
Por que as traduções latinas da Bíblia ainda são importantes? | Jonathan Wilken
07/abr/2025
A Bíblia ensina uma cosmovisão única e peculiar: a distinção Criador-criatura, Deus como a tripersonalidade absoluta e o senhorio divino como sua relação com o mundo. Mas muitos não conseguem reconhecer a cosmovisão bíblica. A própria Bíblia oferece uma razão para isso, a saber, o pecado. Em Romanos 1.18-32, o apóstolo Paulo diz o seguinte:
Pois a ira de Deus se revela do céu contra toda impiedade e injustiça dos homens, os quais, pela sua injustiça, suprimem a verdade. Pois o que se pode conhecer sobre Deus é manifesto entre eles, porque Deus lhes manifestou. Pois os seus atributos invisíveis, a saber, seu eterno poder e divindade, são vistos claramente, desde a criação do mundo, nas coisas que foram criadas. Assim, esses homens são indesculpáveis. Porque, mesmo tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças; pelo contrário, tornaram-se fúteis nas suas especulações, e o seu coração insensato se obscureceu. Dizendo-se sábios, tornaram-se tolos e substituíram a glória do Deus imortal por imagens semelhantes ao homem mortal, aos animais e às coisas rastejantes. Por isso Deus os entregou à impureza sexual, ao desejo ardente de seus corações, para desonrarem seus corpos entre si; pois substituíram a verdade de Deus pela mentira e adoraram e serviram à criatura em lugar do Criador, que é bendito eternamente! Amém. Por isso, Deus os entregou a paixões desonrosas. Porque até as suas mulheres substituíram as relações sexuais naturais pelo que é contrário à natureza. Os homens, da mesma maneira, abandonando as relações naturais com a mulher, arderam em desejo sensual uns pelos outros, homem com homem cometendo indecência e recebendo em si mesmos a devida recompensa do seu erro. E visto que julgaram por bem rejeitar o conhecimento de Deus, o próprio Deus os entregou a uma mentalidade degenerada para fazerem coisas que não convêm. Eles ficaram cheios de toda forma de injustiça, maldade, cobiça, malícia. Estão cheios de inveja, homicídio, discórdia, engano, depravação. São intrometidos, caluniadores, inimigos de Deus, insolentes, orgulhosos, arrogantes, inventores de males, desobedientes aos pais, insensatos, indignos de confiança, sem afeto natural, sem misericórdia. Eles, embora tenham conhecido o justo decreto de Deus, que declara dignos de morte os que praticam essas coisas, não somente as fazem, mas também aprovam os que as praticam.
O senhorio de Deus se aplica a todas as atividades humanas, e o conhecer é uma delas. Portanto, abandonar o senhorio de Deus leva à corrupção da vida humana na ética e na adoração, mas também no conhecimento. Nessa passagem, aprendemos que Deus revelou a si mesmo de forma clara aos seres humanos (Rm 1.19-20). Ainda que as pessoas aleguem ignorância sobre ele, não podem alegar inocência: a culpa dessa ignorância é sua. A revelação é clara, mas elas voluntariamente a suprimiram (v. 18, 21, 23, 25, 28). Para essa repressão, elas não têm desculpas (v. 20).
O pecado dessas pessoas começa, então, na área do conhecimento. Quando elas reprimem o conhecimento de Deus, isso as leva ao pecado da idolatria (Rm 1.22-23), depois aos pecados sexuais (v. 24-27) e, por fim, para “todas as formas de injustiça” (v. 28-31). Elas não apenas praticam o erro por si mesmas, como também aprovam os outros que fazem o mesmo.
Aqui, o reconhecimento do senhorio de Deus, o conhecimento de Deus a partir de sua revelação e a ética (os pecados de todos os tipos) estão interligadas. Não é surpreendente, portanto, que os pecadores rejeitem os princípios da filosofia bíblica que discutimos anteriormente e os substituam por outras ideias.
Os pecadores, no fundo, não querem viver no mundo de Deus, embora eles não tenham essa escolha. Eles reconhecem a verdade, de uma certa forma, porque precisam viver e sobreviver, mas adorariam que o mundo fosse diferente e, com frequência, eles tentam torná-lo diferente ou fingem que ele já o é. No mundo de faz de conta dos descrentes, o Senhor da Bíblia não existe e o homem é livre para viver segundo os seus padrões da verdade e do correto. Em uma palavra, o descrente vive como se ele fosse autônomo, sujeito apenas à sua própria lei. Ninguém pode ser autônomo de fato, porque estamos todos sujeitos ao controle, à autoridade e à presença de Deus. Mas nós fingimos que somos autônomos; agimos como se fôssemos autônomos no mundo de faz de conta dos descrentes.
Na ilustração de Van Til, a primeira pessoa que buscou viver dessa forma foi a primeira mulher, Eva, a mãe de todos nós. Deus lhe disse para não comer um determinado fruto, mas ela ponderou a questão:
Então, quando a mulher viu que a árvore era boa para dela comer, que era agradável aos olhos e desejável para dar entendimento, tomou do seu fruto e comeu, e deu dele a seu marido, que também comeu (Gn 3.6).
De alguma forma, ela sabia que deveria obedecer a Deus e rejeitar as palavras opostas de Satanás, mas preferiu confiar em seus próprios sentidos e julgamentos para tomar sua decisão, como se fosse autônoma. É como se Deus tivesse sua opinião, Satanás tivesse a dele e coubesse a Eva dar o voto definitivo. Portanto, a Queda foi, antes de tudo, um acontecimento na mente de Eva, e só depois em sua boca e garganta. Foi filosófico antes de ser prático. Somos alertados, mais uma vez, de que Deus deve ser Senhor sobre nosso pensamento, e não apenas sobre nosso comportamento.
Eva julgou segundo si própria (a árvore era “boa para dela comer”), sua estética (“agradável aos olhos”) e seu conhecimento (“desejável para dar entendimento”), colocando em ação sua própria ética: a desobediência.
Assim, a história da filosofia não cristã é a história de um pensamento que se pretende autônomo. É claro que se as pessoas pressupõem sua própria autonomia, não podem reconhecer Deus como o Criador pessoal absoluto, o Senhor.
Devo observar que, embora a Queda tenha envolvido o pensamento de Eva sobre o reconhecimento do senhorio de Deus, o conhecimento de Deus a partir de sua revelação e a ética, a própria Queda foi, em certo sentido, ética, e não a ausência do conhecimento de do Senhoria de Deus. A maioria dos filósofos e das religiões não cristãs reconhecem que existe algo errado com a condição humana, mas eles tendem a pensar que o problema está em nossa finitude metafísica, ou até mesmo em nossa impossibilidade de alcançar a deidade. Na Escritura, contudo, nossa condição é pessoal, relacional. Ela está fundamentada em nossa própria desobediência a Deus.
Filosofia cristã e filosofia não cristã
Por causa da Queda, em todas as áreas da vida, existe uma antítese entre os que creem e os que não creem: os que creem buscam glorificar a Deus em todas essas áreas (1Co 10.31), enquanto os que não creem buscam viver de forma autônoma (Gn 8.21; Is 64.6; Rm 3.10, 23). Isso inclui as áreas do pensamento, do raciocínio e da busca por sabedoria. Se “o temor do Senhor é o princípio da sabedoria” (Sl 111.10), então aqueles que não temem a Deus não possuem nem mesmo o princípio da sabedoria. Paulo argumenta, assim, que “a sabedoria deste mundo é loucura para Deus” (1Co 3.19; cf. 1.20), e que a sabedoria de Deus é tolice para o mundo (1Co 1.18, 21-22). O contexto mais amplo desses versículos é instrutivo, e sua síntese está em 1Coríntios 2.14-16:
O homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, pois lhe são absurdas; e não pode entendê-las, pois se compreendem espiritualmente. Mas aquele que é espiritual compreende todas as coisas, ao passo que ele mesmo não é compreendido por ninguém. “Pois, quem jamais conheceu a mente do Senhor para que possa instruí-lo?” Mas nós temos a mente de Cristo.
A palavra “antítese” não quer dizer que cristãos e não cristãos discordam em todas as proposições. Cristãos e descrentes podem concordar prontamente que o céu é azul, que a terra gira em torno do sol, e assim por diante. Mas as atividades intelectuais de cada um devem ser vistas no contexto de seu propósito de vida. O cristão busca conhecer o mundo a fim de glorificar a Deus. O descrente busca conhecer a Deus a fim de se opor ao seu reino, enaltecendo sua própria autonomia.
Nenhum deles, é claro, é totalmente consistente com seu projeto de vida. Os cristãos às vezes são infiéis ao seu Senhor, e devem buscar perdão (1Jo 1.9). Os descrentes precisam sobreviver e prosperar em um mundo que, ao contrário do que gostariam, é o mundo de Deus e, assim, precisam reconhecer, com frequência e a despeito de si mesmos, a realidade de Deus. Deus não permitirá que eles sejam perfeitamente consistentes com seus impulsos pecaminosos, pois se o fossem, destruiriam a si mesmos e criariam o caos ao seu redor. E, se não continuassem reconhecendo a verdade em algum grau, eles não seriam mais indesculpáveis (Rm 1.20). Seu conhecimento contínuo serve como fundamento para sua responsabilidade moral. Assim, Deus constantemente refreia o pecado e seus efeitos, como no episódio da Torre de Babel (Gn 11.1-8).
Quando o cristão, o descrente, ou ambos são inconsistentes com o direcionamento geral de suas vidas, eles conseguem concordar. Mas essas concordâncias podem ser breves. Seja como for, tanto as concordâncias quanto as discordâncias são parte de um contexto mais amplo de guerra espiritual, a batalha entre o reino de Deus e o reino de Satanás. Às vezes, até mesmo Satanás atende aos seus propósitos falando a verdade, como em suas citações da Escritura, em Mateus 4.6.1 A história da filosofia, portanto, descreve uma etapa da guerra espiritual conforme ela se desenrola ao longo dos séculos.
Trecho extraído e adaptado da obra “História da filosofia e teologia ocidental”, de John Frame, publicada por Vida Nova: São Paulo, 2022. Publicado no site Cruciforme com permissão.
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