Vamos celebrar: Cristo ressurgiu! | Lucas Sabatier
01/abr/2015Sábados tecnológicos e outras estratégias para um mundo digitalizado | Michael Sacasas
08/abr/2015Em 2013, o diretor Martin Scorcese lançou um filme polêmico, pesado, daqueles que não dá para você assistir com a namorada, a mamãe e o papai. Meio que envolve lançamento de anões por esporte, inserção de cocaína por vias pouco convencionais e um nível de imoralidade tão absurdo que mal dá para acreditar que o filme é baseado em uma história real. E quem de fato leu o livro que deu origem a O Lobo de Wall Street ainda diz que as partes pesadas mesmo ficaram só no livro. Neste filme, encontramos os absurdos destrutivos que um bilionário viciado em dinheiro é capaz de fazer.
Não é um filme que necessariamente fala mal do capitalismo, e sim um filme que alerta sobre os problemas de deixar a ganância ilimitada solta, servindo recompensas àqueles que vampirizam a sociedade. Ali, o capitalismo é uma ferramenta, uma faca: pode cortar um pão ou cortar uma garganta.
Em 2014, o diretor Dan Gilroy, roteirista veterano de Hollywood, escreve e dirige seu primeiro longa, e aqui o negócio muda bastante. Com uma visão muito mais direta sobre a filosofia americana de “vencer a qualquer custo”, de “não medir esforços para estar por cima”, Gilroy quase cria um filme de terror, dentro de uma comédia terrivelmente escura e realista.
Em O Abutre, Jake Gyllenhal interpreta um trambiqueiro chamado Lou Bloom, que parece pertencer a uma religião chamada “corporativismo”. Ele assalta pessoas, age com violência, vive de pequenos crimes. Mas quando começa a falar, você não ouve a parca educação de um criminoso comum, ou ainda um discurso vitimizado sobre como sua vida é injusta. Bloom é um carismático evangelista, e seu evangelho é “crescer”. Quando vai pedir um emprego, dispara ininterruptamente suas vantagens, sua vontade de trabalhar e sua lealdade para com a empresa. Fala sobre alcance de metas, sobre compromisso, sobre plano de carreira, e o faz com a paixão de um professor entusiasmado. E com a gana de um chacal faminto. O cômico é o quanto Bloom acredita na própria enxurrada de besteiras que despeja o filme inteiro. Sabe todos aqueles jargões que ouvimos em palestras motivacionais de executivos de sucesso, e que tentam substituir trabalho e esforço com atalhos e explicações loucas para cases de sucesso? Encontre uma palestra sobre criatividade publicitária para mais referências.
Cansado de roubar cobre para sobreviver, numa madrugada, vagando pelas ruas de Los Angeles, se depara com um acidente e nota quão rápido aparecem equipes de filmagem para capturar imagens chocantes. Equipes que partem o mais rápido possível para vender a notícia para o jornal matutino mais sanguinolento que conseguirem. E então decide que encontrou seu ramo. Vai viver de vender a desgraça alheia como “informação” e “entretenimento”.
A própria executiva da televisão delimita as regras: a audiência só se importa com “cidadãos de bem” (ênfase nas aspas). Quanto mais ricas, brancas e moradoras de área nobre forem as vítimas, melhor. Quanto mais proximidade, violência e choque, mais dinheiro Bloom recebe. E enquanto não está convencendo seus interlocutores, empregados e colegas com uma fanfarra de dados corporativos e projeções de crescimento, Bloom também maquina para levar as tragédias para além, custe o que custar.
Lou Bloom é um psicopata, e um psicopata com um objetivo. Ele não quer “dinheiro”. Ele não quer “poder”. Ele quer “chegar lá”. A subida é muito mais importante para ele do que o topo. O filme é de uma ironia finíssima ao transformar em herói uma pessoa tão alucinada e execrável como Bloom, e o faz porque, normalmente, é exatamente isso o que todo mundo em volta faz. O self-made man, que chega, conquista, e conta os louros é caricaturado aqui como um maníaco esbugalhado que não dorme e não come até atingir seus objetivos. Só que enquanto a cultura ocidental (e quase que todo o cinema ocidental) vê nisso a maior de todas as nobrezas, Gilroy e Gyllenhal criam com Bloom a imagem do capitalismo amoral que, sem pudor nenhum, é o sonho de muita, muita gente.
Gyllenhal está espetacular no filme. Seus olhos, sua entrega, seu porte físico faminto e até sua voz estão mudados para criar um ser humano que quer ser um predador, mas não tem o porte para isso. E Gilroy, indicado ao Oscar por Roteiro Original, além de criar uma história redonda e efetiva, consegue filmar uma Los Angeles escura e assombrosa, perfeita para a trama.
“O Abutre” vai fazer você se contorcer. Vai fazer você questionar. E vai fazer você prestar atenção para quem o mundo está batendo palmas. Se o amor ao dinheiro é a origem de todo o mal, o amor ao poder, ao ego e ao perfeccionismo não devem estar muito atrás. Com uma eficiência demoníaca, Bloom obtém sucesso em suas empreitadas, enfrentando obstáculos e sendo criativo para contorná-los. Bloom cresce. Bloom desabrocha.
Em outro grande filme, Os Suspeitos, comenta-se sobre como o maior truque do diabo foi fazer o mundo acreditar que ele não existia. Em O Abutre, percebemos mais do que isso. A nossa percepção do que é “positivo” e “negativo” foi desarticulada para dar lugar a uma cosmovisão – aceita em 9 entre 10 escolas, governos, estabelecimentos, igrejas e lares – que prega a estagnação como o inferno, e a falha como a morte. E uma sociedade assim gera psicopatas loucos por “mais”.
“O Abutre” mostra que aquele político que venderia a mãe por mais um voto, sob muitas perspectivas, já vendeu. E que nós podemos estar em qualquer um dos lados. Podemos ser a vítima ilegítima do “crescimento necessário de um empreendedor nato”, afinal não se faz uma omelete sem esmigalhar ovos. Podemos ser o concorrente que não enforcou todos os limites morais para atingir o sucesso, e por isso é defenestrado pelo sistema. Podemos ser o superior que não distingue a bomba relógio no meio de todo o dinheiro que seu pupilo está trazendo. Ou podemos ser Bloom, e ter um animal escondido por trás de um sorriso ensaiado e um aperto de mão firme.
Cuidado com aquele colega que aplaude a “visão” de Lou Bloom. O filme é uma comédia de humor negro, mas tem muita gente que, lá no fundo, queria que fosse um vídeo motivacional.
Silas Chosen é roteirista, cineasta, publicitário, ilustrador e é viciado em cinema e histórias. Escreve para sites e programas de rádio sobre cinema, cultura pop e cristianismo desde 2004. Faz parte da 4U Films, ministério de cinema independente. |