O mesmo Cristo que nos alimenta nos guarda | Elyse Fitzpatrick
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10/dez/2024O professor Bart D. Ehrman já vendeu milhões de livros questionando a confiabilidade das Sagradas Escrituras. No entanto, ao olhar além das suas obras mais famosas, perceberemos que os seus argumentos estão longe de serem irrefutáveis.
Bart D. Ehrman é, provavelmente, o cético mais influente do mundo quando o quesito é negar a Bíblia. Como professor de estudos religiosos na Universidade Carolina do Norte da catedra James A. Gray um câmpus da Chapel Hill, ele é um comunicador talentoso e amplamente requisitado para participar de palestras e debates.
O seu ceticismo bíblico ganhou força após o surgimento da história de sua “desconversão” do cristianismo. Isso aconteceu logo após as suas vivências acadêmicas em duas renomadas instituições evangélicas americanas (Moody Bible Institute e Wheaton College) e antes do seu ingresso na Universidade de Princeton. Sobre os seus livros, ele construiu uma carreira editorial altamente respeitável. Os seus primeiros trabalhos foram mais acadêmicos, isto é, com uma escrita mais densa, técnica e obscura. No entanto, tempo depois, ele passou a escrever livros mais didáticos, desembocando em seis best-sellers (de acordo com o jornal americano New York Times). O primeiro livro, da série de seis, foi escrito por Ehrman quando tinha 50 anos de idade e o seu título foi: Misquoting Jesus [Citando Jesus de modo equivocado].
Diferentemente de muitos céticos populares que criticam a Bíblia, Ehrman possui um sólido embasamento acadêmico ao falar. Ele ganhou ainda mais credibilidade ao evitar muitas das posições céticas mais extremas e ainda chegou a escrever um livro contra aqueles que argumentavam que Jesus não havia existido. Além disso, boa parte daquilo que ele defendeu ou defende foi e é corroborado por muitos estudiosos igualmente céticos à Bíblia, embora sejam menos expressivos em suas opiniões.
Não é de se admirar que alguns dos seus 30 livros tenham sido traduzidos para quase o mesmo número de idiomas ao redor do mundo, e que as suas obras já tenham batido um número de vendas que ultrapassou dois milhões de exemplares. Tudo isso, portanto, pode parecer que os argumentos de Ehrman são inabaláveis, no entanto, não são. Na verdade, eles são apenas uma defesa bem apresentada do ceticismo do texto bíblico. Sendo assim, gostaria de destacar apenas duas características notáveis da obra de Ehrman.
As obras mais famosas de Ehrman
Ehrman é um mestre em criar títulos e subtítulos céticos. Muitas vezes, seus títulos enfatizam que ele está revelando informações que nos foram ocultadas (note o uso da palavra “nós” em três dos exemplos abaixo):
- Lost Christianities: The Battles for Scripture and the Faiths We Never Knew [Cristianismos perdidos: A batalha pela Escritura e a fé daquilo que nós nunca saberemos] (2003).
- Jesus, Interrupted: Revealing the Hidden Contradictions in the Bible (And Why We Don’t Know About Them) [Jesus, interrompido: revelando as contradições ocultas na Bíblia e por que nós não sabemos sobre elas] (2009),
- Forged: Writing in the Name of God — Why the Bible’s Authors Are Not Who We Think They Are [Forjado: escrevendo em nome de Deus. Por que os autores bíblicos não são o que nós pensamos que são] (2011).
Embora os títulos dos livros precisem chamar a nossa atenção, é necessário perguntar se a impressão transmitida por eles é verdadeira. Considere, por exemplo, do primeiro best-seller de Ehrman:
- Título nos EUA: Misquoting Jesus: The Story Behind Who Changed the Bible and Why [As mentiras Sobre Jesus: A história por trás de quem mudou a Bíblia e por quê]
- Título no Reino Unido: Whose Word Is It? The Story Behind Who Changed the New Testament and Why [Mentiram sobre Jesus: A história por trás de quem mudou o Novo Testamento e por quê].
Do ponto de vista do marketing, o título americano é bem mais impactante ao contrário do britânico que revela certa imprecisão. No livro, Ehrman trata exclusivamente do Novo Testamento, porém, o título escolhido pelos americanos dá a entender que não só o Novo Testamento foi substancialmente alterado, mas sim a Bíblia toda.
Ao abrir essa obra, o leitor verá que as maiores “mudanças” discutidas por Ehrman são: o texto que se encontra no final de Marcos (16.9–20) e a passagem sobre a mulher que foi pega em adultério em João 7.53–8.11. Essas “mudanças” são variações textuais que já foram observadas na maioria das traduções modernas da Bíblia (provavelmente já reproduzidas em centenas de milhões de cópias). Com base no conteúdo do livro, Ehrman deveria tê-lo intitulado como: “A história de quem mudou pequenas partes do Novo Testamento e por quê”, o que certamente reduziria, de forma considerável, o número de livros vendidos.
Palavras como: mudanças, enganos e encobrimentos no cristianismo primitivo são os assuntos que mais aparecem nos títulos de seus livros:
- Lost Scriptures: Books that Did Not Make It into the New Testament [Escritura perdida: quais foram os livros que não entraram no Novo Testamento] (2003);
- Forgery and Counterforgery: The Use of Literary Deceit in Early Christian Polemics [Falsificação e contrafação: O uso de textos falsos durante as polêmicas do cristianismo primitivo] (2012);
- How Jesus Became God: The Exaltation of a Jewish Preacher from Galilee [Como Jesus se tornou Deus: A exaltação de um pregador judeu da Galileia] (2014);
- Jesus Before the Gospels: How the Earliest Christians Remembered, Changed, and Invented Their Stories of the Savior [O Jesus de antes dos Evangelhos: Como os cristãos do primeiro século removeram, alteraram e inventaram as histórias sobre o salvador] (2016).
Frequentemente, há uma grande desconexão entre o título dramático de um livro de Ehrman e seu conteúdo real. Por exemplo, em um apêndice de uma edição inicial da versão americana em brochura de Misquoting Jesus [As mentiras sobre Jesus], Ehrman admite que, se ele e o seu professor, Bruce Metzger (um dos principais editores do Novo Testamento Grego publicado pela Sociedade Bíblica Alemã), tivessem editado juntos o Novo Testamento Grego: “haveria pouquíssimos pontos de discordância — talvez uma ou duas dezenas em meio a milhares.” Com outras palavras, a produção de Ehrman diferiria muito pouco do texto que serve de base para as traduções modernas da Bíblia em inglês. No entanto, quantos leitores do subtítulo The Story Behind Who Changed the Bible and Why [A história por trás de quem mudou a Bíblia e por quê] concluiriam que ele está se referindo apenas a um pequeno número de mudanças nas palavras em todo o Novo Testamento?
Ao abrir o livro, o leitor perceberá que as maiores “mudanças” discutidas por ele são os trechos de Marcos 16:9-20 e João 7:53-8:11; trechos esses que são variações textuais já amplamente reconhecidas na maioria das traduções modernas da Bíblia.
O problema da distância
Um tema recorrente no trabalho de Ehrman é o da distância. Seja a distância no tempo entre os manuscritos do Novo Testamento e os autores originais, ou a distância entre os autores originais e Jesus. Com isso, Ehrman tem toda uma gama de maneiras de criar a impressão de um enorme abismo entre o Novo Testamento e nós.
A narrativa dos seus argumentos segue mais ou menos assim: Jesus existiu e era um pregador que esperava, enquanto vivia, pelo final do mundo. Porém, ele não se considerava o Filho de Deus. Ele surgiu de o “vilarejo” rural de Nazaré e depois de algum tempo passou a ensinar em aramaico os camponeses. Todas as histórias e ensinamentos de Jesus que chegaram aos escritores dos Evangelhos, escritores estes, altamente alfabetizados e instruídos, passaram por muitos estágios de transmissão de uma cultura oral (e sabemos que as culturas orais não tinham noção do quanto as suas tradições mudavam). Os textos foram escritos no final do I século e provavelmente não foram produzidos pelos autores mais conhecidos (p. ex. Paulo, Tiago, Pedro, etc..). Esses autores viviam em um lugar bem longe da Judeia romana e escreveram as obras em meados de 40 a 65 anos depois dos acontecimentos.
A melhor analogia para a maneira de como a mensagem foi corrompida é o que nos Estados Unidos é chamado de Telephone Game[1] (ou, como era insensivelmente conhecido no Reino Unido como Chinese Whispers), um jogo de festa na qual uma mensagem é sussurrada ao pé do ouvido de uma pessoa que está cercada por outras, e, à medida que esta informação é passada de uma pessoa para outra, ela é facilmente corrompida.
Toda essa corrupção pôde ocorrer porque não existiam muitas pessoas transmitindo esta mensagem. No ano 100 d.C., havia apenas cerca de 7.000 a 10.000 cristãos em todo o mundo. A probabilidade de uma pessoa do império romano conhecer, pessoalmente, um cristão era relativamente pequena.
No entanto, com uma maior consistência com as evidências, seria possível narrar uma história totalmente distinta. Até porque, Jesus têm tantas biografias quanto tinha o imperador Tibério (a figura mais renomada da sua época). Nessas narrativas, ele declara ser, de forma constante, o único Filho de Deus.
A história afirmava que ele havia vindo de Nazaré, uma região que dava para a rota de comércio internacional do Vale de Jezreel. Essa cidade ficava a, aproximadamente, sete quilômetros de Séforis, a capital da Galileia. Durante boa parte da infância de Jesus, este local tinha um teatro grego. Com isso, Jesus sabia exatamente o que eram os atores, e é por isso que ele usou a palavra (do grego hypocrites) para descrever os fariseus. Adiante, a história continua mostrando que no período da sua idade adulta, Jesus se muda para Cafarnaum e viaja para um contexto bastante multiétnico. Ali, Ele passa a ser chamado de rabino e reúne os discípulos com a principal missão de ensiná-los.
Os nomes dos discípulos de Jesus refletem o contexto trilíngue da época: André e Filipe com nomes gregos, Bartolomeu e Tomé com nomes em aramaico e João e Mateus com nomes oriundos do hebraico — isso indica que, independentemente da língua em que Jesus ensinava, não havia motivo para se acreditar que os seus ensinamentos não podiam ser corretamente transmitidos em grego. Com o advento da Páscoa, o cristianismo se espalhou rapidamente, conforme evidenciado pelos números registrados em Atos dos Apóstolos: 3.000 pessoas se converteram (2.41), depois 5.000 homens (4.4), e o número continuou crescendo (6.7; 11.21; 16.5); muitos diziam que os cristãos haviam virado o mundo romano de cabeça para baixo (17.6) e estavam prejudicando o comércio dos ourives de Éfeso (19.24-27); considerando apenas o número de crentes judeus, os fiéis já passavam de dezenas de milhares (21.20).
A ênfase no grande número de cristãos também é confirmada nos relatos de Tácito e Plínio. O livro de Atos seria completamente inacreditável se, como sugere o modelo de Ehrman, afirmasse que o império romano estava sendo tomado por um grupo quase desconhecido. Na realidade, muitas pessoas haviam visto e ouvido Jesus. Nos quatro Evangelhos, dois são escritos por testemunhas oculares (Mateus e João) e os outros dois, embora não tenham sido escritos por testemunhas diretas, baseiam-se em relatos de quem esteve presente (Marcos, usando as memórias de Pedro, e Lucas, que entrevistou várias pessoas).
O impacto do trabalho de Ehrman é notável devido à sua grande popularidade e à elaboração de uma abordagem secular abrangente para explicar o surgimento do cristianismo. Sua visão se baseia em uma série de escolhas que privilegiam interpretações mais céticas das evidências. No entanto, muitas dessas interpretações são alvo de críticas e continuam sendo desafiadas por outros acadêmicos.
Notas
[1] No Brasil conhecido como telefone sem fio.
Peter J. Williams (PhD, University of Cambridge) é diretor geral e CEO da Tyndale House, Cambridge, um dos principais institutos de pesquisa bíblica do mundo. Foi professor sênior de Novo Testamento na University of Aberdeen, Escócia. É presidente do International Greek New Testament Project e membro do Comitê de Supervisão de Tradução da versão inglesa da Bíblia English Standard Version (ESV). |
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Texto original: How scepticism became a bestseller Tyndale House Cambridge. Traduzido por Gedimar Junior e publicado no site Cruciforme com permissão. |
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