A catolicidade de espírito de Calvino | Philip Schaff

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João Calvino (1509-1564)

Calvino era um francês por nascimento e educação, um suíço por adoção e obra e um cosmopolita em espírito e objetivo.

A Igreja de Deus era o seu lar, e essa Igreja não conhece limites de nacionalidade e idioma. O mundo era sua paróquia. Tendo deixado o papado, ele ainda permaneceu um católico no melhor sentido dessa palavra, e orou e trabalhou pela unidade de todos os crentes. Como seu amigo Melâncton, ele lamentou profundamente as divisões do protestantismo. Para remediá-las, ele estava disposto a atravessar dez oceanos. Assim escreveu ele, em resposta ao Arcebispo Cranmer, que o convidara (em 20 de março de 1522), com Melâncton e Bullinger, para uma reunião no Lambeth Palace a fim de redigirem um credo consensual para as Igrejas Reformadas. Após expressar seu zelo pela Igreja universal, ele continua (em 14 de outubro de 1522):

Tomara fosse possível congregar, em algum lugar, homens de várias igrejas, eminentes por sua erudição, e que, depois de discutirem cuidadosa e individualmente os principais pontos de fé, de seus unânimes juízos legassem à posteridade a verdadeira doutrina da Escritura. Este outro problema deve também ser contado entre os principais males da nossa época, a saber, que as igrejas são tão divididas que agora quase não há notícia de companheirismo humano entre nós, muito menos da comunhão cristã, da qual todos fazem confissão, mas que poucos praticam com sinceridade. Se os homens de saber se conduzem com reserva maior do que convém, a mesma e pesadíssima censura aplica-se também aos próprios líderes que, igualmente concentrados nas próprias atividades pecaminosas, são indiferentes à segurança e à piedade integral da igreja; ou que, individual e particularmente satisfeitos com a própria paz, não têm consideração pelos outros. Assim é que, dilacerados os membros da igreja, o corpo sangra. Isso me aflige de tal maneira que, se eu fosse de algum préstimo, cruzaria voluntariamente até mesmo dez mares, se necessário, por causa disso. Caso fosse apenas uma questão de prestar assistência ao reino da Inglaterra, tal motivo seria presentemente para mim mais do que suficiente. No entanto, considerando que um entendimento sério e apropriadamente ajustado entre os homens de erudição sobre a regra da Escritura é ainda uma aspiração em torno da qual as igrejas, conquanto divididas noutras questões, devem se unir, penso que seja certo, a qualquer custo de trabalho e dificuldade, buscar o conseguimento desse objetivo. O Sr. Felipe [Melanchton] está demasiadamente distante para que seja possível um rápido intercâmbio de cartas. O Sr. Bullinger provavelmente já vos tenha escrito antes desse tempo. Tomara eu tivesse tanta capacidade quanto a vontade que tenho de empenhar-me! [1]

Este nobre projeto foi frustrado ou indefinidamente adiado pela morte de Eduardo VI e o martírio de Cranmer, mas ele continua vivo como um pium desiderium [desejo piedoso]. Em oposição a uma uniformidade forçada e mecânica, Calvino sugeriu a ideia de uma unidade espiritual com variedade denominacional, ou de um rebanho em muitos apriscos sob um pastor. Esta ideia foi adotada em nossa era pela Evangelical Alliance, o  Pan-Anglican  Council,  a Pan-Presbyterian Alliance, a Pan-Methodist Conference, a Associação Cristã de Moços,  a Christian Endeavor Societies e associações voluntárias semelhantes, as quais reúnem cristãos de diferentes igrejas e nacionalidades para cooperação e conferência mútuas, sem interferir em sua organização independente e preferências denominacionais.

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Um monumento duradouro da catolicidade de Calvino é sua imensa correspondência, que ocupa dez volumes da última edição de suas obras, e abarca ao todo nada menos que quarenta e duas mil e setenta e uma cartas. Ele deixou para Beza, com poder discricionário, uma coleção de manuscritos para deles publicar aquilo que ele considerasse capaz de promover a edificação da Igreja de Deus. Em consequência, Beza editou a primeira coleção das cartas de Calvino em 1575, em Genebra, onze anos após a morte do reformador. Esta edição foi reimpressa várias vezes, e enriquecida gradualmente com cartas descobertas por Liebe, Mosheim, Bretschneider, Crottet, Jules Bonnet, Henry Beveridge, Reuss e Herminjard em várias bibliotecas.

Nenhum teólogo deixou para trás uma correspondência igual em amplitude, destreza e importância. Em suas cartas, Calvino discute os mais profundos tópicos da religião; ele aconselha como um pastor fiel; administra conforto a irmãos que sofrem; desabafa com seus amigos; resolve questões políticas difíceis, como um sábio estadista, nas dificuldades da pequena República com Berna, Savoy e França. Entre seus correspondentes estão todos os reformadores remanescentes – Melâncton,  Bucer,  Bullinger,  Farel,  Viret,  Cranmer,  Knox,  Beza,  Pedro Mártir, Jan Laski; monarcas – rainha Margarida de Navarra, duquesa Renata de França, rei Sigismundo Augusto da Polônia, o Príncipe-Eleitor Otto Heinrich do Palatinado, o duque Christopher de Wittenberg; estadistas e representantes de governo, como o Duque de Somerset, o Protetor da Inglaterra, príncipe Radziwil da Polônia, Gaspar II de Coligny da França, os magistrados de Zurique, Berna, Basel, St. Gall e Frankfurt; e humildes confidentes e mártires a quem ele enviou cartas de conforto na prisão.

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[1] João Calvino. Cartas de João Calvino. Cultura Cristã, 2009, p. 96. Tradução de Marcos Vasconcelos.

Fonte: SCHAFF, Philip. History of Christian Church, Volume VIII: Modern Christianity. The Swiss Reformation (Grand Rapids, MI: Christian Classics Ethereal Library), p. 676-678.

Traduzido por Leonardo Bruno Galdino e revisado por Jonathan Silveira.

Philip SchaffPhilip Schaff (1819-1893), foi um teólogo protestante e historiador da igreja cristã.

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