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13/nov/2023As maldições nos salmos conseguem causar dificuldades para muitos cristãos. Alguns olham para essas porções da Bíblia com certa desconfiança. Não conseguem entender como palavras tão duras foram incorporadas a um livro tão especial, usado constantemente de forma direta no culto ao Deus único e verdadeiro. Isso tem levado a duas maneiras de lidar com a questão. A primeira é evitar totalmente as passagens que contêm maldições, e a segunda tentar diminuir o impacto causado por elas. Ambas as formas são incorretas, pois desconsideram o sentido real das passagens e acabam por esconder o significado de uma boa parte da Bíblia, pois as maldições estão presentes em quase um terço dos salmos.
Esta dificuldade atual para interpretar corretamente as maldições do Saltério parece ser fruto de uma cristianização inconsciente desse livro e de uma descontextualização parcial que não leva em conta o fato de Israel não fazer diferenciação entre a vida secular e a religiosa, assim como é feito por muitos nos dias atuais em nossa cultura.
Com facilidade e até com alegria, muitos cristãos atuais aceitam a forma como Davi deu cabo do gigante Golias. Ele ter derrubado o adversário com uma pedra causa admiração, e ter matado o filisteu cortando-lhe a cabeça e levando-a embora como se fosse o seu troféu quase passa despercebido (1Sm 17.50-57). Quem sabe, essa reação ocorra por se tratar de um contexto de guerra. Agora, quando o que é utilizado por Davi, ou outro poeta, ou simplesmente um adorador qualquer que se apropria dos salmos em seu culto a Deus, não é uma espada, mas sim as palavras de uma oração, pedindo o castigo, ou até a destruição do inimigo opressor, então a reação dos leitores, que deveria ser mais positiva, se torna negativa. Não é fácil para o cristão, ensinado a orar em favor dos inimigos, aceitar que palavras como: “Que seus filhos fiquem órfãos, e viúva, a sua mulher” (Sl 109.9), saiam dos lábios de alguém que está em comunhão com Deus. Mais difícil ainda se concluir que o salmo em questão teve a sua origem específica na liturgia do culto e não em meio às dificuldades do dia a dia.[1]
Desta forma de pensar, cristianizando o saltério e descontextualizando-o, surgem as dificuldades e as tentativas de conciliar as maldições que foram utilizadas nele com o restante das Escrituras. Halley, por exemplo, ao tentar explicar a presença das maldições nos salmos, acaba dando a impressão de que Deus foi tolerante para com os pecados de seu povo no Antigo Testamento, por ter um propósito geral como meta a ser alcançada. Ele diz:
Deus agora não desculpa algumas coisas que tolerava outrora. Nos tempos do Antigo Testamento, até certo ponto, por motivo de conveniências, Deus condescendeu com as ideias dos homens. Nos tempos do Novo Testamento Deus começou a tratar os homens de acordo com as suas próprias ideias.[2]
Não soam estranhas essas palavras que apresentam Deus como tolerante com o pecado no Antigo Testamento e intolerante no Novo? Certamente que sim. Isso é uma tentativa de justificar algo que o intérprete considerou falho.
Parece que Scroggie chega mais perto da verdade em relação à interpretação das maldições nos salmos, ainda que deixando algumas lacunas. Ele sugere que para uma boa interpretação e aplicação atual das maldições contidas nos salmos, o intérprete deve levar em conta que:
1) A Lei não é contrária ao evangelho, mas também não é igual;
2) Os pedidos de vingança encontrados nesses salmos não devem ser julgados pelo padrão das cartas de Paulo;
3) As maldições não são fruto de sede de vingança pessoal;
4) Elas contêm uma repulsa digna de alguém zeloso pela causa de Deus;
5) Elas apelam para Deus como o executor da justiça;
6) Revelam fé no governo moral do mundo;
7) Consideram pecado e pecador em conjunto;
8) Esperam a punição do pecado para esta vida;
9) Revelam o desejo de que a vontade de Deus seja feita na terra.
Deve-se então, segundo ele, tolerar o estágio de revelação alcançado na época de tais salmos e perceber que os princípios fundamentais das maldições não estão ausentes do Novo Testamento. O amor pela justiça não é contrário ao que o Novo Testamento ensina, mas a maneira como ele é apresentado no Antigo Testamento é que se mostra estranha para os leitores atuais.[3] Alguns desses itens propostos por Scroogie são viáveis, outros nem tanto.
Anderson concorda com algumas partes dessa lista apresentada por Scroogie. Segundo ele, para se interpretar as maldições proferidas pelos salmistas, deve ser levado em conta que para eles havia apenas uma pequena distinção entre o pecado e o pecador. Também que a maioria das pessoas daquela época esperava justiça de Deus nesta vida e não no futuro, como mais tarde a grande massa dos cristãos passaria a acreditar. Ainda, na aliança que Deus fez com o povo de Israel foi colocado diante dele a bênção e a maldição, dependendo de suas atitudes em relação a ela. Nada mais natural para o salmista, então, do que descrever o castigo do ímpio com a mesma terminologia encontrada em Deuteronômio 27.15-26; 28.15-68; e Levítico 26.14-39.[4]
Corbon vai contra o item 3 da lista de Scroggie, apresentada acima, afirmando que os gritos de maldição lançados pelos salmistas (Sl 5.10; 35.4ss; 83.9-18; 109.6-20; 137.7ss etc.) chocam muitas vezes o leitor cristão por se perceber neles claramente o desejo de vingança e o ressentimento pessoal ou nacional. Contudo, afirma que deve ser levado em conta o desejo de justiça, o qual só poderia ser atingido com a destruição do pecado.[5]
Um dos argumentos utilizados por Scroggie para amenizar o impacto das maldições é dizer que o pensamento dos hebreus, ou seja, a maneira de pensar deles, era concreta e não abstrata, o que faz com que não distingam entre o pecado e o pecador. Para ele, essa distinção só é feita no Novo Testamento.[6] Ao dizer isso, parece que Scroggie não está levando em conta que a grande maioria dos escritores do Novo Testamento, embora tenham escrito em grego, são comprovadamente de origem judaica. Será que a forma de pensar dos judeus teria se modificado tanto? Ou será que há uma má interpretação ou supervalorização dessa tese do pensamento concreto? São assuntos que devem ser repensados.
Outra tentativa de Scroggie é apelar para o fato de ser Israel o povo escolhido por Deus. No pensamento dele, se alguém é inimigo dessa nação, é visto como inimigo do próprio Deus. Ele cita Salmos 74.10-22; 79.12; e 83 como base para esse argumento,8 mas esquece de que nem todas as maldições são contra nações inimigas, ou de inimigos da nação. Existem maldições, e são a maioria, que parecem mostrar o inimigo como sendo pessoal e até mesmo membros do próprio povo de Israel. Pessoas que foram íntimas do salmista e que agora se rebelam contra ele. O que dizer de palavras como estas, dentro de um salmo que contém maldições: “Retribuem minha amizade com acusações; mas eu me dedico à oração” (Sl 109.4). Elas mostram os inimigos como pessoas que foram íntimas do salmista.
Archer usa a mesma linha de pensamento de Scroggie. Ele só inverte a relação de inimizade. Scroggie considera que os inimigos do povo de Deus se tornam inimigos do próprio Deus. Archer desvia a atenção mudando o objeto da inimizade. Para ele as maldições são lançadas contra os inimigos de Deus e não do povo, mas que se tornam inimigos do povo de Deus devido à estreita identificação com a causa de Deus.[7]
Mesquita, não tratando de Salmos, ao comentar a passagem de Lamentações 3.64-66, onde está escrito: “Senhor, tu lhes darás a recompensa conforme a obra das suas mãos. Tu lhes darás dureza de coração, tua maldição sobre eles. Na tua ira os perseguirás e os destruirás de debaixo dos teus céus, ó Senhor”, opinou que é normal no Antigo Testamento orar por vingança contra os inimigos. Pois, segundo ele, o orar pelo bem dos inimigos é doutrina apenas do Novo Testamento (Mt 5.44 – “Eu, porém, vos digo: Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem”). Contudo, ele afirma que se deve lembrar que só Deus pode dar a recompensa devida ao malfeitor.[8]
Mesquita tenta suavizar o impacto das maldições com esta afirmação de que somente Deus pode castigar os malfeitores, mas esquece de que os próprios salmistas não tinham esse mesmo ponto de vista. Tanto é que, no texto do salmo 41.10, o autor pede a Deus que o restaure para que possa pessoalmente castigar os seus inimigos. O texto diz assim: “Mas tu, Senhor, compadece-te de mim e levanta-me, para que eu lhes retribua”.
Kidner também argumenta que a transição da devoção humilde para maldições ardentes causa um problema ao cristão atual, pois ele, em sua condição, tem o dever de abençoar aqueles que o maldizem. Para explicar esta presença incômoda no saltério, ele, Kidner, defende que as maldições são pedidos de justiça e não fruto do desejo individual de vingança. Para confirmar sua tese, dá o exemplo da bondade de Davi, segundo ele o porta-voz principal das maldições nos salmos em relação a alguns de seus inimigos como Saul, Absalão e Simei. Quanto à atitude tomada mais tarde contra Simei, o autor tenta esclarecer em nota de rodapé dizendo que foi apenas um lapso do famoso rei de Israel, o que não demonstra sua índole.[9]
A atitude de Davi diante desses inimigos é impressionante, mas talvez não sirva como defesa contra o desejo de vingança individual contido em alguns salmos, principalmente quando é possível ver no final da vida de Davi, já em seu leito de morte, que ele instruiu Salomão para que se vingasse de dois de seus inimigos: seu sobrinho, Joabe, e Simei (1Rs 2.5-9). Talvez ele mesmo não tenha se vingado por razões de estratégia política e por haver tido empenhado a sua palavra, mas após a sua morte isso não faria mais diferença. Em vida manteve os compromissos, mesmo que contra o próprio desejo. Depois de sua morte, entretanto, seu filho deveria vingá-lo. O texto bíblico fala por si mesmo, como segue:
5 Tu sabes também o que Joabe, filho de Zeruia, me fez. Ele matou os dois chefes do exército de Israel, Abner, filho de Ner, e Amasa, filho de Jéter, e derramou o sangue da guerra em tempo de paz, manchando com ele o cinto que tinha na cintura e os sapatos que calçava. 6 Faze conforme a tua sabedoria e não permita que ele envelheça e desça à sepultura em paz. 7 Mas sê bondoso para com os filhos de Barzilai, o gileadita. Estejam eles entre os que comem à tua mesa; porque quando eu fugia por causa de teu irmão Absalão, eles foram bondosos para comigo. 8 Também está contigo Simei, filho de Gera, benjamita, de Baurim, que me lançou terrível maldição, quando eu ia para Maanaim. Mas ele foi ao meu encontro junto ao Jordão, e eu lhe jurei pelo Senhor: Não te matarei à espada. 9 Mas não o tenhas por inocente, pois és homem sábio e bem saberás o que fazer para que ele, na velhice, desça à sepultura ensanguentado. (1Rs 2.5-9).
Atitudes como as do rei Davi mostram-se estranhas aos cristãos atuais devido ao grande período de tempo que os separa do fato ocorrido. Como diz Champlim, é um erro supor que pessoas da época do Antigo Testamento tivessem a mesma iluminação moral e espiritual que pode ser vista no Novo Testamento.[10]
Também, segundo Scharbert, não se pode querer entender as maldições contidas no Antigo Testamento a partir do contexto ético-religioso atual. Uma volta ao passado e ao mundo veterotestamentário é indispensável para uma boa interpretação. De forma geral, as pessoas daquela época temiam as maldições, e isso as tornava, inclusive, um instrumento poderoso para manter a ordem social na falta de polícia e justiça eficaz. Assim, a maldição era um elemento fundamental para que a ordem fosse mantida através do cumprimento das leis estabelecidas pela comunidade e até mesmo pelo próprio Deus. Cria-se que uma falta contra a ordem ética e moral estabelecida por Deus desencadearia a ação de uma maldição contra o transgressor, o qual seria atingido por alguma desgraça. Certamente esse seria um bom motivo para se manter obediente.[11]
As maldições que fazem parte do Saltério não devem ser interpretadas, então, nem à luz do contexto religioso atual e nem mesmo da época do Novo Testamento. Contudo, antes de se concluir que as maldições são inviáveis à luz do Novo Testamento, de acordo com Wenham, seria bom examinar algumas passagens como aquela em que Paulo impreca um anátema contra aqueles que pregassem outro evangelho e, principalmente, atentar para a seguinte ordem de Jesus aos seus discípulos: “E, se ninguém vos receber, nem ouvir vossas palavras, sacudi o pó dos pés ao sairdes daquela casa ou daquela cidade. Em verdade vos digo que, no dia do juízo, haverá menos rigor para a terra de Sodoma e Gomorra do que para aquela cidade” (Mt 10.14,15). Esta ordem de Jesus para que os discípulos sacudissem o pó dos pés não é outra coisa senão um ato simbólico com a intenção de amaldiçoar aqueles que viessem a desprezar a sua mensagem.[12]
Mesmo assim, em primeira mão, as maldições no Saltério não devem ser interpretadas à luz do Novo Testamento. Elas são fruto de um período muito mais antigo e devem ser entendidas dentro do contexto veterotestamentário, ainda que não se possa estabelecer a época exata de cada porção. No contexto de guerras, intrigas, revoltas e ameaças em que surgiram, poderiam ser usadas como pedidos de castigo divino contra os inimigos dos oprimidos, sejam eles os próprios salmistas ou aqueles que viessem a fazer uso dos salmos que as contêm.
Em uma época como aquela, em que flechas, lanças e espadas eram usadas em grande escala, não se pode considerar fora do normal, para o justo, sem outra alternativa diante do opressor, o uso do pedido de castigo divino contra aqueles que o oprimiam.
[1] Roland E. Murphy, Jó e salmos: encontro e confronto com Deus (São Paulo: Paulinas, 1985), p. 22.
[2] Henry H. Halley, Manual bíblico: um comentário abreviado da Bíblia (São Paulo: Vida Nova, 1987), p. 234.
[3] W. G. Scroggie, Know your bible: the psalms: psalms I to CL (Londres: Pickering & Inglis, 1965), p. 32-3.
[4] A. A. Anderson, “Psalms (1-72)”, in: R. E. Clementes, org., The new century commentary: The Book of Psalms (London: Marshall, Morgan & Scott., 1981), vol. 1, p. 506.
[5] J. Corbon; J. Gilbert, “Maldição”, in: L. Dufour, org., Vocabulário de teologia bíblica (Petrópolis: Vozes, 1972), p. 55.
[6] W. G. Scroggie, Know your bible: the psalms: psalms I to CL (Londres: Pickering & Inglis, 1965), p. 78.
[7] Gleason L. Archer Jr., Merece confiança o Antigo Testamento?, 4. ed. (São Paulo: Vida Nova, 1986), p. 406.
[8] Antônio Neves de Mesquita, Estudos nos livros de Jeremias e Lamentações de Jeremias, 2. ed. (Rio de Janeiro: JUERP, 1979), p. 255.
[9] Derek Kidner, Salmos 1—72: introdução e comentário (São Paulo: Vida Nova, 1981), p. 38-9.
[10] Russel Norman Champlin; J. M. Bentes, “Salmos de imprecação”, in: Enciclopédia de Bíblia teologia e filosofia (São Paulo: Candeia, 1991), vol. 3, p. 295.
[11] J. Scharbert, “Maldição” in: J. B. Bauer, org., Dicionário de teologia bíblica (São Paulo: Loyola, 1973), vol. 2, p. 655.
[12] John W. Wenham, O enigma do mal (São Paulo: Vida Nova, 1989), p. 155-7.
Antônio Renato Gusso é bacharel em teologia pelas Faculdades Batista do Paraná, onde é também pró-reitor do mestrado e diretor acadêmico. Ele leciona, há mais de 30 anos, disciplinas como: Hermenêutica, Pregação Expositiva, Exegese, Grego, Hebraico e outras matérias relacionadas à Bíblia. É mestre e doutor em teologia na área de Antigo Testamento (Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil) e em ciências da religião na área de Literatura e Religião do Mundo Bíblico (Universidade Metodista de São Paulo). Gusso é ainda pós-doutor em teologia pela Escola Superior de Teologia, com ênfase em métodos de ensino do hebraico bíblico para brasileiros. Foi diretor da Faculdade Batista Pioneira, em Ijuí (RS), e é pastor na Igreja Batista Ágape, em Curitiba, desde 1994. Escreveu vários livros, entre eles: Gramática instrumental do hebraico e Gramática instrumental do grego, publicados por Vida Nova. |