
Três fontes para uma vida de sabedoria | Wayne Grudem
26/maio/2025
Embora a Ascensão de Jesus tenha sua importância reconhecida nos principais credos da igreja, ela tem sido muitas vezes negligenciada ou mal interpretada como um fato excessivamente espiritual, de difícil aplicação para as exigências presentes. Lemos os Evangelhos, Atos e os credos e nos sentimos como Aristófanes, que, quando quis satirizar a então novíssima filosofia grega de Sócrates e dos Sofistas, escolheu a imagem das nuvens para representar o descompasso entre a vida real e a vida dos “espíritos sabidos”.[1] As “Nuvens”, diz a caricatura de Sócrates na comédia, são as divindades pelas quais se conhece “claramente as coisas divinas” e se sabe “exatamente o que elas são”. Suspenso em uma cesta, buscando contato com as Nuvens, Sócrates escuta a acusação do típico cidadão ateniense: “Você está olhando dessa cesta os deuses daí de cima, e não a terra, como devia!”.[2]
Os nativos do reino deste mundo, com frequência, olham para a igreja e também veem um povo que parece viver com os olhos em outro lugar — gente com a cabeça nas nuvens. Afinal, não foi assim que os discípulos ficaram na Ascensão, quando Jesus “foi levado às alturas enquanto eles olhavam, e uma nuvem o encobriu de seus olhos” (At 1.9)? E deve ser assim mesmo, afinal, este é o povo que vive pensando nas coisas do alto, não nas da terra (Cl 3.2). O Livro de Atos começa com duas cenas celestiais. Antes de vermos a igreja entrando em cena, deparamos com o céu trabalhando na Ascensão e no Pentecostes. E, no entanto, Atos faz um retrato da igreja em seus primeiros anos que mostra como a vida orientada pelas coisas do alto se parece muito mais com o crescimento que acontece enquanto os pés ficam sujos com a poeira da estrada — no enfrentamento de perseguições, conflitos transculturais, oposição interna e externa, falsos ensinos, naufrágios, multidões furiosas e apedrejamentos — do que com os filmes de David Lynch em que os sonhos se confundem com a realidade até que sobrem apenas delírios e pesadelos.
A Ascensão no Livro de Atos
Quando lemos o Livro de Atos, surge a pergunta: Como é possível que a igreja tenha conseguido crescer diante de tantas pressões vindo de tantos lugares diferentes? Entenda: não se trata de um problema interno a Atos, é também uma motivação para a igreja hoje. Diante das novas fontes de pressão, de que outra maneira a igreja pode crescer e frutificar hoje senão por estar ligada a uma fonte de direção e poder que não é deste mundo?
Muitos têm respondido a essa pergunta argumentando que, em vez de se pensar nos apóstolos como as figuras centrais do Livro de Atos, devemos olhar para a obra do Espírito Santo. De fato, embora o antigo gênero de “atos” costume versar sobre os atos notáveis de homens divinos e enviados pelos deuses, o Livro de Atos é menos sobre indivíduos e mais sobre o crescimento da comunidade de Jesus e de sua mensagem.[3] Além disso, certamente o Espírito Santo desempenha um papel crucial na narrativa de Atos, mas este papel deve ser entendido no contexto literário maior que Lucas desenvolveu nos dois tratados para Teófilo, Lucas-Atos (cf. At 1.1-2).
Se o Livro de Atos poderia ser acertadamente chamado de Atos do Jesus Ressurreto ou Atos do Espírito, como propôs F. F. Bruce[4], é porque a principal preocupação são os atos que o céu está realizando. O assunto principal do Livro de Atos é, assim, os atos de Deus estabelecendo a igreja por meio da atividade de Jesus, com o Espírito Santo operando debaixo da direção soberana de Deus.[5] Se vemos a igreja crescer e frutificar em seus primeiros anos apesar de todo tipo de oposição, não é porque a igreja cresceu em poder, mas porque viveu debaixo da vocação que conferida pelo Jesus exaltado.
A Ascensão de Jesus, como registrada em Atos, estabelece dois chamados para os discípulos de Jesus ainda hoje: manter os olhos fixos em Cristo exaltado; e viver, por meio do Espírito Santo, como testemunhas fieis do que Deus está fazendo na história por meio de Jesus — não como protagonistas do Reino consumado, mas como testemunhas que vivem sob a ordem da nova criação.
Como tomamos parte no drama da redenção
É útil entender a obra de Jesus como um drama em três atos: seu nascimento, sua morte e ressurreição. Mesmo igrejas chamadas “não litúrgicas” celebram o Natal e a Páscoa como ocasiões para meditar sobre o sentido da vida e da morte de Jesus. Ainda assim, com frequência, temos dificuldade de enxergar como exatamente entramos nesse drama. A Ascensão, no entanto, nos indica a partir de que momento, e com qual forma, assumimos um papel na história do que Deus está fazendo em Jesus:
“… [Deus] atuou em Cristo, ressuscitando-o dentre os mortos e fazendo-o sentar-se à sua direita nos céus, muito acima de todo principado, autoridade, poder, domínio, e de todo nome que possa ser pronunciado, não só nesta era, mas também na vindoura. Também sujeitou todas as coisas debaixo dos seus pés, para que seja cabeça sobre todas as coisas, e o deu à igreja, que é o seu corpo, a plenitude daquele que preenche tudo em todas as coisas” (Ef 1.20-23).
A Ascensão não é apenas o marco cronológico para a igreja tomar parte no drama da redenção; a Ascensão é a causa: a exaltação de Cristo consuma o sentido da ressurreição,[6] conferindo a ele autoridade sobre tudo (cf. tb. Fp 2.9-11), de modo que a igreja não é enviada para ampliar seu domínio, mas para dar testemunho da autoridade que Jesus já recebeu. A Ascensão orienta a vocação presente da igreja de três maneiras:
A Ascensão mostra Cristo entronizado
Veja: o relato da Ascensão em Atos 1 não termina com Jesus se ausentando corporalmente da vista dos discípulos, tampouco com a grande pergunta dos discípulos (“Senhor, é este o tempo em que restaurarás o reino para Israel?”, At 1.6). Depois que a nuvem encobre seus olhos, dois homens vestidos de branco aparecem e perguntam: “Homens galileus, por que estais olhando para o céu? Esse Jesus, que dentre vós foi elevado ao céu, virá do mesmo modo como o vistes partir” (At 1.11). Salmos 110.1 já havia antecipado o momento em que o Cristo se sentaria à direita de Deus e ganharia domínio sobre tudo; e Daniel 7 já havia profetizado o momento em que este, como Filho do Homem, foi até o Ancião de Dias receber “domínio eterno” e o reino “que não será destruído” (Dn 7.13-14).
Quando Aristófanes descreve Sócrates em um cesto tentando alcançar as nuvens, a acusação é de afastamento. Não é o que aconteceu na Ascensão. Em sua exaltação, a ausência física de Cristo não representa seu afastamento de nós, mas que ele assumiu seu lugar no trono. Ele não desapareceu, ele reina. Exaltado em glória, não abandona a história; antes, ele exerce sua autoridade sobre tudo para que a igreja cumpra sua vocação.
A cada geração, a igreja tem de lidar com a tentação de viver por outras glórias: a glória do império, do poder e do controle, da relevância e do protagonismo, da competência e da suficiência total. Mas há somente uma glória que cabe ao povo da nova criação, é a de carregar em si o nome de Deus (cf. Ap 14.1, mas tb. Nm 6.27). Na Ascensão, Cristo é exaltado com domínio sobre todas as coisas, e não há outra glória verdadeira para a igreja senão a de ter o Cristo glorificado como seu cabeça.
A Ascensão transfigura o tempo da igreja
Em seu último sermão, prometendo o Espírito Santo, os discípulos perguntam: “Senhor, é este o tempo em que restaurarás o reino para Israel?” (At 1.6). Por alguma razão que os intérpretes ainda debatem, Jesus não responde diretamente à pergunta, mas a reorienta: tempo e épocas estão debaixo da autoridade do Pai, à igreja compete ser testemunha. Albert Mohler tem razão em dizer que devemos ser cautelosos para não especular o que se passava na cabeça dos discípulos ao fazerem essa pergunta: “Parece claro, contudo, que esperavam que Jesus cumprisse a expectativa veterotestamentária segundo a qual Israel se tornaria um reino eterno em que o Messias governaria no trono de Davi”.[7] A resposta de Jesus, no entanto, reabilita a vocação do povo de Deus como sal e luz da terra não a partir do trono de Davi em Jerusalém, mas do trono do céu à direita de Deus.
Ainda assim, com muita frequência, a igreja continua confundindo sua vocação de ser testemunha com a busca por domínio. Essa é a preocupação que motiva Tozer em seu alerta: “A ideia amplamente difundida de que a principal obrigação da igreja consiste em propagar o evangelho aos cantos mais longínquos da terra é falsa. Sua principal obrigação é ser espiritualmente digna de propagá-lo”.[8] Na Ascensão, os discípulos têm seu olhar dirigido para a natureza da sua missão: não o objetivo de conquista, mas de dar testemunho do senhorio que já pertence a Jesus.
A Ascensão orienta o coração da igreja
Por fim, a doutrina da Ascensão é fonte de consolo, segurança e identidade para os discípulos de Jesus. O fato de Jesus estar à direita do Pai é uma garantia de nossa justificação (Rm 8.34), intercessão contínua (Hb 7.25) e comunhão com ele mesmo agora (Cl 3.1-4). Além disso, saber que nossa cabeça já está glorificada orienta o coração da igreja para o alto (Cl 3.1-2), mas sem cair na alienação espiritual — ao contrário, essa consciência funda uma identidade enraizada na glória do Senhor e na missão, não no escapismo.
A Ascensão e o Pentecostes são atos centrais no drama da redenção. Ao exaltar seu Filho (Fp 2.9-11), o Espírito é derramado (At 2.33), convocando a igreja a assumir seu papel na história: ser testemunha fiel do Cristo glorificado (At 1.8). O Espírito nos dá poder, mas também nos entrega um papel, uma vocação: viver no mundo como testemunhas do reino de Deus, anunciando com coragem e esperança aquele que reina e voltará (At 3.21; Hb 9.28). De seu trono, o Senhor conduz a missão; e sua igreja, em cada tempo, é chamada a entrar em cena com fidelidade, até o último ato.
Notas
[1] Aristófanes, As nuvens: uma comédia grega, Expresso Zahar (Rio de Janeiro: Zahar, 2003), edição Kindle.
[2] Ibidem, ênfase nossa.
[3] Darrell Bock, Atos: comentário exegético (São Paulo: Vida Nova, no prelo).
[4] F. F. Bruce, The Acts of the Apostles: Greek text with introduction and commentary, 3. ed. (Grand Rapids: Eerdmans, 1990), p. 21-2.
[5] Bock, ibidem.
[6] Franklin Ferreira, Alan Myatt, Teologia sistemática: uma análise histórica, bíblica e apologética para o contexto atual (São Paulo: Vida Nova, 2007), p. 642. A relação entre ressurreição e ascensão, e suas implicações para a união do crente com Cristo, é desenvolvida em detalhes e com bastante competência por G. K. Beale, que mostra como os autores do NT usam o AT, especialmente os salmos 2 e 110 para descrever tanto o sentido da ressurreição quanto o da ascensão (cf. União com o Cristo ressurreto [São Paulo: Vida Nova, 2025]).
[7] Atos 1—2 para você (São Paulo: Vida Nova, 2018), p. 14.
[8] Citado em David E. Garland, Atos: série comentário expositivo (São Paulo: Vida Nova, 2019), p. 15).
Abner Arrais é editor em Edições Vida Nova. Formado em Teologia pelo Seminário Martin Bucer e em Filosofia pela Universidade de São Paulo, e é pastor na Comunidade Bíblica do Calvário. | ![]() |
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