
A missão do pastor | Kevin Vanhoozer
15/dez/2025
O surgimento das luzes é um dos primeiros indícios da época de Natal. Há luzes nas ruas, velas nas janelas, brilho por todo lado. Nas cidades do Brasil, as luzes do Natal encantam até os moradores mais blasés. Tudo parece envolto em milhões e milhões de estrelas. O que vem bem a calhar, pois o dia 25 de dezembro segue-se ao período do ano mais escuro no mundo mediterrâneo e na Europa, onde as comemorações do Natal aconteciam. Todavia, essas luzes todas não são apenas decorativas; são simbólicas.
As trevas do mundo
Não importa o que você pretende fazer em um cômodo qualquer, primeiro tem de acender a luz ou não conseguirá enxergar nada. O Natal contém muitas verdades espirituais, mas será difícil entender as outras se não compreendermos primeiro essa. Que o mundo é um lugar escuro, e que jamais encontraremos o caminho ou enxergaremos a realidade a menos que Jesus seja a nossa Luz. Mateus, citando Isaías 9.1,2, nos diz que “o povo que vivia em trevas viu uma grande luz; sim, uma luz raiou” (Mt 4.16). Acerca de Jesus, João ensina: “Pois a verdadeira luz, que ilumina a todo homem, estava chegando ao mundo. O Verbo estava no mundo, e este foi feito por meio dele, mas o mundo não o reconheceu” (Jo 1.9,10).
Em que sentido o mundo está “em trevas”? Na Bíblia, o termo “trevas” se refere tanto ao mal quanto à ignorância. Significa primeiro que o mundo está repleto de maldade e sofrimento atroz. Veja o que acontecia na época do nascimento de Jesus: violência, injustiça, abuso de poder, gente sem ter onde morar, refugiados fugindo da opressão, famílias em cacos e uma angústia sem fim. Exatamente como nos nossos dias.
O outro sentido em que nosso mundo está “em trevas” é por ninguém saber o suficiente para curar o mal e o sofrimento nele existentes. Isaías 9.2, “O povo que andava em trevas viu uma grande luz”, é um texto cristão famoso, consagrado pelo Messias de Handel como uma das profecias do nascimento de Jesus. No entanto, é o final de Isaías 8 que explica por que necessitamos da luz de Deus. Nos versículos 19 e 20, vemos pessoas consultando médiuns e feiticeiros em vez de Deus. Até que o capítulo chega ao fim: “Passarão pela terra oprimidos e famintos […] Então, olharão para a terra e verão angústia, escuridão e assombro…” (v. 21,22).
O que acontece aqui? Voltam-se para a terra e para os recursos humanos com o intuito de consertar o mundo. Recorrem a seus especialistas, aos místicos, aos sábios em busca de soluções. Sim, dizem eles, estamos na escuridão, mas podemos vencê-la com nossos próprios esforços. As pessoas afirmam o mesmo hoje em dia. Algumas se voltam mais para o Estado, outras mais para o mercado, e todas se voltam para a tecnologia. Contudo, todas compartilham de idêntica pretenção. As coisas estão obscuras, mas acreditamos ser capazes de pôr fim à escuridão com intelecto e inovação.
Anos atrás, li um anúncio no Jornal que dizia: “O sentido do Natal é que o amor triunfará, e conseguiremos construir um mundo de união e paz”. Em outras palavras, nós temos a luz em nosso interior, portanto somos nós que podemos dissipar a escuridão do mundo. Podemos vencer a pobreza, a injustiça, a violência e o mal. Se trabalharmos juntos, podemos criar um “mundo de união e paz”.
Será mesmo? Um dos líderes mundiais do fim do século 20 mais dado à reflexão foi Václav Havel, primeiro presidente da República Tcheca. Ele ocupava uma posição estratégica, a partir da qual espreitava em profundidade tanto o socialismo quanto o capitalismo, e não se mostrou otimista de que um ou outro pudesse, por si só, solucionar os maiores problemas humanos. Sabia que a ciência sem o direcionamento dos princípios morais nos dera o Holocausto. Concluiu que nem a tecnologia, nem o Estado, tampouco o mercado sozinho podiam nos salvar do conflito nuclear, da violência étnica ou da degradação ambiental. “‘A busca de uma vida de bem-estar não ajudará a humanidade a se salvar, nem a democracia sozinha é suficiente’, disse [Havel]. ‘Um retorno para Deus e a busca de […] Deus são necessários’.”[1] A raça humana se esquece a todo instante, ele acrescentou, de que “não é Deus”.[2]
O significado da luz
Quando Isaías fala da luz de Deus “resplandecendo” sobre um mundo em trevas, usa o sol como símbolo. A luz do sol traz vida, verdade e beleza.
O sol nos dá vida. Se ele se apagasse, congelaríamos. É a fonte de toda vida. Por isso a Bíblia também diz que só em Deus “vivemos, nos movemos e existimos” (At 17.28). Existimos apenas porque ele nos sustenta, mantendo-nos em pé a cada instante. Você toma seu ser emprestado dele. Isso é verdade não só em relação a seu corpo físico, mas também quanto a seu espírito, sua alma. De acordo com a Bíblia, perdemos o relacionamento original, pleno, correto com Deus que tínhamos no início (Gn 3.1-24). Essa é a razão pela qual acabaremos conhecendo a morte física e por que hoje experimentamos morte espiritual: perda de sentido e esperança, desejos descontrolados e instigados por vícios, insatisfação profunda que não pode ser aplacada, vergonha e lutas com a identidade e incapacidade de mudar.
O sol nos mostra a verdade. Se você dirigir um carro à noite sem acender os faróis, é provável que colida. Por quê? A razão é que o farol revela a verdade, como as coisas são de fato, e não haverá verdade sufi ciente que lhe permita manobrar o carro com segurança. A Bíblia também afirma que Deus é a fonte de toda verdade (1Jo 1.5,6). Em um primeiro plano, a única razão para você saber algo é o fato de Deus existir. Ele fez sua mente e suas faculdades cognitivas. Em outro, não nos é possível saber quem é Deus a menos que ele se revele a nós, o que ele o faz na Bíblia. Só por meio dele sua capacidade de raciocínio funciona, e só por sua Palavra você pode compreender verdadeiramente quem ele é e, portanto, quem você é: criação de Deus.
O sol é belo. A luz deslumbra e dá alegria. Essa é uma verdade literal. Muitos sofrem de depressão em locais onde só há poucas horas com luz do dia em determinadas épocas do ano. Precisamos de luz para ter alegria. Deus é a fonte de toda beleza e alegria. Há uma frase famosa de Santo Agostinho: “Nosso coração não tem sossego até encontrar descanso em ti”.[3] Agostinho acreditava que, mesmo quando você parece desfrutar de outra coisa qualquer, Deus é a real fonte da sua alegria. O que você ama vem dele e é passível de ser amado por trazer a assinatura dele. Toda alegria se encontra na verdade em Deus, e qualquer coisa de que você desfrute é um derivado, pois o que de fato está procurando é ele, saiba você disso ou não.
A luz raiou
Só Deus, então, tem a vida, a verdade e a alegria que nos faltam e que não somos capazes de gerar. Como essa luz divina pode “raiar” ou, como diz Isaías 9, “resplandecer” literalmente sobre nós? Os versículos 6 e 7, os mais conhecidos do capítulo, respondem com atordoante objetividade. O texto nos fala que a luz veio “porque um menino nos nasceu”. O menino a traz, pois ele é “Maravilhoso Conselheiro, Deus Forte, Pai Eterno, Príncipe da Paz”. Digno de nota é que os quatro títulos aplicados a essa criança pertencem só a Deus. Ele é o Deus poderoso. É o Pai eterno, que quer dizer Criador; no entanto, ele nasceu. Não há nada parecido com essa afirmação em nenhuma das outras grandes religiões. Ele é um ser humano. Contudo, não se trata apenas de uma espécie de avatar do princípio divino. Ele é Deus!
Dizer que “comemoramos” esse fato no Natal chega a ser quase limitador. Estupefatos, arregalamos os olhos, perdidos em deslumbramento, amor e louvor. No restante deste livro, trataremos das várias implicações de Deus ter nascido em nosso mundo. Mencionemos apenas duas aqui, no início.
Antes de tudo, se Jesus Cristo é mesmo Deus Forte e Pai Eterno, não se pode simplesmente gostar dele. Na Bíblia, as pessoas que o viram e ouviram de verdade nunca reagiram com indiferença ou moderação. A partir do momento que compreendiam o que ele afirmava acerca de si próprio, ou tinham medo dele, ou ficavam furiosas com ele, ou se ajoelhavam diante dele e o adoravam. Mas ninguém simplesmente gostava dele. Ninguém dizia: “Ele me inspira tanto. Faz com que eu deseje levar uma vida melhor”. Se o bebê que nasceu no Natal é o Deus todo-poderoso, você deve servi-lo por inteiro.
Segundo, se Jesus é Maravilhoso Conselheiro e Príncipe da Paz, você deveria sentir vontade de adorá-lo. Por que ele é chamado de “conselheiro”? Quando você passa por grande dificuldade, é bom conversar com alguém que já trilhou esse caminho, com conhecimento pessoal do que você está enfrentando. Se Deus de fato nasceu em uma manjedoura, então temos algo que nenhuma outra religião jamais afirmou ter. Temos um Deus que o compreende de verdade, na sua experiência mais profunda. Nenhuma outra religião afirma que Deus sofreu, que precisou ser corajoso, que sabe como é ser abandonado pelos amigos, esmagado pela injustiça, torturado e morto. O Natal mostra que ele sabe o que você está passando. Quando você lhe fala, ele entende.
Dorothy Sayers, ensaísta e romancista britânica, disse anos atrás:
A encarnação significa que, seja qual for a razão pela qual Deus escolheu deixar-nos cair […] para sofrer, para nos sujeitar às dores e à morte —, ainda assim ele teve a honestidade e a coragem de provar do próprio remédio. […] Não pode cobrar nada do homem que não tenha cobrado de si próprio. Passou por toda a experiência humana — das irritações triviais da vida familiar, das restrições limitadoras do trabalho duro e da falta de dinheiro aos piores horrores da dor e da humilhação, da derrota, do desespero e da morte. […] Nasceu em pobreza e […] sofreu dor infinita — tudo por nós — e achou que valia muito a pena.[4]
Isaías o chama de Maravilhoso Conselheiro, significando que ele é belo. Talvez agora vislumbremos a razão disso. Ele era detentor da superioridade infinita de ser Deus todo-poderoso, mas tornou-se um de nós, enredado em nossa condição, a fim de conhecer nossa escuridão. Salvou-nos indo para a cruz, e fez isso em uma atitude absolutamente voluntária, espontânea, por puro amor. Isso é belo. Quando consideramos algo belo, não apenas um dever, demoramo-nos e permanecemos diante disso que achamos belo, visto que proporciona satisfação em si mesmo.
Desse modo, a razão pela qual deveríamos obedecer-lhe, não só por sermos obrigados, mas também por querermos, é que, à luz de tudo que tem feito por nós, ele é maravilhoso.
Resumindo, Jesus é a luz divina do mundo por trazer uma nova vida para substituir nossa apatia espiritual, por nos mostrar a verdade que cura nossa cegueira espiritual e porque ele é a beleza que anula nossos vícios ligados a dinheiro, sexo e poder. Como Maravilhoso Conselheiro, ele caminha conosco quando adentramos e atravessamos a sombra da morte (Mt 4.16), onde ninguém mais pode nos acompanhar. Ele é uma luz para nós quando todas as outras luzes se apagam.[5]
Notas
[1] 1 Robert Marquand, “Václav Havel: crisis of ‘human spirit’ demands spiritual reawakening”, Christian Science Monitor, December 22, 2011, disponível em: http://www.csmonitor.com/World/ Europe/2011/1223/Vaclav-Havel-crisis-of-human-spirit-demands-spiritual-reawakening, acesso em: 19 mar. 2017.
[2] Stanford University News Service, “Czech president Václav Havel’s visit to Stanford” (news release), October 4, 1994, disponível em: http://web.stanford.edu/dept/news/pr/94/941004Arc4108. html, acesso em: 19 mar. 2017.
[3] 4 Augustine, Confessions, tradução para o inglês de Henry Chadwick (Oxford: Oxford University Press, 1991) [edição em português: Confi ssões, tradução de Frederico Ozanam Pessoa de Barros, Introdução de Riolando Azzi (Rio de Janeiro: Ediouro, 1993)].
[4] Dorothy L. Sayers, “Th e greatest drama ever staged”, in: Creed or chaos? And other essays in popular theology (London: Hodder and Stoughton, 1940), p. 6.
[5] J. R. R. Tolkien, Th e two towers (New York: Random House, 1986), p. 372 [edição em português: As duas torres, tradução de Lenita Maria Rimoli Esteves, Almiro Pisetta (São Paulo: Martins Fontes, 1994)].
Trecho extraído com adaptação da obra “O natal escondido“ de Timothy Keller, publicada por Vida Nova: São Paulo, 2017, p. 17-29.
![]() | Timothy Keller nasceu e cresceu na Pensilvânia, com formação acadêmica na Bucknell University, no Gordon-Conwell Theological Seminary e no Westminster Theological Seminary. Ele é pastor da Redeemer Presbyterian Church, em Manhattan. Já esteve na lista de best-sellers do New York Times e escreveu vários livros, entre eles A fé na era do ceticismo, Igreja centrada, A cruz do Rei, Encontros com Jesus, Ego transformado, Justiça generosa, entre outros, todos publicados por Vida Nova. |
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![]() | Mesmo quem não é cristão acredita estar bem familiarizado com a história do Natal. As versões natalinas do bebê Jesus deitado em uma manjedoura ornamentam prédios, lojas, shoppings, fachadas e jardins e entornos de igrejas, e melodias sobre pastores e anjos se fazem soar por toda parte. Mas, mesmo com a abundância dessas referências cristãs na cultura popular, quantos de nós pararam para de fato examinar com atenção as partes mais difíceis dessa história bíblica? Em O Natal escondido, Keller conduz o leitor por uma viagem iluminadora rumo ao surpreendente cenário da Natividade. Ao compreender a mensagem de esperança e de salvação encravada no relato bíblico do nascimento de Jesus, o leitor vai experimentar o poder redentor da graça de Deus de maneira mais profunda e significativa. Publicado por Vida Nova. |
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