A tua palavra guardada no meu coração: manuscritos e memorização | Kim Phillips

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Foto de Max Tcvetkov na Unsplash

Neste artigo, o Dr. Kim Phillips fala sobre a arte perdida da memorização e analisa o que as técnicas medievais de memorização podem nos ensinar hoje.

Imagine um pastor subindo até o topo de uma colina verdejante. Você caminha ao lado dele. Ao chegar ao topo da colina, você se deita na grama macia. Lá embaixo, brilhando ao sol, um rio serpenteia suavemente. Ao chegar ao rio, você vê uma trilha estreita ao longo da margem e se vira para segui-la. A trilha se afasta e começa a descer uma encosta íngreme até um vale escuro e arborizado. Uma nuvem cobre o sol e envolve tudo em uma escuridão sombria. Está frio. Mas o pastor ainda está ao seu lado; você ouve o suave roçar e a batida de seu cajado. Ele o leva a uma pequena clareira onde há uma mesa cheia de comida. Você se senta. Das sombras, nas bordas da clareira, olhos cheios de ódio o observam. No entanto, à mesa, com o pastor, você sabe que está seguro. Ele pega um frasco de óleo perfumado e derrama um pouco sobre sua cabeça. Ele pega um jarro de vinho e enche um copo que está à sua frente — a tal ponto, que o vinho transborda sobre a mesa. Levantando os olhos do cálice e da mesa, você vê que não está mais no vale escuro, mas na própria casa do pastor.

É claro que acabamos de imaginar o nosso percurso através do Salmo 23. Nesse processo, empregamos algumas técnicas mnemônicas simples usadas por milhares de anos para auxiliar no processo de memorização palavra por palavra de longos trechos de texto.

 

Livros de memória medievais

A memorização literal de grandes trechos do texto bíblico é quase totalmente negligenciada hoje. Podemos fazer “versículos para memorizar”, mas e os capítulos ou os livros para memorizar? Porém, para judeus e cristãos medievais, a memorização das Escrituras, em larga escala, era uma parte vital da formação espiritual. Será que essa negligência, talvez encorajada pelo acesso imediato que temos à Bíblia no celular, significa que estamos perdendo uma ferramenta que antes era preciosa para o discipulado?

A memorização de textos em grande escala desempenhou um papel significativo na educação e na formação espiritual durante a Antiguidade e a Idade Média. Isso envolvia o treinamento disciplinado da memória por meio de técnicas mnemônicas intrincadas. Dispositivos e técnicas de memorização foram discutidos longamente por vários autores clássicos e medievais. Esse treinamento não visava apenas a capacidade de repetir grandes trechos de texto como um papagaio, mas sim codificar um texto na memória de tal forma que qualquer parte do texto pudesse ser recuperada a qualquer momento ou sistematicamente pesquisada. Acesso aleatório, em vez de acesso sequencial, na terminologia da computação. Usando essas ferramentas mnemônicas, alguns estudiosos foram capazes de memorizar (literalmente ou pelo menos no nível da sucessão de ideias) um grande número de textos. No que se segue, no entanto, gostaria de considerar um alvo mais modesto para a memorização: os 150 Salmos do Saltério.

No fascinante estudo da historiadora Mary Carruthers sobre o uso da memória na cultura medieval, ela observa: “O livro que os cristãos, tanto os membros clero quanto os leigos instruídos, certamente sabiam de cor era o Livro de Salmos”. Em um estudo recente de manuscritos criados como auxílios de memória por membros da comunidade judaica medieval no Egito, cheguei a conclusões semelhantes. Entre todos os textos bíblicos, o Saltério era o mais frequentemente memorizado, e isso não uma era façanha de apenas uma minoria excepcional, mas sim algo que caracterizava uma boa parcela da comunidade judaica. Vamos passar algum tempo com um desses manuscritos para ter uma ideia de como funciona.

 

O Saltério abreviado

Aqui está uma página dupla de um manuscrito da Sinagoga Ben Ezra, na cidade de Fostate (parte velha do Cairo), no Egito. Está escrito em papel, em vez de pergaminho, nesse formato estranhamente longo e fino. Outros manuscritos com esse mesmo formato são geralmente documentos produzidos pelo usuário, muitas vezes para uso pessoal ou litúrgico. Nos livros com que estamos acostumados hoje, a dobra do livro é vertical, e viramos as páginas horizontalmente, da direita para a esquerda. Nesse manuscrito, a dobra é horizontal; você pode vê-la na metade da folha, marcada por seis pequenos pontos onde as folhas separadas teriam sido costuradas e dobradas para formar um conjunto de páginas conhecido como caderno. As páginas desse manuscrito são viradas de baixo para cima. Durante os mais de 900 anos em que esse manuscrito esteve escondido na genizá, parte dele foi perdida ou destruída. No entanto, em seu estado atual, ele tem quase todo o conteúdo de Salmos 42—106: Livros 2, 3 e 4 do Saltério.

image of manuscript -S A43.6: A shorthand Psalter. Manuscript images reproduced by kind permission of the Syndics of Cambridge University Library

T-S A43.6: Um Saltério abreviado. Imagens manuscritas reproduzidas com a generosa permissão dos Síndicos da Biblioteca da Universidade de Cambridge

 

Vamos dar uma olhada mais de perto, para ver como o manuscrito funciona como um aide-mémoire. Na foto à esquerda está o Salmo 42 (“Como o cervo brama pelas correntes das águas…”). Esse manuscrito está escrito em hebraico antigo, que é lido da direita para a esquerda na página. E abaixo da imagem do manuscrito está o texto escrito em português. As palavras destacadas refletem o que está escrito no manuscrito. O resto tinha de ser lembrado de memória.

 

image of manuscript with Psalm 42 written in shorthand for memorisation -S A43.6: A shorthand Psalter. Manuscript images reproduced by kind permission of the Syndics of Cambridge University Library

Salmo 42

Ao mestre de canto. Salmo didático dos filhos de Corá

Como suspira a corça pelas correntes das águas, assim, por ti, ó Deus, suspira a minha alma.

A minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo; quando irei e me verei perante a face de Deus?

As minhas lágrimas têm sido o meu alimento dia e noite, enquanto me dizem continuamente: O teu Deus, onde está?

Lembro-me destas coisas — e dentro de mim se me derrama a alma —, de como passava eu com a multidão de povo e os guiava em procissão à Casa de Deus, entre gritos de alegria e louvor, multidão em festa.

Por que estás abatida, ó minha alma? Por que te perturbas dentro de mim? Espera em Deus, pois ainda o louvarei, a ele, meu auxílio e Deus meu.

Sinto abatida dentro de mim a minha alma; lembro-me, portanto, de ti, nas terras do Jordão, e no monte Hermom, e no outeiro de Mizar.

Um abismo chama outro abismo, ao fragor das tuas catadupas; todas as tuas ondas e vagas passaram sobre mim.

Contudo, o Senhor, durante o dia, me concede a sua misericórdia, e à noite comigo está o seu cântico, uma oração ao Deus da minha vida.

Digo a Deus, minha rocha: por que te olvidaste de mim? Por que hei de andar eu lamentando, sob a opressão dos meus inimigos?

Esmigalham-se-me os ossos, quando os meus adversários me insultam, dizendo e dizendo: O teu Deus, onde está?

Por que estás abatida, ó minha alma? Por que te perturbas dentro de mim? Espera em Deus, pois ainda o louvarei, a ele, meu auxílio e Deus meu.

 

Como se pode ver, o manuscrito geralmente registra as primeiras palavras de cada versículo e pressupõe que elas sejam suficientes para fazer com que o leitor se lembre do resto. Por mais que o tamanho reduzido desses auxílios mnemônicos já seja impressionante, isso é apenas a ponta do iceberg. Em outros pontos do manuscrito, o texto bíblico é abreviado de forma muito mais radical.

Por exemplo, o salmo 104 (imagem no canto superior direito). Das 240 palavras hebraicas desse salmo, apenas 14 estão representadas no manuscrito (tiradas do início e do fim do salmo). Além do mais, dessas 14 palavras, cinco são escritas em algum tipo de forma abreviada. O autor do manuscrito conhecia esse salmo tão bem que, após as poucas palavras iniciais, não precisava de mais ajuda para recitar o texto inteiro.

image of manuscript with Psalm 104 written in shorthand for memorisation -S A43.6: A shorthand Psalter. Manuscript images reproduced by kind permission of the Syndics of Cambridge University Library

Salmo 104

 

De fato, em outra parte do manuscrito há um intrigante sinal de que esse escriba estava ainda mais profundamente familiarizado com os Salmos do que sugerido até agora. A seção que contém Salmos 73—89 (Livro Três do Saltério) está escrita em uma lista numerada (imagem inferior direita). Qual era o propósito dessa lista? É improvável, por duas razões, que a lista tenha sido simplesmente destinada a registrar a ordem correta dos Salmos. Em primeiro lugar, essa ordem poderia ser facilmente encontrada folheando o próprio manuscrito. Em segundo lugar, a porção de cada salmo registrada é muito maior do que seria necessário se o único propósito da lista fosse distinguir um salmo do outro. Em vez disso, a pista para o propósito da lista parece estar ligada ao tamanho da porção de cada salmo registrada.

Alguns salmos recebem apenas uma única linha de texto, enquanto outros têm duas linhas. O escritor da lista teve o cuidado de sempre incluir não apenas o título do salmo, mas também o início do conteúdo principal do salmo. Quando o título é curto (como “Um Salmo de Asafe”, no início do salmo 73), há espaço suficiente em uma linha para incluir o primeiro pedaço de conteúdo: “Com efeito, Deus é bom para com Israel”. No entanto, quando o título é longo (como “Ao mestre de canto; Não destruas; Salmo de Asafe. Cântico”, no início do Salmo 75), o escritor da lista usou uma segunda linha para incluir as primeiras palavras do conteúdo principal do salmo: “Graças te rendemos, ó Deus”.

Podemos supor que essas poucas palavras do conteúdo principal, por si só, teriam sido suficientes para guiar o orador para que ele pudesse recitar de cor o Livro Três do Saltério. Em outras palavras, os auxílios mnemônicos que vimos acima para o salmo 42, que forneciam as primeiras palavras de cada versículo, eram apenas para iniciantes! Com o tempo, o objetivo era ser capaz de recitar todos os salmos completamente de cor, apenas usando a lista de primeiras linhas para ajudar a mantê-los em sua ordem correta.

image of manuscript with Psalm 73-89 written in shorthand for memorisation -S A43.6: A shorthand Psalter. Manuscript images reproduced by kind permission of the Syndics of Cambridge University Library

Salmos 73-89

 

Treinamento da memória

Como foi que o dono desse manuscrito conseguiu realizar uma proeza de memorização tão impressionante? O manuscrito em si pode nos dar algumas dicas, mas também podemos recorrer a manuais de treinamento de memória — alguns datados do período greco-romano — para obter informações extras. Vamos voltar à nossa jornada pelo salmo 23 para uma demonstração detalhada.

Em primeiro lugar, preste atenção em como todo o processo foi visual. Não começamos com palavras, mas sim com imagens mentais, que “fixam” muito mais, quando se trata de memorização. Poderíamos resumir toda a jornada a uma lista simples das imagens-chave: colina verdejante; rio; caminho; vale escuro; companheiro pastor; cajado de pastor; mesa de banquete; cálice; casa do pastor. Se quiséssemos, poderíamos “dividir” essas imagens ainda mais, em três grupos de três: três imagens ensolaradas (colina verdejante; rio; caminho); três imagens baseadas no vale (vale sombrio; companheiro pastor; cajado de pastor); três imagens baseadas em festas (mesa; cálice; casa). Assim, resumimos o Salmo em três imagens visual e que facilitam a memorização: luz do sol; vale; festa. Esse tipo de fragmentação de vários níveis é particularmente útil com salmos longos, pois ajuda a evitar sequências de imagens excessivamente longas. Por exemplo, ao memorizar o salmo 104, dividi os 35 versículos em sete partes. Cada pedaço foi então dividido em unidades menores.

 


A genizá do Cairo

Nosso manuscrito vem da Sinagoga Ben Ezra, na cidade de Fostate (parte velha da cidade do Cairo), no Egito. Uma grande comunidade judaica floresceu em Fostate, entre os séculos 10 e 13, e se tornou um dos principais centros da vida judaica medieval. Sabemos muito sobre a vida dessa comunidade graças à preservação de um depósito de mais de 200.000 de seus documentos. O depósito (conhecido como “genizá”) abrigava manuscritos e documentos desgastados que haviam chegado ao fim de sua vida útil e aguardavam o enterro formal que a lei judaica exigia para eles. Graças, em parte, a Al-Hakim, conhecido como “o califa louco”, e seu ataque à sinagoga de Ben Ezra em 1012, esses documentos nunca receberam aquele enterro. Mas isso é outra história. Essa mina de ouro de textos permaneceu intacta por séculos, até que os textos foram descobertos na década de 1890 e levados para a Biblioteca da Universidade de Cambridge, onde foi criada a Unidade de Pesquisa da Genizá para conservar e estudar os manuscritos.

Esses documentos nos dão acesso a uma imagem em tecnicolor de aspectos da história medieval que geralmente estão fora de nosso alcance. Por uma série de “acidentes” históricos, a genizá acabou armazenando uma mistura eclética das coisas efêmeras da vida: acordos pré-nupciais, certidões de casamento, certidões de divórcio, listas de livros, documentos comerciais, cartas de mendicância, discussões judiciais, poemas de amor, receitas de remédios, listas de compras, amuletos contra picadas de escorpião, além de 25.000 fragmentos da Bíblia e milhares de outros importantes textos judaicos.


 

Em segundo lugar, observe como tentei tornar as imagens não simplesmente visuais, mas o mais marcantes e multissensoriais possível. Então, não era apenas um rio, era um rio cuja água brilhava ao sol. Sentimos o frio ao entrarmos no vale sombrio e arborizado. Sentimos o cheiro do óleo da unção. Poderíamos ter acrescentado muito mais detalhes sensoriais: a sensação da grama cedendo sob o peso do corpo quando nos deitamos no topo da colina verdejante; o som do rio borbulhando e gorgolejando; a sensação de apreensão de olhar por cima do ombro enquanto entrávamos no vale escuro. A pesquisa moderna confirmou o que já era compreendido e comentado pelos antigos: quanto mais impressionante e multissensorial a imagem, melhor a sua fixação na memória.

Por fim, observe que nossas imagens mnemônicas não eram autônomas — elas estavam ligadas umas às outras. Nesse caso em particular, elas estavam ligadas por uma viagem imaginária, mas outros vínculos são possíveis. A chave é que a imagem número um deve ajudar a trazer à mente a imagem número dois, e assim por diante. O que vimos do topo da colina verdejante (imagem um)? Claro — o rio (imagem dois). No rio, avistamos o caminho; o caminho levava ao vale escuro; na escuridão, sentimos a presença do nosso companheiro pastor; ouvimos o barulho de seu cajado; o caminho levava à mesa; sobre a mesa estava o cálice; levantando o olhar do cálice, nos encontramos na casa do pastor.

Desse modo, dividimos o salmo em uma sequência de imagens multissensoriais vinculadas umas às outras. Essa sequência forma uma espécie de estrutura, na qual podemos encaixar as palavras precisas de cada linha do Salmo. Claro, ainda temos que nos esforçar para guardar a redação exata de cada linha, mas o processo se torna muito mais simples quando temos a estrutura toda montada.

Por último, temos de abordar outra objeção. Alguém pode dizer: é muito encorajador ouvir sobre memorização em uma era anterior à palavra impressa, mas qual é o mérito de memorizar um texto em nossos dias, quando podemos carregar bibliotecas inteiras em um smartphone? Provavelmente presumimos que pessoas do século 12, como o escriba por trás do manuscrito acima, desenvolveram esses hábitos de memorização porque os textos escritos eram difíceis de obter. No entanto, estudiosos cristãos medievais, como Hugo de São Vítor, que discutem a memorização, parecem ter visto o assunto de maneira diferente. Em primeiro lugar, a memorização era entendida como uma parte crucial da formação espiritual. A intensa concentração e foco no texto necessárias para memorizá-lo, e a subsequente meditação sobre o texto, possibilitada quando ele está escrito na tábua do nosso coração, nos molda de uma maneira muito particular. É como se as palavras abrissem caminho e penetrassem na urdidura e trama do nosso próprio ser. Não é exatamente esse ponto que as próprias Escrituras defendem?

Escondi a tua palavra no meu coração, para eu não pecar contra ti. (Salmos 119.11).


Kim Phillips é pesquisador do Institute for Hebrew Bible Manuscript Research
Texto original: I have stored up your word in my heart: manuscripts and memorisation Tyndale House Cambridge. Traduzido por Lucilia Marques e publicado no site Cruciforme com permissão.

1 Comments

  1. Guimaraes Helbert disse:

    Muito obrigado,pelo ensinamento dos caminhos que levará nosso papai.

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