mulher (ou que uma mulher seja um homem). O corpo e sua aparência não importam, exceto instrumentalmente. Desde que seu corpo não seja o seu verdadeiro eu, o seu sexo (biológico) e até mesmo a sua aparência não precisam se alinhar com a sua “identidade de gênero”. Você tem o direito, conforme nos dizem, de se apresentar conforme o que você sente que é.

E uma vez que sentimentos, incluindo sentimentos sobre o que ou quem você é, caem em um espectro de possibilidades e são líquidos, você não está limitado a apenas duas possibilidades na questão da identidade de gênero (você ter um gênero “não-conforme”), e nem está permanentemente restrito a qualquer gênero em particular. Há toda a lista de 56, ou 58, ou seja lá que número, do Facebook, e você também pode encontrar o seu gênero mudando ao longo do tempo ou abruptamente. Pode até ser possível mudar de gênero por atos de vontade. Você pode mudar de gênero temporariamente, por exemplo, por razões políticas ou por uma questão de solidariedade com os outros. Claro, a maioria dessas observações sobre identidade de gênero pode se estender para o conceito de “orientação sexual”, e para a prática de se autoidentificar em termos de desejo sexual – um conceito e prática bem servido por uma visão de ser humano como uma pessoa não-corporal habitando em um corpo não-pessoal.

A posição antidualista, historicamente abraçada pelos judeus e pelos cristãos (Orientais e Ocidentais, protestantes e católicos), foi vigorosamente rearticulada pelo Papa Francisco:

A aceitação de nossos corpos como um dom de Deus é vital para acolhermos e aceitarmos o mundo inteiro como um dom do Pai e nossa casa comum, ao passo que pensar que temos poder absoluto sobre nossos próprios corpos implica, muitas vezes de forma sutil, pensar que desfrutamos de poder absoluto sobre a criação. Aprender a aceitar nosso corpo, cuidar dele e respeitar o seu significado mais pleno é um elemento essencial de qualquer ecologia humana genuína. Além disso, valorizar o próprio corpo em sua feminilidade ou masculinidade é algo necessário para que sejamos capazes de nos reconhecer em um encontro com alguém que é diferente. Dessa forma, podemos aceitar alegremente os dons específicos de outro homem ou mulher, obras de Deus, o Criador, e encontrar enriquecimento mútuo. Não é uma atitude saudável buscar “anular a diferença sexual uma vez que já não sabe como enfrentá-la.”

O papa, que recentemente insultou os partidários do liberalismo social ao denunciar a prática de ensinar crianças que o sexo é algo escolhido em vez de dado biologicamente, não está filosofando de forma ociosa ou puramente especulativa. Ele está respondendo ao desafio específico à ortodoxia cristã representado pelo renascimento moderno de uma antropologia filosófica contra a qual a Igreja já lutou, em suas batalhas iniciais decisivas contra o gnosticismo. Ele sabe que essa antropologia agora é, ela mesma, um tipo de ortodoxia – a ortodoxia do tipo particular de secularismo liberal o qual, seguindo Robert Bellah, tenho me referido como “individualismo expressivo”, e que assumiu a dominância entre as elites culturais ocidentais. Ela fornece o fundamento metafísico das práticas sociais e desafios ideológicos contra a qual os judeus ortodoxos e os cristãos fiéis (bem como muitos muçulmanos e outros) encontram-se se pronunciando hoje: aborto, infanticídio, eutanásia, libertinagem sexual, a redefinição do casamento e a ideologia de gênero.

Estaríamos nós corretos em resistir? Poderia a compreensão dualista da pessoa humana estar certa o tempo todo? Talvez a pessoa não seja o corpo, mas apenas o habita e usa-o como um instrumento. Talvez a pessoa real seja o ego consciente e sensível, a psique, e o corpo seja simplesmente material, a máquina na qual o fantasma reside. Pensar assim, no entanto, é ignorar o fato de que toda a nossa experiência de nós mesmos é a experiência de sermos atores unificados. Nada nos dá razão para supor que esta experiência seja ilusória. Mesmo se o dualismo corpo-ego fosse consistente – o que eu duvido – nós não teríamos qualquer outra razão a mais para ela do que para supor que estamos agora sonhando ou presos na Matrix.

E tem mais. Considere a mais comum das experiências humanas: sentir (por exemplo, ouvir ou ver). Sentir é, obviamente, uma ação corporal realizada por um ser vivo. O agente que realiza um ato de sentir é uma criatura corporal, um animal. Mas é claro que, nos seres humanos, como animais racionais, é um e o mesmo agente que tanto sente como também entende ou procura compreender (pela atividade mental) o que é que ele ou ela está sentindo. O agente que executa o ato de compreensão, portanto, é uma entidade física, e não uma substância não-corporal utilizando o corpo como algum tipo de dispositivo de prótese. Se assim não fosse, ele nunca seria capaz de explicar a comunicação ou conexão entre aquilo que faz a sensação e a outra coisa separada fazendo a compreensão.

Talvez para vermos o ponto mais claramente, deixe-me convidá-lo a considerar o que você está fazendo agora. Você está percebendo – vendo – palavras em uma página ou tela. E você não está apenas percebendo, no sentido de um ato de receber impressões (um tipo de dado) através da visão; você está entendendo o que está percebendo: Em primeiro lugar, você está entendendo que o que você está vendo são palavras (e não, digamos, números, ou manchas, ou qualquer outra coisa) e, segundo, você está entendendo o que essas palavras significam (como palavras individuais e combinadas em frases). Agora, o que, exatamente, é a entidade – ou seja, você – que está, simultaneamente, fazendo a percepção e o entendimento? E, indo mais diretamente ao ponto, trata-se de uma entidade ou duas? A percepção é de fato um ato corporal, mas não seria o mesmo ator (ou seja, você, como um ser unificado) que está vendo as palavras e entendendo que eles são palavras e o que elas significam? Não faria sentido supor que o corpo esteja fazendo a percepção e a mente, considerada como uma substância ontologicamente distinta e separada, esteja fazendo a compreensão. De fato, isso geraria uma regressão infinita de explicações na tentativa de entender a relação entre as substâncias separadas. Nós não seríamos capazes de dar sentido à ideia de que você esteja fazendo o entendimento, mas que um instrumento que você está usando, e não você mesmo como um agente unificado, esteja fazendo a percepção.

Ou considere um caso simples de predicação e pensamento. Você se aproxima de sua mesa e julga que aquilo que está sobre ela – aquela coisa ali – é uma revista (digamos, por exemplo, uma edição de First Things). Trata-se de um único juízo e ambas as partes dele (sujeito e predicado) devem ter um único agente: um ser que realiza tanto a visão como o pensamento, que tanto  a coisa particular e concreta como entende-a, aplicando um conceito abstrato (revista). Como poderia ser diferente? Como poderia um ser sustentar ambas as partes juntas em um único julgamento – a imagem sensorial e o conceito abstrato – se não estivesse exercendo ambas as habilidades sensoriais e intelectuais?

Além disso, o agente que percebe o particular – aquela coisa ali – deve ser um animal, um corpo com órgãos de percepção. E a predicação que ocorre com a percepção é um ato pessoal; o agente que aplica um conceito universal (revista) deve ser uma pessoa. (Uma criatura não-racional, como um cão, pode perceber, mas devido à falta da racionalidade do tipo que possibilita a formação de conceitos universais, ele não iria entender o que está percebendo como um caso particular de um conceito universal.) Segue-se que o sujeito que realiza o ato de julgamento – aquela coisa ali é uma revista – é um ser, pessoal e animal. Não somos duas entidades separadas. Também não pode ser a “pessoa” apenas uma etapa na vida de um animal humano. Afinal, se assim fosse, uma diferença categórica no status moral (pessoa versus não-pessoa) se basearia em uma mera diferença de grau (em vez de uma diferença no tipo de coisa que o ser é), o que é absurdo. Somos, em cada momento da nossa existência como seres humanos, seres corporais e corpos pessoais.

No domínio do pensamento e da prática moral, há poucos projetos mais urgentes do que o de recuperar a visão do senso comum de que pessoas humanas são realmente unidades dinâmicas, criaturas cujos corpos são parte do próprio eu – e não instrumentos extrínsecos do mesmo. O liberalismo social contemporâneo repousa sobre um erro, o erro trágico por trás de tantos esforços para justificar – e até mesmo se imunizar de críticas – atos morais e práticas que são, na verdade, contrárias à nossa profunda, inerente e igual dignidade.

Traduzido por Fernando Pasquini Santos e revisado por Jonathan Silveira.

Texto original: Gnostic Liberalism. First Things.

Robert P. George é professor de Jurisprudência e diretor do Programa de James Madison em Ideais Americanos e Instituições na Universidade de Princeton.

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