A idolatria do bem-estar: quando a felicidade substitui a santidade | Franck Neuwirth

A consciência cristã do cuidado da terra | Augustus Nicodemus Lopes
01/set/2025
A consciência cristã do cuidado da terra | Augustus Nicodemus Lopes
01/set/2025

Introdução

Vivemos em uma cultura marcada pelo desejo incessante por prazer, conforto e felicidade. Atualmente, essa mentalidade é reforçada pela influência midiática, pelas redes sociais e até mesmo por uma espiritualidade de mercado que promete soluções rápidas para todos os problemas. Pregações, músicas e até slogans religiosos prometem alívio imediato, prosperidade e vida sem sofrimento.

A busca pelo “bem-estar” tornou-se, para muitos, o maior objetivo de vida. Contudo, quando o bem-estar ocupa o lugar da santidade como objetivo último da vida cristã, transforma-se em idolatria sutil. Por sutil, quero dizer que a pessoa não imagina que está agindo como um idólatra, mas de fato está e isso à luz das Escrituras, pois faz com que outros valores e objetivos ocupem o lugar que pertence somente ao Senhor: o centro do nosso coração.

Em Romanos 8.29 somos ensinados que Deus nos predestinou para sermos conformados à imagem de Jesus. Essa perspectiva confronta a mentalidade moderna e convida os crentes a reorientarem suas prioridades à luz da Palavra, pois devemos nos lembrar que a Bíblia nunca apresenta a felicidade como fim último, mas a santidade, já que esta é que nos direciona até a presença de Deus (1Ts 4.3; Hb 12.14).

Veremos a seguir como a igreja pode enfrentar essa idolatria cultural e como podemos ajudar os crentes, por meio do aconselhamento, a priorizarem a santidade acima do bem-estar pessoal.

 

1.O coração humano e sua tendência à idolatria

Desde o Éden, o homem busca substituir os conselhos e ensinamentos da Palavra de Deus por outros contrários à Sua vontade (Gn 3.5; Rm 1.21). No contexto evangélico brasileiro, um dos ídolos mais cultuados é o do bem-estar. Pessoas creem que a vida só está plena se estiver livre de problemas, dores e frustrações. “Pare de sofrer”, é o que muitos dizem em alta voz, ecoando os valores da Teologia da Prosperidade.

Porém, é sempre bom lembrar que o coração humano é enganoso (Jr 17.9) e somente Deus sabe o que é melhor para nós, permitindo até mesmo que momentos de disciplina surtem efeitos positivos para a nossa santificação (Hb 12.10, 14). Quando colocamos a felicidade acima da santidade, acabamos sendo escravizados por desejos insaciáveis, pois o pecado distorce a nossa percepção da realidade e das nossas reais prioridades. Isso ficou evidenciado na história de Israel, que murmurou contra o Senhor porque não tinha mais a “comida do Egito” (Êx 16.3). Em seu devaneio, eles preferiam continuar escravos no Egito do que aprender a depender do sustento que vinha das mãos do Senhor e de Sua Palavra que traria vida para eles (Dt 8.3). Infelizmente, ainda hoje, muitas pessoas se revoltam contra Deus quando suas expectativas de conforto não são atendidas.

Calvino afirmou que o coração humano é uma perpétua fábrica de ídolos[1]. Por esta razão, precisamos desmascarar as falsas seguranças que prometem prazer, mas nos afastam da obediência a Deus. O bem-estar, quando idolatrado, não passa de mais um desses falsos deuses que sempre querem tomar o lugar central das nossas vidas.

 

2.O evangelho e a verdadeira alegria

A Escritura não é contrária à alegria. Jesus mesmo disse: “Tenho-vos dito estas coisas para que o meu gozo esteja em vós, e o vosso gozo seja completo” (Jo 15.11). O que acontece é que esta alegria não é fruto da ausência de dificuldades, e sim da nossa comunhão com Cristo. É a alegria dEle em nós que nos completa, fazendo-nos ter a vida abundante que Ele prometeu (Jo 10.10).

Outro famoso teólogo, Agostinho, já dizia: “nosso coração está inquieto até que repouse em Ti”[2]. Com isso, ele quer dizer que a verdadeira felicidade está em descansar em Deus, e não nas circunstâncias, somente assim podemos desfrutar do verdadeiro Shalom. Lembremo-nos também de Habacuque 3.17-18, onde o profeta afirma que mesmo em meio às dores e dificuldades conseguia se alegrar no Senhor.

Jesus nunca prometeu aos discípulos uma vida sem dificuldades, mas uma alegria que o mundo não pode tirar (Jo 16.22). Essa alegria nasce da comunhão com Ele, não da ausência de problemas. Precisamos aprender a viver contentes e glorificar a Deus em quaisquer circunstâncias (Fp 4.11-13). A diferença entre bem-estar e santidade, portanto, é que o primeiro depende de circunstâncias, enquanto a segunda depende da graça de Deus.

 

3.Santidade: o alvo negligenciado

A Bíblia deixa muito claro que o imperativo da vida cristã é a santidade diante do Senhor: “Sede santos, porque eu sou santo” (1Pe 1.16). A idolatria do bem-estar desvia o crente desse alvo, pois coloca a si mesmo no centro, e não o Deus da glória.

No ministério de aconselhamento, ao invés de prometermos apenas o alívio que as pessoas buscam, somos incentivados a conduzir o crente à transformação interior (Rm 12.1-2). O aconselhamento à luz da Bíblia não busca apenas resolver sintomas, mas levar a pessoa a amar mais a Deus e se alinhar à Sua vontade, que é sempre boa, agradável e perfeita, inclusive quando Ele permite a dor e o sofrimento. Esta é uma verdade que precisa ser aprendida.

 

4.O sofrimento como instrumento de Deus

Na mentalidade do bem-estar, o sofrimento é sempre visto como inimigo. Mas a Escritura nos ensina que Deus usa as provações para aperfeiçoar seus filhos: “Meus irmãos, tende por motivo de toda alegria o passardes por várias provações, sabendo que a provação da vossa fé, uma vez confirmada, produz perseverança” (Tg 1.2-3).

É por isso mesmo que Paulo pôde dizer: “Sabemos que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito” (Rm 8.28). Este “bem” nem sempre é a resolução do problema, mas fazer com que nos pareçamos cada vez mais com Jesus. Quando entendemos desta maneira, compreendemos que o sofrimento é um instrumento do Senhor e não um acidente no meio do percurso. Assim, o sofrimento pode ser visto como um meio de crescimento, não de derrota. O conselheiro bíblico ajuda o crente a interpretar suas dores à luz da soberania de Deus, transformando um potencial de frustração em oportunidade de crescimento.

 

5.Caminhos práticos para vencer a idolatria do bem-estar

  • Redescobrir a centralidade da cruz: a vida cristã não é marcada pela ausência de cruz, mas por seguir os passos de Jesus (Lc 9.23).
  • Cultivar disciplinas espirituais: oração, leitura bíblica e comunhão não são apenas hábitos, mas armas contra a idolatria, pois colocam o nosso eu no lugar certo: aos pés do Senhor (1Ts 5.14–23).
  • Valorizar a comunidade: compartilhar fardos (Gl 6.2) e confessar pecados (Tg 5.16) nos ajuda a lembrar que não estamos sozinhos em nossa jornada.
  • Reorientar expectativas: buscar primeiro o Reino de Deus (Mt 6.33) e não a própria felicidade.

 

Conclusão

O bem-estar é bom, mas não é um alvo supremo. Quando ele se torna um ídolo, aprisiona o coração e enfraquece a fé. A igreja brasileira precisa proclamar com clareza que o alvo maior da vida cristã não é ser feliz a qualquer custo, mas ser santo para a glória de Deus. O aconselhamento bíblico tem papel crucial nessa batalha, ajudando os crentes a discernirem seus desejos e a substituírem a idolatria do bem-estar pela verdadeira adoração ao Senhor. Assim, em uma sociedade que idolatra o conforto, a igreja é chamada a viver como comunidade que mostra que a verdadeira alegria está em Cristo, e não em circunstâncias passageiras.

 


Notas

[1] CALVIN, John. Institutes of the Christian Religion I, XI, 8. Bellingham, WA: Logos Bible Software, 1997.

[2] Saint Augustine Bishop of Hippo, The Confessions of St. Augustine, I, 1. trad. E. B. Pusey. Oak Harbor, WA: Logos Research Systems, Inc., 1996.

 

Franck Neuwirth é Doutor em Ministério pelo Reformed Theological Seminary, EUA, em parceria com o Centro de Pós-graduação Andrew Jumper. É Escritor da Editora Cristã Evangélica e Coordenador Acadêmico no SETECEB, além de lecionar disciplinas na Área de Novo Testamento, Grego, Metodologia Científica e Aconselhamento. Atualmente, está cursando seu PhD pela Universidade de Viena na Áustria. Franck é casado com Ilma Rabelo Neuwirth e pai da Isabella e do Luiz Filipe.

Autor de "Aconselhamento bíblico para todos", no prelo, por Edições Vida Nova.

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