A gênese da laicidade | Thiago Vieira e Jean Regina

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"A morte de Sócrates" (1787), Jacques Louis David

Muito se fala pelo Brasil que a laicidade nasce com a Revolução Francesa, o que demonstra falta de conhecimento ou aprofundamento teóricos daqueles que reverberam essa inverdade. Séculos antes de Cristo, a trindade áurea[1] já pincelava a necessidade da separação dos poderes religioso e secular. É possível perceber nas entrelinhas da Apologia de Sócrates e em Fédon, ambas obras de Platão, os reais motivos da acusação de Sócrates; basta lembrarmos a acusação:

 — Sócrates — diz a acusação — comete crime corrompendo os jovens e não considerando como deuses os deuses que a cidade considera, porém outras divindades novas. — Esta é a acusação. Examinemo-la agora, em todos os seus vários pontos.[2]

Em A república, o gênio Platão, além de se ocupar sobre a paideia,[3] principal reflexão da obra, também se ocupa, mesmo que subsidiariamente, da teoria política, mas especificamente sobre as melhores formas de governo possíveis, sempre afastando as atividades governamentais da mitologia e do signo cósmico, algo impensável a época.

Enquanto os filósofos não forem reis nas cidades, ou aqueles que hoje denominamos reis e soberanos não forem verdadeira e seriamente filósofos, enquanto o poder político e a filosofia não convergirem num mesmo indivíduo, enquanto os muitos caracteres que atualmente perseguem um ou outro desses objetivos de modo exclusivo não forem impedidos de agir assim, não terão fim, meu caro Glauco, os males das cidades, nem, conforme julgo, os do gênero humano, e jamais a cidade que nós descrevemos será edificada.[4]

Para Platão a cidade não devia ser simplesmente governada pelos deuses ou por seus representantes, mas por “aqueles que tenham amado a cidade mais do que os outros, tenham cumprido com zelo sua própria missão e, especialmente, tenham aprendido a conhecer e contemplar o bem”.[5]

Da mesma forma, Aristóteles, o Estagirita, preceptor e conselheiro de Alexandre, o Grande,[6] distanciou sua teoria política do componente mítico-místico-religioso dominante para buscar uma teoria à luz da racionalidade. Em A política, o Estagirita, demonstra que o governo do Estado é uma ciência mestra, arquitetônica, para a cidade, logo fundamental e de natureza não religiosa.

Não só há mais beleza no governo do Estado do que no governo de si mesmo, mas… tendo o homem sido feito para a vida social, a Política é, relativamente à Ética, uma ciência mestra, ciência arquitetônica.” Nela encontra seu termo o ciclo dos conhecimentos e culmina a enciclopédia construída pela Escola do Liceu, suma de todo o saber antigo.[7]

Por outro lado, Aristóteles também defendia a importância da religiosidade para o cidadão e, especialmente para a cidade (Estado). Vejamos esta passagem de Política:

Que demonstre principalmente muito zelo pela religião. Teme-se menos injustiça da parte de um príncipe que se crê seja religioso e parece temer aos deuses, e se está menos tentado a conspirar contra ele quando se presume que tem a assistência e o favor do céu. Mas é preciso que sua piedade não seja afetada, nem supersticiosa.[8]

Na subseção anterior, percebemos também que a ideia de separação dos poderes religioso e temporal existiu desde a Antiguidade Tardia até o período da Reforma protestante. Gelásio I distingue claramente os poderes temporal e espiritual, assim como Inocêncio III e Bonifácio VIII. O que ocorria apenas era a dominância de um poder sobre o outro, o que é contrário ao modelo laico de interação, e, em razão dessa dominação surge o Estado Laico.

O Estado laico, todavia, nasceu em decorrência do abuso dos governos daqueles Estados em que o poder era exercido sob a aparente proteção da religião. Os maiores abusos foram praticados pelos detentores do poder, colocando a religião como um escudo a justificar suas pretensões, e não como uma forma de atuar conforme o bem da comunidade que representavam. E, à evidência, como o iluminismo na França, contra as monarquias absolutistas, a ideia propagou-se com os excessos naturais, tal qual ocorreu na Revolução Francesa, em que a deusa “Razão”, criada por Robespierre, levou o país ao maior banho de sangue de sua história (entre 1792 e 1794).

A separação, portanto, entre poder religioso e poder político foi uma decorrência natural — e a meu ver necessária — do exercício da democracia; mas, no exercício da cidadania, tanto podem exercer o poder político os que acreditam, como os que não acreditam em Deus.[9]

Ainda, mesmo pensando em termos de Estado Moderno, treze anos antes da Revolução Francesa já encontramos a laicidade simpliciter nas colônias norte-americanas, quando da Declaração de Direitos da Virgínia. No contexto da luta pela independência da coroa britânica é proclamada, em 12 de junho de 1776, esta importante declaração, que diz:

Art. 16 – Essa religião, ou a obrigação que devemos ao nosso Criador, e a maneira de emitir essa confissão, só pode ser dirigida pela razão e convicção, não por força ou violência; e, por conseguinte, todos os homens têm intitulado o direito ao livre exercício da religião, conforme os ditames da sua consciência; e este é o dever mútuo de todos, praticar a tolerância cristã, o amor e a caridade uns para com os outros.

Como visto, percebemos que a gênese da laicidade, que tem como principal objeto a separação do poder político e do poder religioso das mãos do Estado ou da unidade política, está presente nos escritos da antiguidade clássica, que remonta mais de dois milênios, bem como nos escritos dos reformadores[10] e, ainda, na própria declaração de direitos da Virgínia. A falácia de que a laicidade é uma inovação francesa é fruto da ignorância ou da tentativa de rescrever a história para impor um modelo de laicismo — este sim, nascido na França, aos auspícios de cabeças sendo degoladas e igrejas sendo fechadas — o qual implica no aniquilamento do Poder religioso. O objetivo dos revolucionários franceses era o retorno a uma espécie de teocracia, em que o deus do povo seria o próprio Estado.[11]

____________________

[1] Ou seja, Sócrates, Platão e Aristóteles.

[2] Platão, A apologia de Sócrates (Rio de Janeiro: L&PM Pocket, 2008), p. 31; idem, Fédon (Edipro, 2012).

[3] Formação do homem grego.

[4] Platão, A república (São Paulo: Nova Cultural, 1997), p. 180-1.

[5] Giovanni Reale, História da filosofia: Antiguidade e Idade Média (São Paulo: Paulus, 2017), vol. 1, p. 163.

[6] “Alexandre III Magno ou Alexandre, o Grande, rei da Macedônia, filho do imperador Fellipe II da Macedônia e de Olímpia, princesa de Epiro, nasceu entre 20 e 30 de julho de 356 a.C., na região de Pella, na Babilônia. Alexandre, conquistador do Império Persa, foi um dos mais importantes militares do mundo antigo”, “Alexandre, o Grande”, Só História, disponível em: http://www.sohistoria.com.br/biografias/alexandre/, acesso em: 31 jul. 2019.

[7] Tradução de Pedro Constantin Tolens, 5. ed, (São Paulo: Martin Claret, 2010).

[8] Ives Gandra da Silva Martins, Estado à luz da história, da filosofia e do Direito, p. 198.

[9] Ibidem, p. 17.

[10] Martinho Lutero, À nobreza cristã da nação alemã, acerca da melhoria do estamento cristão, in: Martinho Lutero, Martinho Lutero: obras selecionadas (São Leopoldo: Sinodal/Concórdia, 2011), vol. 2: O programa da Reforma. Martinho Lutero, Da autoridade secular: a que ponto se lhe deve obediência, in: Martinho Lutero, Martinho Lutero: obras selecionadas (São Leopoldo: Sinodal, 2011), vol. 6: Ética: fundamentação da ética política — governo — Guerra dos Camponeses — Guerra dos Turcos — paz social. João Calvino, “O poder civil”, in: A instituição da religião cristã (Rio de Janeiro: Unesp, 2009), tomo 2, livros III e IV.

[11] Edmund Burke, Reflexões sobre a revolução na França (Campinas: Vide, 2017).

Trecho extraído da obra “Direito religioso: questões práticas e teóricas“, publicada por Vida Nova: São Paulo, 2020, pp. 128-132. Publicado no site Tuporém com permissão.

Advogado; especialista em Direito do Estado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS; especialista em Estado Constitucional e Liberdade Religiosa pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, com estudos pela Universidade de Oxford (Regent’s Park College) e pela Universidade de Coimbra; especialista em Teologia e Bíblia pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA); mestrando em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professor visitante da ULBRA. Membro do Conselho Editorial da Dignitas - Revista Internacional do Instituto Brasileiro de Direito e Religião. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Religião - IBDR. Colunista da Gazeta do Povo e outras revistas e sites. Presidente do sub-comitê da rede de apoio das entidades temáticas em Defesa e Promoção da Liberdade Religiosa da ALESP. Em 2019, foi um dos delegados do Brasil na Universidade de Brigham Young (Utah/EUA) no 26º Simpósio Anual de Direito Internacional e Religião, evento com mais de 60 países representados.
Jean Regina é advogado desde 2004, professor, escritor e ensaísta. Graduado pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA, 2004). Membro da OAB/RS, inscrito sob o n.º 59.445, membro da OAB/SP, inscrito sob o n.º 370.335. Pós-graduado em Estado Constitucional e Liberdade Religiosa pela Universidade Mackenzie, em parceria com a Universidade de Oxford (Regent’s Park College) e pela Universidade de Coimbra (Ius Gentium Conimbrigae/Centro de Direitos Humanos, 2017). Pós-graduado em Teologia e Bíblia pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA). Professor em diversos cursos de Direito Religioso. 2º. Vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR). Coordenador do corpo de juristas das Igrejas Históricas Protestantes Brasileiras para estudos de Direito Eclesiástico. Colunista dos blogs “Voltemos ao Evangelho” e “Gospel Prime”. Articulista na Revista de Teologia Brasileira/Vida Nova, Burke Instituto Conservador e Mensageiro Luterano. Advogado aliado da Alliance Defending Freedom (EUA), maior entidade de advogados cristãos do mundo, Fellow Alumnus da Acton Institute (EUA). Casado com Patrícia e pai de Felipe e Gabriel Regina.
Direito religioso aborda questões teóricas profundas sem perder o olhar prático da experiência profissional dos autores, Thiago Vieira e Jean Regina, advogados especializados no atendimento a inúmeras igrejas e entidades confessionais no país.

Nosso desejo, ao publicar esta obra — agora em sua terceira edição revisada e ampliada —, é que ela seja uma ferramenta prática para pastores, presbíteros e demais líderes religiosos, auxiliando-os especialmente nas questões jurídicas diárias da igreja.

Além disso, o livro também tem o propósito de, definitivamente, tornar o Direito Religioso uma área autônoma do Direito, sendo uma ferramenta também para advogados, juízes, promotores, professores, acadêmicos e demais operadores do direito.

Publicado por Vida Nova.

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