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Foto de Rod Long na Unsplash

O evangelho

A passagem da Bíblia que é a explicação mais clara e completa do evangelho é Romanos 3.19-26. Um ministro amigo meu chama essa passagem de “o cerne do evangelho”. Assim, para aprendermos a pregar o evangelho a nós todos os dias e aprender a viver de acordo com ele, precisamos entender Romanos 3.19-26. Para auxiliar no nosso exame dessa passagem, citarei a totalidade dela:

Sabemos que tudo o que a lei diz, ela diz àqueles que estão debaixo dela, para que toda boca se cale e todo o mundo esteja sob o juízo de Deus. Portanto, ninguém será declarado justo diante dele obedecendo à lei, pois é mediante a lei que nos tornamos conscientes do pecado.

Mas agora se manifestou uma justiça que provém de Deus, independente da lei, da qual testemunham a Lei e os Profetas. Essa justiça de Deus vem mediante a fé, em Jesus Cristo, para todos os que creem. Não há distinção, pois todos pecaram e estão destituídos da glória de Deus, sendo justificados gratuitamente por sua graça, por meio da redenção que há em Cristo Jesus. Deus o ofereceu como sacrifício de expiação, mediante a fé no seu sangue. Ele o fez para demonstrar a sua justiça, pois em sua tolerância havia deixado impunes os pecados anteriormente cometidos — ele fez isso para demonstrar a sua justiça no tempo presente, a fim de ser justo e o único que justifica aqueles que têm fé em Jesus.

Em um exame superficial dessa afirmação do evangelho, somos capazes de perceber sete verdades que precisamos entender de modo claro.

Ninguém será declarado justo diante de Deus obedecendo à lei (v. 19-21)

A palavra justo significa conformidade exata e perfeita à lei de Deus. Meu uso da expressão a lei de Deus não é uma referência específica à lei dada à nação de Israel por meio de Moisés. Antes, estou usando o conceito no sentido mais geral da expressão escrita da natureza de Deus e da regra da obediência que ele exige de todos os seres humanos. Aqui estão incluídas todas as ordens éticas espalhadas por toda a Bíblia.

O padrão de obediência exigido pela lei é a perfeição absoluta, pois Tiago 2.10 diz: “Pois quem obedece toda a Lei, mas tropeça em apenas um ponto, torna-se culpado de quebrá-la inteiramente”. O apóstolo Paulo disse essencialmente a mesma coisa: “Todos os que se baseiam na obediência da lei estão debaixo de maldição, pois está escrito: ‘Maldito todo aquele que não persiste em praticar todas as coisas escritas no livro da Lei’” (Gl 3.10).

Apenas uma obediência perfeita é aceitável para Deus. Há muitos anos, o sabão Ivory tinha um slogan, que traduzido seria mais ou menos assim: “99,44% puro”. Ao que tudo indica, isso é um feito impressionante para um sabão, mas não é bom o suficiente para Deus. Somente 100% é aceitável. No entanto, a pessoa comum por aí, se pensar sobre essa questão, terá certeza de que Deus a aceitará por ser de modo geral um tipo decente de pessoa.

Como cristãos, sabemos que as coisas não são bem assim. Reconhecemos sem nenhuma dificuldade que é totalmente impossível com nossa própria obediência obtermos uma justiça que é suficiente para a salvação. Mas, então, nós, cristãos, agimos como se pudéssemos conduzir uma vida aceitável a Deus. Pense nos cenários de dia bom ou dia ruim que descrevi no capítulo 1. Mais de 80% das pessoas a quem perguntei no contexto de um grupo indicam que estariam mais certas da bênção de Deus após um dia “bom”. No entanto, nenhuma dessas pessoas afirmaria obedecer 100%. Nenhuma delas gostaria de que sua esperança da vida eterna dependesse do seu desempenho no melhor dia de todos. No entanto, no nosso relacionamento cotidiano com Deus, a maioria de nós pensa do mesmo modo que descrentes que acham que vão para o céu por terem sido bons o suficiente. Para vivermos pela graça, precisamos nos livrar dessa forma de pensar.

Há uma justiça que provém de Deus independentemente da lei (v. 21)

Porque não conseguimos obter uma justiça suficiente por conta própria, Deus a proveu a nós. Essa justiça que provém de Deus é nada menos do que a justiça perfeita de Jesus Cristo, que, por meio da sua vida sem pecado e sua morte em obediência à vontade do Pai, cumpriu de modo perfeito a lei de Deus. Isto é, a justiça que é uma dádiva de Deus é uma justiça real, concretizada em um mundo real, por uma pessoa real, o Senhor Jesus Cristo. Não é nada menos do que a conformidade perfeita à lei de Deus durante 33 anos do Filho de Deus, que se tornou ser humano e teve uma vida de obediência perfeita.

A justiça de Jesus Cristo é uma verdade histórica tanto quanto é a realidade do pecado, e o livro de Romanos estabelece um contraste entre as duas coisas; isto é, o pecado de Adão contra a justiça de Cristo (veja Rm 5.12-19). O teólogo escocês do século 19 George Smeaton escreveu: “[O apóstolo Paulo] exibe as duas grandes contrapartes do pecado e da justiça como realidades equivalentes — uma sendo a ruína do mundo, a outra sendo sua restauração. Tanto uma quanto a outra são fatos completos. Eles são os únicos dois grandes fatos na história mundial e se opõem um ao outro”.[1]

É importante percebermos que nosso Senhor Jesus Cristo cumpriu de modo perfeito a lei de Deus, tanto nas suas exigências quanto na sua penalidade. Ele efetuou o que Adão não efetuou — uma obediência perfeita à lei de Deus. Então, com sua morte, ele pagou completamente a pena de uma lei transgredida. Assim, da perspectiva da obediência à lei e do pagamento da pena pela transgressão da lei, ele cumpriu de modo perfeito a lei de Deus.

Portanto, quando Deus nos justifica, ou nos declara justos, ele não cria uma espécie de ficção legal, chamando de justa uma pessoa que não é. Antes, ele nos declara justos com base na justiça real e concretizada de Jesus Cristo, que é imputada ou creditada a nós pela fé.

Um outro escocês, Robert Haldane (1764-1842), autor de um comentário magistral de Romanos, escreveu estas palavras sobre a justiça de Cristo: “É a essa justiça que o olho do cristão sempre deve se voltar; sobre essa justiça, ele deve repousar; sobre essa justiça, ele deve viver; sobre essa justiça, ele deve morrer; nessa justiça, ele deve aparecer diante do trono do juízo; nessa justiça, ele deve se apresentar para sempre na presença de um Deus justo”.[2]

A justiça de Jesus Cristo é imputada ou creditada a nós para sempre. Desde o dia em que cremos em Cristo como nosso Salvador até a eternidade, estamos diante de Deus revestidos da justiça de Jesus Cristo. O profeta Isaías falou sobre essa justiça quando escreveu:

É grande o meu prazer no Senhor;

regozija-se a minha alma em meu Deus.

Pois ele me vestiu com as vestes da salvação

e sobre mim pôs o manto da justiça,

qual noivo que adorna a cabeça como um sacerdote,

qual noiva que se enfeita com joias (Is 61.10).

Essa condição da justiça de Cristo nunca é afetada em nenhum grau pelo nosso desempenho de um dia bom ou dia ruim. No entanto, sem aprendermos a viver diariamente pela fé na (isto é, pela dependência da) sua justiça, nossa percepção da nossa condição diante de Deus mudará de acordo com nosso desempenho bom ou ruim.

A justiça que provém de Deus é recebida pela fé em Jesus Cristo (v. 22)

A fé é a mão que recebe a justiça de Cristo. A própria fé não tem nenhum mérito; aliás, sua própria natureza é de autoesvaziamento. Ela envolve nossa renúncia completa de qualquer confiança em nossa própria justiça e uma dependência completa da justiça perfeita e morte de Jesus Cristo.

Esse aspecto duplo da fé — renúncia e dependência — recebe uma demonstração vívida no treinamento para evangelismo fornecido pelo Evangelism Explosion [Explosão do evangelismo]. A pessoa que apresenta o evangelho a um descrente é instruída a se referir à cadeira em que está sentada como representando a dependência em sua própria bondade para ser salva. Uma cadeira adjacente e vazia é mostrada como representando a dependência de Jesus Cristo. O apresentador do evangelho, então, passa da cadeira que representa sua própria bondade para a cadeira que representa a fé em Jesus Cristo e mostra que é impossível se sentar nas duas cadeiras ao mesmo tempo. Assim, é comunicada a mensagem de que, para confiar em Cristo para sua salvação, uma pessoa precisa abandonar completamente qualquer confiança na própria bondade ou mérito. A fé em Cristo e uma dependência de nós mesmos, até mesmo em um grau insignificante, são mutuamente exclusivas.

A palavra é um substantivo e não tem nenhuma forma verbal em nosso idioma. Em vez dela, usamos a palavra crer, como em Atos 16.31: “Creia no Senhor Jesus e será salvo”. O que significa crer em Jesus, isto é, em que é que devemos crer? Devemos crer que, como o Filho de Deus, revestido da nossa humanidade, ele teve uma vida perfeita e, então, morreu na cruz pelos nossos pecados. Essa mensagem é chamada o evangelho, isto é, as boas-novas sobre Jesus Cristo.

O próprio Jesus deve ser o objeto da nossa fé. Às vezes, dizemos que somos salvos pela fé somente, que significa de modo independente de qualquer obra. No entanto, essa expressão, às vezes, pode nos passar uma impressão errada, como se a própria fé tivesse alguma virtude que Deus respeita. É mais precisa a afirmação de que somos salvos pela graça de Deus por intermédio da fé. Novamente, a fé é apenas a mão que recebe a dádiva de Deus, e Deus pelo seu Espírito até mesmo abre nossa mão para receber a dádiva. Essa doutrina de uma confiança exclusiva em Jesus Cristo para ser salvo é uma verdade básica do evangelho. Sem aceitá-la, não há salvação. Por definição, todos os cristãos aceitam esse fato. É importante entendermos que não apenas fomos salvos pela fé em um momento específico da nossa vida, mas que devemos viver pela fé em Cristo todos os dias da nossa vida. Isso significa que, como na ilustração apresentada pelo Evangelism Explosion com as duas cadeiras, preciso continuar renunciando a qualquer confiança na minha própria bondade e depositar minha confiança exclusivamente em Cristo todos os dias da minha vida, não apenas para minha salvação eterna, mas também para minha aceitação diária diante de um Deus santo.

O apóstolo Paulo escreveu: “A vida que agora vivo no corpo, vivo-a pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim” (Gl 2.20). O contexto de Gálatas 2.20 é a justificação — ser declarado justo com base na justiça de Cristo. Assim, quando Paulo escreveu que vivia pela fé no Filho de Deus, sua referência nessa passagem não era a uma dependência de Cristo para ter força espiritual (como é o caso em Fp 4.13), mas a uma dependência de Cristo para uma condição justa diante de Deus diariamente.

 Essa justiça está disponível a todos com base na mesma coisa, pois todos pecaram e estão destituídos da glória de Deus (v. 22-23)

 O plano de salvação de Deus trata todas as pessoas de modo igual, pois todos são pecadores. Isso não significa que não há nenhuma distinção para Deus na seriedade e gravidade de pecados diferentes. Mas, como vimos no capítulo anterior, qualquer pecado, por menor e mais insignificante que nos pareça ser, é uma violação da lei santa de Deus e nos torna sujeitos à penalidade da morte.

Uma pessoa talvez seja um pecador relativamente decente e uma outra um pecador flagrante, mas ambos são pecadores, e a lei de Deus não admite nenhum grau de falha. Se 60 é a nota para passar em um exame universitário, não há diferença alguma entre sua nota ser 40 e minha nota ser apenas 20. Nós dois não alcançamos a nota necessária. Não há sentido você se vangloriar de ter tirado uma nota maior do que a minha. A única coisa que importa é o fato de ambos não termos passado no exame.

O primeiro propósito do método de salvação divino, por meio da morte de Cristo, é nos libertar da culpa e, embora todas as pessoas não sejam igualmente culpadas, todas têm culpa. Assim, como Paulo disse: “Não há distinção”. Ou, nas palavras de uma expressão mais contemporânea: “Todos estamos no mesmo nível aos pés da cruz”.

Isso elimina qualquer possibilidade de uma comparação de nós mesmos com outras pessoas que aparentam ser mais pecaminosas — ou ao menos não tão santas — do que somos. Assim, para vivermos pelo evangelho todos os dias, toda a tendência de nos compararmos com outros cristãos, para não mencionar descrentes, precisa ser rejeitada. A comparação que devemos fazer é com o padrão perfeito de Deus, confessando diariamente que pecamos e estamos destituídos da glória de Deus.

Todos os que creem em Jesus Cristo são justificados gratuitamente pela graça de Deus (v. 24)

Ser justificado é ser absolvido de qualquer acusação de culpa e ser declarado absolutamente justo. Não somos apenas livres de toda a sujeição à ira de Deus por causa da nossa culpa; Deus também nos aceita individualmente por causa de Cristo. A justificação é como dois lados de uma mesma moeda. Em um lado, somos declarados “inocentes” diante de Deus e, no outro, somos positivamente declarados justos por meio de Cristo. Isto é, Deus passa a nos ver como pessoas que obedeceram perfeitamente à lei de Deus.

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Devemos sempre ter em mente que nossa justificação efetuada por Deus se baseia apenas na obra meritória de Cristo e na nossa união com ele.[3] Isto é, Deus nos vê legalmente como tão conectados com Cristo que o que ele fez, nós fizemos. Quando ele viveu uma vida de obediência perfeita, é como se nós tivéssemos vivido uma vida de obediência perfeita. Quando ele morreu na cruz para satisfazer as exigências justas da lei de Deus, é como se nós mesmos tivéssemos morrido nessa cruz. Cristo esteve em nosso lugar como nosso representante, tanto na sua vida sem pecado quanto na sua morte que levou os pecados. É a isso que Paulo se referiu quando disse: “Fui crucificado com Cristo” (Gl 2.20).

Desse modo, viver pelo evangelho significa termos uma firme compreensão do fato de que a vida e a morte de Jesus são nossas em virtude da nossa união com ele. O que ele fez, nós fizemos. Apenas nesse sentido podemos entender as afirmações ousadas de Paulo em Romanos 8: “Portanto, agora já não há condenação para os que estão em Cristo Jesus” (v. 1); “Se Deus é por nós, quem será contra nós?” (v. 31); e “Quem fará alguma acusação contra os escolhidos de Deus? É Deus quem os justifica” (v. 33).

Essas afirmações de Paulo são verdades objetivas; isto é, sua veracidade independe da nossa compreensão delas. No entanto, são tantas as vezes que achamos difícil crer nelas. Por causa das nossas falhas frequentes diante de Deus, nós nos sentimos debaixo de condenação, sentimos não que Deus é por nós, mas sim que, sem dúvida alguma, é contra nós, achamos que ele está apresentando acusações contra nós. Nesses momentos, precisamos pregar o evangelho a nós mesmos. Precisamos rever o que Deus declarou como sendo verdade sobre nossa justificação em Cristo.

A justificação é uma obra completa no que diz respeito a Deus. A pena foi paga, e a justiça divina foi satisfeita. Mas ela deve ser recebida pela fé, deve ser renovada de modo contínuo em nossa alma e aplicada à nossa consciência todo dia pela fé. Há dois “tribunais” com que precisamos lidar: o tribunal de Deus no céu e o tribunal da consciência na nossa alma. Quando cremos em Cristo para sermos salvos, o tribunal de Deus é satisfeito para sempre. Nunca mais será apresentada uma acusação de culpa contra nós no céu. No entanto, nossa consciência não para de nos declarar culpados. Essa é a função da consciência. Portanto, pela fé devemos estabelecer uma harmonia entre o veredicto da consciência e o veredicto do céu. Fazemos isso primeiro concordando com nossa consciência quanto à nossa culpa e, então, nos lembrando do fato de nossa culpa já ter sido levada por Cristo.

É afirmado que essa justificação nos foi dada gratuitamente pela graça divina. A palavra gratuitamente significa sem nenhum tipo de pagamento. É impossível comprar a justificação com as boas obras. Não há nenhuma transação entre o pecador e Deus. A justificação é um ato absolutamente gratuito por parte de Deus. Essa gratuidade da justificação foi prevista pelo profeta Isaías:

Venham, todos vocês que estão com sede,

venham às águas;

e vocês, que não possuem dinheiro

algum, venham, comprem e comam!

Venham, comprem vinho e leite sem dinheiro

e sem custo (Is 55.1).

A graça, como já observamos, é o favor imerecido de Deus mostrado àqueles que merecem a ira dele. A graça pressupõe a nossa própria culpa. Por definição, ela é uma graça soberana; isto é, Deus não tem nenhuma obrigação de conceder a qualquer um de nós esse favor imerecido (aliás, Deus não concedeu esse favor aos anjos que pecaram [2Pe 2.4]). A origem da decisão de nos conferir esse favor é apenas a própria bondade divina.

A justificação se dá “por meio da redenção que há em Cristo Jesus” (v. 24)

Charles Hodge, o famoso professor de teologia no Seminário Teológico de Princeton, no século 19, disse que o termo redenção, como usado no versículo 24, significa “libertação efetuada pelo pagamento de um resgate […] Aquilo de que somos redimidos é a ira de Deus; o preço da nossa redenção é o sangue de Cristo”.[4] Alguns parágrafos antes, vimos que a justificação é um ato gratuito de Deus no que diz respeito a nós. Mas, embora tenha sido totalmente gratuita para nós, Cristo precisou “comprá-la” com seu sangue. Cristo pagou o resgate que nos redimiu da ira justa e santa de Deus.

Aqui será útil fazer uma distinção entre a justificação e um mero perdão. Um perdão é desculpar uma ofensa sem impor uma pena. Ele pode ser concedido de modo gratuito por um presidente ou governador sem nenhuma razão, às vezes até mesmo ocorrendo às custas da justiça. Por exemplo, houve um enorme protesto gerado pelo perdão do presidente Nixon, pois muitos, certos ou errados, sentiram que a justiça havia sido violada pela concessão do seu perdão.

No entanto, no plano divino de justificação, a justiça não é violada por um perdão gratuito do pecador condenado. A justiça aqui, de fato, foi satisfeita; a pena foi paga de modo pleno pelo Senhor Jesus Cristo. Em um sentido, justificar é declarar que as demandas da justiça foram totalmente satisfeitas.

Precisamos meditar mais sobre a obra de Cristo que satisfez as exigências da lei de Deus. Certa vez, recebi um livro chamado The satisfaction of Christ [A satisfação de Cristo]. Eu achava que suas páginas seriam sobre encontrar satisfação no meu relacionamento com Cristo. Em vez disso, constatei que eram sobre a morte de Cristo e a satisfação completa da justiça de Deus proporcionada pela sua morte. Eu já era cristão há mais de doze anos e nunca havia ouvido a expressão “a satisfação de Cristo”, muito menos entendido seu significado.

A satisfação de Cristo é mais do que apenas uma expressão teológica. É um conceito com que precisamos nos familiarizar na nossa vida diária. Quando nossa consciência está nos perturbando, é importante uma reflexão sobre o fato de que, embora nossos pecados sejam reais e indesculpáveis, não deixa de ser verdade que a justiça de Deus foi satisfeita pela “satisfação de Cristo”, que pagou a pena completa.

“Deus […] ofereceu [Jesus] como sacrifício de expiação, mediante a fé no seu sangue” (v. 25)

Uma nota de rodapé na New International Version nos ajuda a entender o significado do “sacrifício de expiação” com uma versão alternativa: “como aquele que desviaria sua ira [de Deus], levando o pecado”. Assim, a expiação assume a ira de Deus contra o pecado e nossa consequente sujeição à ira santa e justa dele contra o pecado. Paulo afirmou essa situação de modo bem claro em Romanos 1.18: “A ira de Deus é revelada do céu contra toda impiedade e injustiça dos homens” e, então, em Efésios 2.3: “Éramos por natureza objetos da ira”. Não devemos entender a ira de Deus como uma paixão e ódio incontroláveis. Antes, como o falecido pastor britânico D. Martyn Lloyd-Jones escreveu, a ira de Deus significa “sua oposição firme a todo o mal, cuja origem é sua própria natureza […] Sua natureza é tal que ele abomina o mal, ele odeia o mal. Isso é uma consequência necessária da sua santidade”.[5]

Algumas versões bíblicas usam a palavra propiciação em passagens em que a New International Version diz: “sacrifício de expiação”. Embora propiciação seja uma palavra rara no nosso vocabulário evangélico atual, é uma palavra com que todos os cristãos devem se familiarizar. Propiciação, no contexto da salvação, significa aquilo que aplaca a ira de Deus contra o pecado. Assim, o Senhor Jesus Cristo, com seu sacrifício na cruz, aplacou e desviou a ira justa e santa de Deus, a ira que deveria ter caído sobre nós.

Devemos observar dois aspectos importantes desse ato propiciatório de Cristo. Em primeiro lugar, Deus o ofereceu, ou o apresentou, como um sacrifício expiatório. É Deus Pai que iniciou todo o plano de salvação. É Deus Pai que proveu o sacrifício do seu Filho para satisfazer sua justiça e aplacar sua própria ira. Quando estamos agudamente conscientes do nosso pecado e achamos que a ira de Deus deve de algum modo estar pairando sobre nós, precisamos nos lembrar de que o próprio Deus Pai é aquele que planejou um modo de poder executar totalmente sua ira contra o pecado sem experimentarmos a força dessa ira.

O segundo aspecto é o fato de nós, pecadores, nos apropriarmos dessa propiciação pela fé no seu sangue. O sangue de Cristo, uma referência à morte dele, deve ser o objeto da nossa fé, pela qual nos apropriamos da sua propiciação. “O sangue de Cristo”, em relação à nossa salvação, é uma expressão favorita dos autores do Novo Testamento, ocorrendo cerca de trinta vezes. É o sangue de Cristo que purifica nossa consciência da corrupção do pecado (Hb 9.14); é o sangue de Cristo que nos purifica de todo pecado (1Jo 1.17); é pelo sangue de Cristo que temos coragem para entrar no Santo dos Santos — a própria presença de um Deus infinitamente santo (Hb 10.10). É o sangue de Cristo, segundo a passagem de Romanos que temos examinado, que desvia a ira divina, santa e justa de nós.

Portanto, quando estamos angustiados por causa da convicção do pecado, quando percebemos que desapontamos a Deus mais uma vez, talvez até mesmo no mesmo pecado, precisamos recorrer ao sangue purificador de Jesus. Nos versos de um famoso hino tradicional do século 19:

O que pode lavar e levar embora meu pecado?

Nada senão o sangue de Jesus.

O que é capaz de mais uma vez me restaurar?

Nada senão o sangue de Jesus.[6]

Não é nossa contrição ou tristeza pelo nosso pecado, não é nosso arrependimento, nem mesmo é a experiência de um certo número de horas nas quais sentimos que estamos em algum tipo de provação que nos purifica. É o sangue de Cristo, derramado de uma vez por todas no Calvário há dois mil anos, mas de que os cristãos se apropriam diariamente ou muitas vezes por dia, que purifica nossa consciência e renova nosso sentimento de paz com Deus.


[1] George Smeaton, The apostles’ doctrine of the atonement (Edinburgh: The Banner of Truth Trust, 1991; publicação original em 1870), p. 117. Sou grato ao dr. Smeaton pela sua exposição muito útil da expiação e usei algumas das suas ideias em outros locais deste capítulo sem identificar expressões específicas como citações diretas.

[2] Robert Haldane, Exposition of the Epistle to the Romans (London: The Banner of Truth Trust, 1958; publicação original em c. de 1842), p. 132.

[3] O conceito da união do crente com Cristo, tanto no seu significado quanto no seu efeito no cristão, será desenvolvido no capítulo seguinte.

[4] Charles Hodge, Commentary on the Epistle to the Romans (Grand Rapids: Eerdmans, reimpr. 1955; 1886), p. 91 [publicado em português por PES sob o título Romanos].

[5] D. M. Lloyd-Jones, Romans: an exposition of chapters 3:20–4:25, atonement and justification (Edinburgh: The Banner of Truth Trust, 1970), p. 75-6 [publicado em português por PES sob o título Romanos volume 3 – expiação e justificação].

[6] Do hino “Nothing but the blood”, de Robert Lowry (1826-1899), presente na maioria dos hinários evangélicos.

Trecho extraído da obra “A disciplina da graça“, de Jerry Bridges, publicada por Vida Nova: São Paulo, 2022, p. 52-65. Traduzido por Daniel Kroker. Publicado no site Cruciforme com permissão.

Jerry Bridges (1929-2016) foi um renomado escritor cristão e autor de diversas obras como Pecados intocáveis e Quem sou eu? (publicados por Vida Nova). Bridges também trabalhou muitos anos com a organização The Navigators, entidade dedicada ao treinamento e ao discipulado cristão.
Você nunca está além do alcance e da necessidade da graça de Deus. Sem a graça nunca chegaríamos a Cristo. Mas ser um cristão é mais do que vir a Cristo. É também crescer e se tornar semelhante a Jesus. A busca da santidade é um trabalho árduo, e quando entramos nessa disciplina, às vezes perdemos de vista a graça. Jerry Bridges nos ajuda a evitar essa distração, apresentando uma explicação clara e abrangente do evangelho e do que ele significa para os cristãos.

Explore como a mesma graça que nos levou a Cristo também nos fará crescer Nele.

Incluso guia de discussão para uso pessoal ou em grupo.

Publicado por Vida Nova.

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