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24/nov/2023O gênero narrativas de herói (ou narrativa heroica) é praticamente sinônimo da narrativa em si. Narrativas de herói podem ser definidas, de modo geral, como relatos construídos em torno da vida e das façanhas do protagonista ou herói (termo que uso genericamente para personagens masculinos e femininos). A maioria das narrativas segue essa linha. Devemos, contudo, apresentar uma definição mais precisa do conceito de herói do que simplesmente identificá-lo como protagonista literário. Um herói literário é um tipo específico de protagonista, como afirma a definição a seguir:
O herói […] tradicional deve ser mais do que apenas a figura principal ou protagonista de uma obra literária. O verdadeiro herói expressa uma norma social e moral aceita; sua experiência reencena os conflitos importantes da comunidade que o produz; ele é dotado de qualidades que cativam a imaginação popular. Também convém observar que o herói é capaz de agir, e de fazê-lo para o bem. Mais importante de tudo, a narrativa de sua experiência indica que a vida tem um plano relevante e um fim.[1]
Essa é a estrutura que proponho aplicar a narrativas bíblicas selecionadas.
A criação de heróis é uma das atividades mais importantes das culturas. Aliás, a escolha de um herói é uma das atividades humanas mais básicas. Heróis são sempre um produto da imaginação humana. A vida real fornece a matéria-prima com a qual a imaginação constrói heróis, mas a vida não fornece heróis completamente formados. Ao criar heróis, a imaginação individual e cultural seleciona, intensifica, modela e interpreta a matéria-prima que a vida fornece; enfoca um papel, uma qualidade ou um ato selecionado de determinada pessoa.
Os heróis que vemos na literatura e na Bíblia representam um dos impulsos mais antigos e mais universais da raça humana: o desejo de corporificar normas aceitas de pensamento, sentimento ou ação em um personagem cujo destino é típico ou representativo e, em algum sentido, exemplar. O herói é uma figura idealizada, alguém que as pessoas respeitam e admiram. No entanto, heróis não precisam ser inteiramente idealizados e, na Bíblia, raramente o são.
Devemos, portanto, nos guardar de um tipo especialmente frívolo e persistente de interpretação equivocada, a saber, a tentativa de tornar tudo o que o herói bíblico faz uma norma a ser imitada. O herói das narrativas da Bíblia nos dá exemplos positivos de comportamento para seguirmos e exemplos negativos para evitarmos. Em qualquer um dos casos, as narrativas de herói são, em algum sentido, relatos exemplares, embora não em um sentido simples ou moralizador.
Além de o herói ser idealizado, ele também é representativo. O que acontece com ele é algo com que todos podem se identificar. Vemos a nós mesmos nos heróis da Bíblia. Suas narrativas nos dizem não apenas o que aconteceu, mas também o que acontece. Essas pessoas não são espécimes em um museu histórico; são indivíduos a partir dos quais podemos “construir pontes” com nossas experiências. Heróis têm um peso de significado maior do que eles próprios. Em suas qualidades e em sua vida, o significado profundo da vida se revela.
Uma vez que os heróis resumem aquilo que uma cultura inteira quer dizer, é proveitoso enxergar a imagem do herói como um comentário sobre três grandes questões da vida: valores (as coisas mais importantes e as menos importantes), moralidade (o que constitui o bom e o mau comportamento) e realidade (o que verdadeiramente existe na vida e no universo). Outra estratégia útil para inferir o significado das narrativas de herói é analisar sua perspectiva implícita acerca do indivíduo, da religião e da sociedade.
Os heróis podem ser divididos em quatro categorias principais. Heróis idealizados são modelos de virtude que somos chamados a admirar e imitar. Heróis trágicos não são vilões, mas, em essência, pessoas boas afligidas por um defeito trágico de caráter que as leva a cometer graves erros. Heróis cômicos também são personagens falhos, mas sua resiliência ao vencer apesar de seus erros faz com que nos identifiquemos com eles. Na falta de uma expressão melhor, chamo a quarta categoria heróis realistas. São, basicamente, “um de nós”. A maioria dos heróis bíblicos se encaixa nessa categoria. Quando nos aproximamos do extremo oposto à idealização, encontramos personagens tão falhos, fracos ou malsucedidos que o termo herói se torna inadequado, e devemos considerar as narrativas sobre esses personagens sátiras ou narrativas de vilões, e não narrativas de herói.
Heróis cumprem várias funções importantes, e elas nos ajudam a abordar as narrativas de herói da Bíblia. Heróis servem de inspiração. Como raça humana, exigimos imagens de grandeza. Heróis atendem a essa exigência. Também codificam valores e crenças pessoais e culturais, e focalizam sua consciência. Com frequência, heróis nos ajudam a fazer as pazes com fraquezas e limitações humanas.
Identificamos os heróis sobre os quais lemos nas narrativas de cinco maneiras (idênticas às maneiras pelas quais qualquer personagem literário existe): habilidades pessoais, aptidões, qualidades e características; ações; pensamentos e sentimentos (o que inclui atitudes, motivações, objetivos e reações); relacionamentos (o que inclui sua influência sobre outros) e papéis. O ponto de partida consiste em descrever um herói do modo mais exato possível em relação a esses itens. Com base nessa descrição, podemos interpretar o que o narrador está dizendo a respeito da vida, especialmente a respeito de valores, moralidade e realidade.
Para concluir, desejo observar que narrativas de herói são, primeiramente, narrativas. Para entendê-las e lê-las com prazer, temos de nos lembrar de tudo o que falei, nos capítulos anteriores, sobre as narrativas em geral. As considerações que acabamos de discutir são elementos que devemos acrescentar à nossa análise mais geral das narrativas. Uma vez que as narrativas de herói enfocam o protagonista de forma tão acentuada, não há como errarmos de forma grave se nos concentrarmos apenas no herói. Até mesmo o conflito da trama gira em torno dos obstáculos que o herói enfrenta. O significado principal de uma narrativa de herói se torna evidente quando prestamos atenção no experimento de vida do herói e em seu resultado.
Em resumo, narrativas de herói tratam das lutas e dos triunfos da raça humana. O herói representa todo um grupo e, em grande medida (embora não necessariamente por inteiro), é um personagem idealizado. O que acontece com o herói é um comentário implícito a respeito da vida e da realidade e tem por objetivo oferecer ao leitor entendimento sobre como viver.
Quase todas as narrativas da Bíblia são narrativas de herói. É proveitoso analisar as narrativas de Gênesis, das quais tratamos nos dois capítulos anteriores, como narrativas de herói. Para ilustrar a dinâmica da narrativa de herói, volto a atenção para os relatos sobre Daniel, Gideão, Rute e Ester. Trata-se, contudo, de uma lista extremamente seletiva. A Bíblia é, de modo bastante literal, uma antologia de narrativas de herói.
[1] Walter Houghton e G. Robert Stange, orgs., Victorian poetry and poetics, 2 ed. (Boston: Houghton Mifflin, 1968), p. xxiii.
Trecho extraído e adaptado da obra “Uma introdução literária à Bíblia”, de Leland Ryken, publicada por Vida Nova: São Paulo, 2023, p. 123-126. Traduzido por Susana Klassen. Publicado no site Cruciforme com permissão.
Leland Ryken (PhD, University of Oregon) é professor emérito de Literatura Inglesa no Wheaton College. É orador frequente nos encontros anuais da Evangelical Theological Society e serviu como orientador de estilo para a edição da English Standard Version Bible. É autor, coautor ou editor de quase quarenta livros, entre eles, "A complete handbook of literary forms in the Bible", "Effective Bible teaching" e "Pastors in the classics". |