O caminho do justo foi revelado em Cristo: uma leitura do Salmo 1 | Christopher Ash

Ansiando e nos enchendo da justiça do Senhor | Carlos Valderrama
13/out/2025
Ansiando e nos enchendo da justiça do Senhor | Carlos Valderrama
13/out/2025

Dizer “Bem-aventurado é aquele que…” (v. 1) significa afirmar com confiança que a pessoa descrita se encontra sob o favor de Deus: em última análise, ela é feliz, recebe vida, alegria, paz e deleite. Equivale a declarar que essa pessoa será abençoada e que a bênção precisa ser buscada — sem a possibilidade de ser encontrada em qualquer outro lugar. Essa é uma declaração extraordinária e profunda. Ela demanda uma decisão da vontade e do coração. “Sim”, eu digo. “Eu acredito de verdade que essa pessoa, e somente a pessoa descrita aqui, será abençoada por Deus”. Até mesmo acompanhar as primeiras palavras desse primeiro salmo é um desafio exigente!

A pessoa bendita é descrita, inicialmente, a partir do que ela não faz. Isso ocorre em três estágios, e aumenta em um crescendo.

Primeiro, temos “aquele que não anda com os ímpios”. Encontramos “os ímpios” com frequência em Salmos e em outros livros da literatura sapiencial, de modo especial em Provérbios. Esses são pessoas que se entregaram à prática do mal; toda a direção de sua vida se opõe a Deus. Esses indivíduos marcham com esse passo rebelde e nós, naturalmente, queremos acompanhá-los, pois odiamos ser vistos como diferentes. Do pátio da escola à casa de repouso para idosos, por instinto queremos dizer as mesmas coisas que os ímpios, rir das mesmas piadas que eles, assumir os mesmos valores e tomar as mesmas decisões na vida. Seja qual for sua idade, fase da vida, etnia ou cultura, essa será uma tentação insidiosa para você. Nunca será fácil sair do ritmo do mundo insistente. No entanto, a bênção vem para aquele que, de modo marcante, não marcha ao ritmo do tambor do mundo.

Segundo, temos “aquele que não […] acompanha o passo dos ímpios”. A expressão “acompanha” sugere algo mais estabelecido, talvez, do que “caminhar”. Toda a vida é uma “caminhada” ao longo de uma “rota”: um caminho moldado por escolhas: maiores (com quem se casar, onde morar, que trabalho desempenhar) e menores. Os pecadores — pessoas cujo coração não é reto em relação a Deus — caminham por uma “via” específica. Eles podem não se apressar nela. Eles podem “posicionar-se” como símbolo de lealdade, da mesma forma que podemos perguntar a alguém: “Qual é a sua posição sobre esse assunto?”. Essas pessoas têm uma “posição”, um posicionamento, uma determinação firme. Muitos de nós somos fracos por natureza; fazemos eco ao suposto magnata da mídia que teria dito: “Estes são meus princípios. Mas, se você não gostar deles, disponho de outros”. Temos “princípios” flexíveis que podem ser ajustados para se adequarem à postura das pessoas à nossa volta. No entanto, a bênção vem para quem, de maneira deliberada e intencional não “se posiciona” com eles.

Terceiro, aqui está “aquele que não […] se assenta na companhia dos zombadores”. Isto é tanto mais resoluto quanto mais adverso. É mais resoluto porque eles não apenas “andaram” e depois “posicionaram-se”, mas agora “estão assentados”. No mundo antigo, “assentar-se” era a postura usada por um juiz para deliberar a respeito de algo; um juiz se “assentava” para julgar, como ocorre hoje. E era a postura do ensino com autoridade; a pessoa se assentava para ensinar, como Jesus fez no Sermão do Monte (Mt 5.1) e na sinagoga (Lc 4.20). Portanto, aqui está uma posição resoluta na qual essas pessoas não só tomam as suas decisões, mas reivindicam também a autoridade da posição assumida. Essa posição é enfaticamente adversa, pois não apenas eles próprios decidem se opor ao caminho de Deus, como também são “zombadores” — menosprezam e escarnecem quem segue o caminho de Deus. Vivemos isso o tempo todo com a elite moralmente liberal e teologicamente pluralista da nossa sociedade. Ela zomba de nós. E, como lamentou o cristão do século 18, William Paley: “Quem consegue resistir à zombaria?”.

Ser “aquele que não faz” essas coisas — que não anda com essas pessoas nem se posiciona com elas — é muito difícil, pois resulta em se tornar objeto de zombaria delas. Esse indivíduo pode ser bem-aventurado, mas sua bênção tem um custo.

Então, se isso é o que o bem-aventurado não faz, o que define essa pessoa em sentido positivo? O texto de Salmos 1.2 nos diz. Seu “prazer está na lei do Senhor”. No mais profundo de seu coração, essas pessoas amam o Senhor (o Deus da aliança) e, portanto, amam sua “lei”. A palavra “lei” (hebr., Torah) ­ significa instrução ou ensino. Provavelmente, aqui ela se refere de maneira especial aos cinco primeiros livros da Bíblia (o Pentateuco) e à pregação dos profetas que proclamaram o ensino da aliança. Essa pessoa se alegra com a instrução bíblica concedida por Deus. Portanto, ela medita “na lei [de Deus] dia e noite”. A palavra “medita”, no original hebraico, significa mais do que o pensamento silencioso; ela transmite a ideia de falar em voz alta e anunciar o ensinamento divino, e também se refere à convicção de que o que é falado expressa audivelmente as convicções mais íntimas do coração. Aqui temos uma pessoa que não apenas “tem o discurso”, dizendo aquilo que poderíamos esperar que uma pessoa piedosa dissesse, mas que o pratica a partir do mais profundo desejo e prazer do coração. Isso quer dizer que essa pessoa acredita genuinamente que a bênção procede do amor a Deus e de seguir seu caminho; a pessoa fala e acredita na declaração “Bem-aventurado é…”.

No versículo 3, vemos uma bela imagem da bem-aventurança. Em um clima quente, a única vegetação que sempre dá frutos é a árvore que conta com raízes profundas na água que concede vida. Aqui temos alguém cujas raízes estão profundamente enraizadas em Deus, a fonte da vida, por isso seu “fruto” não falha. Na vida dela, vemos o fruto de suas raízes. Pessoas assim “prosperam” em todos os sentidos. (Quando se lê a Bíblia inteira, descobre-se que a definição de “prosperidade” é mais profunda do que imaginamos. De maneira contrária ao senso comum, ela inclui também o sofrimento, mas resulta na glória final porque molda o indivíduo na piedade.) Elas demonstram, entre outras características, amor, alegria, paciência, bondade, fidelidade inabalável e paz — e procedem assim de forma­ consistente.

Os versículos 1-3 pintam um belo quadro da pessoa­ bem-aventurada. No entanto, sua prosperidade é conquistada a duras penas, pois ela será, necessariamente, objeto de zombaria cruel por parte de quem se ressente de sua recusa em andar na iniquidade.

Os versículos 4 e 5 advertem que não há outro caminho para a bênção. Um juízo se aproxima. Há uma “assembleia”, que significa uma igreja ou congregação, à qual pertencem “os ­ justos” (os que se enquadram na descrição dos v. 1-3). Aqueles que “permanecem”, hoje, “no caminho tomado pelos pecadores” neste momento “não resistirão no juízo”. Eles podem parecer firmes, até mesmo sólidos e relevantes, mas naquele dia serão considerados levianos, levados pelo vento como “palha” na época da colheita. É difícil acreditar nisso, quando se observa a certeza confiante de quem não se importa com a lei de Deus; no entanto, é verdade. Como escreveu o reformador do século 16, João Calvino:

Os profanos que desprezam a Deus, embora por algum tempo possam se considerar felizes, terão um fim miserável.[1]

O versículo 6 apresenta a razão profunda pela qual a bênção e a advertência são verdadeiras. “O Senhor”, o Deus da aliança, é a razão. Ele “vigia” (em amorosa sabedoria e cuidado de sua providência) “o caminho dos justos”. Temos aqui um “caminho” que vai na direção oposta ao “caminho dos pecadores” (v. 1); é um caminho estreito que conduz à vida (veja as palavras de Jesus em Mateus 7.14), e Deus cuida dos que o trilham. Mas há outro caminho: “o caminho dos ímpios leva à destruição” no julgamento vindouro.

Temos aqui, portanto, um salmo que nos apresenta um contraste simples, explicado pela linguagem de imagens vívidas acerca de suas motivações fundamentais, de sua evidência na vida e de seus dois destinos. Mas ele também é bastante intrincado — porque, embora você e eu queiramos ser contados entre os bem-aventurados, sabemos que, por natureza, somos totalmente ímpios. Caminhamos lado a lado com os ímpios, conformando-nos com o padrão do mundo. Nós nos colocamos no caminho dos pecadores. Na verdade, queremos tanto ser confirmados no caminho de nossa escolha que zombamos de qualquer pessoa que siga um outro caminho, pois o desdém faz com que nos sintamos melhor acerca de nossas escolhas de vida. Não acreditamos realmente que a bênção proceda da maneira descrita aqui, e não de qualquer outra forma. Portanto, a destruição é o nosso destino. Esse não é um salmo confortável.

Além disso, como dissemos antes, à primeira vista este salmo parece claramente inverídico. Como outros salmos reconhecem, os ímpios costumam ser prósperos (veja Sl 73; tb. Jó 21). Uma das grandes tensões que atravessam o Saltério é aquela que existe entre a afirmação do salmo 1 e as evidências históricas que parecem contradizê-lo em sentido categórico. Como é possível entender essa tensão?

A Bíblia ensina que há um homem, e apenas um ser humano, que realmente se encaixa na descrição do salmo 1 e merece herdar essa bênção. Quando Jesus de Nazaré­ cantou: “Bem-aventurado aquele que…”, ele creu nisso com cada fibra do seu ser. Ele acreditou, viveu e não buscou a bênção em nenhum outro lugar. Ele cria nisso, vivia essa crença e não buscou bênçãos em nenhum outro lugar. Cercado por pressões para andar ao lado dos ímpios, para se colocar no caminho dos pecadores, para se colocar no assento dos zomba­dores, ele se opôs de maneira resoluta aos valores, à zombaria e às ações deles. Escarnecido de forma muito dura, e tendo sentido a dor dessa zombaria com uma intensidade que mal podemos compreender, ele se deleitava com o ensino do seu Pai e o anunciava dia e noite com determinação inabalável e com prazer no coração. Ele é a pessoa que frutifica. O Deus da aliança, seu Pai, cuidou do seu caminho. Portanto, Jesus é o homem sobre o qual repousa a bênção de Deus Pai, ele é aquele com quem Deus, o Pai, se compraz (Mt 3.17; 17.5). Bruce Waltke e James Houston estão corretos quando afirmam: “Jesus Cristo corresponde, de modo exclusivo, ao retrato do homem justo”.[2]

Entender que Jesus é o cumprimento do salmo 1 nos preserva da tirania do moralismo. Quando o moralismo está no comando, acabamos cheios de justiça-própria (se nos julgarmos bem-sucedidos) ou focados, de modo zeloso e, mais cedo ou mais tarde, hipócrita, na conformidade externa (pois esta é tudo que podemos esperar alcançar), ou ainda desesperados ao extremo (pois percebemos que falhamos continuamente). Sem Jesus, o salmo 1 nos estimula apenas a nos esforçarmos mais para sermos bons. Só quando observamos em Jesus o homem bem-aventurado do salmo 1 é que passa a existir esperança. Pois nele, e apenas nele, todas as bênçãos podem ser encontradas.

Nossa resposta, uma vez que cantamos o salmo 1 em Cristo será, portanto, um amálgama evangélico muito agradável de pelo menos duas melodias. Em primeiro lugar, regozijamo-nos com o fato de que Jesus Cristo é o homem bem-aventurado do salmo 1 e que todas as bênçãos de Deus repousam sobre ele e sobre nós, pois estamos nele. Às vezes, achamos que uma passagem da Escritura não foi aplicada de modo adequado até que haja alguma mudança mensurável em nosso comportamento externo. No entanto, não é perda de tempo parar e meditar sobre a maravilha do compromisso sincero de Jesus de Nazaré com a crença de que a bênção só é encontrada, verdadeiramente, na obediência prazerosa à lei de seu Pai. Sua justiça nos é imputada pela graça, por meio da fé. Por sua justiça, somos libertados da condenação.

Em seguida, porém, movidos por seu Espírito em nós, decidimos — sob a graça e com alegria — que nós também evidenciaremos cada vez mais as marcas da pessoa­ bem-aventurada. Nossa decisão de nos afastarmos das pressões do mundo pecaminoso será fortalecida; nossa alegria na lei de Deus será enriquecida e aprofundada; nossa confiança na bênção final e na frutificação será encorajada. Quando estivermos perturbados ao extremo pelas pressões do mundo que insiste em nos conformar a si, o Espírito de Jesus em nós usará a oração desse salmo para fortalecer nossa determinação em sermos diferentes. Quando estivermos lutando contra o legalismo frio, o Espírito de Jesus usará esse salmo para reacender em nosso coração um tenro amor pela lei de Deus. Quando estivermos ansiosos e tentados a “trair” a Deus — declarando-nos cristãos ao mesmo tempo que mantemos nossas apostas e adoramos os deuses deste mundo —, esse salmo aprofundará nossa confiança de que a via de Jesus, o caminho do salmo 1, é de fato a única maneira boa e bem-aventurada de viver.


Notas

[1] John Calvin [João Calvino], Commentary on the book of Psalms (Edinburgh: Calvin Translation Society, 1847), vol. 1, p. 1 [publicado em português por Fiel sob o título Salmos].

[2] Waltke, Houston, The Psalms as Christian worship, p. 143.

Foto de Ben Collins no Pexels


Christopher Ash é autor e escritor residente na Tyndale House em Cambridge. Estudou teologia em Oxford, onde recebeu o prêmio Denyer and Johnson. Trabalhou por muitos anos para o Proclamation Trust como Diretor do Curso de Treinamento Cornhill. Escreveu vários livros, entre eles Trusting God in the Darkness, Psalms for You, Job: The Wisdom of the Cross e Marriage: Sex in the Service of God. É casado com Carolyn, com quem tem quatro filhos e dez netos.
“Os salmos apresentam a plenitude e a riqueza do relacionamento com Deus — algo inimaginável para muitos de nós. Venha comigo em uma jornada para aprender a orar e aprender a sentir.”

Junte-se a Christopher Ash enquanto ele expõe uma seleção dos salmos e ajuda você a entender seu significado, revelando como a fé em Jesus molda nossa leitura e como eles transformam nosso coração e vida hoje.

Escrito para pessoas de todas as idades e etapas da vida, de pesquisadores a novos crentes, de pastores a professores, esse material pode ser utilizado de diversas formas e foi feito para você...

Deixe uma resposta