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18/nov/2016Este artigo foi publicado em 26 de março de 2015 na revista “Comment”, uma publicação da CARDUS: www.cardus.ca. Texto original aqui.
O que Oliver O’Donovan pode ensinar aos kuyperianos
Muito do que se passa sob o título de teologia pública “cristã” tem pouco a ver com a cruz e a ressurreição de Jesus Cristo. Nosso imaginário foi suficientemente disciplinado pelos pressupostos do liberalismo para ficarmos desconfortáveis e embaraçados pela franca esperança cristã de um governo temporal.
O que fazemos, então, com o encômio de Agostinho ao imperador Teodósio que “estava mais satisfeito em ser membro dessa Igreja do que em ser governador do mundo”? (A Cidade de Deus, 5.26). Agostinho não celebra primariamente o seu poder e realizações, mas sua humildade cristã:
“Nada poderia ser mais maravilhoso do que a humildade religiosa que ele demonstrou após o grave crime cometido pelo povo de Tessalônica. Pela intercessão dos bispos ele havia prometido perdão, mas o clamor de alguns de seus apoiadores o levou a vingar o crime. Ele, porém, foi constrangido pela disciplina da Igreja a realizar a penitência de tal modo que o povo de Tessalônica, ao orar por ele, chorou ao ver a alteza imperial prostrada, com uma emoção mais forte do que os seus medos da ira do imperador por sua ofensa.”
Nossa suposta teologia pública “cristã” apela para a ordem criacional e para a lei natural, invocando normas restritas à revelação geral e aos ditames da “razão”. Mas quando a razão impõe a penitência? Em que momento a lei natural recomenda perdão e misericórdia? Será que a ordem criacional já nos colocou de joelhos em uma oração apaixonada de confissão? Tais práticas e virtudes não são relevantes ao mandato de domínio dos portadores da imagem divina?
Essa cena da Cidade de Deus sugere uma união mais integral entre igreja e política sem simplesmente misturá-las ou identificá-las. Isso sugere que as práticas da igreja como um posto-avançado da cidade celestial são essenciais até mesmo aos bens políticos da cidade terrena – que a liturgia do corpo de Cristo reveste aqueles adoradores, que serão então enviados para cumprir suas vocações do governo humano. Isso sugere uma teologia pública cristã que está enraizada na substância do Evangelho e nas práticas específicas da comunidade cruciforme, que é a igreja. A tarefa pública da igreja não é simplesmente lembrar ao mundo aquilo que ele (supostamente) já sabe (pela razão “natural”), mas também proclamar aquilo que de outra forma ele jamais poderia saber – e fazê-lo como um serviço público pelo bem comum.
Esta visão é uma das principais contribuições do teólogo britânico Oliver O’Donovan. Em contraste com as várias formas de deísmo político à disposição, O’Donovan articula uma teologia política propriamente evangélica. Rejeitando o minimalismo moral do projeto de “lei natural” como uma expressão subcristã de teologia política, O’Donovan também tem importantes lições a ensinar àqueles kuyperianos entre nós cuja teologia pública “cristã” muitas vezes se contenta com uma “ordem criacional”.
Repensando natureza e graça
Uma teologia pública cristã sempre presume uma teologia da cultura que, em contrapartida, presume uma teologia da criação. E qualquer teólogo “cristão” da criação precisa articular seu entendimento da relação entre a ordem criacional e a ordem redentiva, ou seja, como devemos entender o relacionamento entre natureza e graça. As propostas políticas de O’Donovan são nutridas por um modelo holístico em seu nível mais fundamental. Como ele coloca na abertura de Resurrection and Moral Order (RMO), “Os fundamentos da ética cristã devem ser evangélicos ou, para colocar de modo mais simples, a ética cristã deve se erguer do evangelho de Jesus Cristo. Caso contrário, não pode ser uma ética cristã.” Qualquer ética cristã adequada, ele enfatiza, “depende da ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos” (RMO 13). Apesar disso, quantos paradigmas de uma suposta teologia pública “cristã” operam como se isso nunca tivesse ocorrido?
Entretanto, essa especificidade do Evangelho não é uma forma de nos colocar em um beco cultural de irrelevância precisamente porque a ressurreição de Jesus é a reafirmação da criação, ou seja, “a confirmação da ordem do mundo criada por Deus” (RMO). Na encarnação e ressurreição de Jesus “toda a ordem criada é conduzida no destino desse representante particular do ser humano, nesse momento particular da história, em cujo destino jaz a redenção de tudo” (RMO). A ressurreição é “o sinal de que Deus se mantém pela ordem criada”. Não existe, assim, tensão ou escolha a ser feita entre as assim chamadas “ética do reino” ou “ética da criação”: “Este modo de colocar as alternativas não é aceitável”, O’Donovan comenta,
“pois o próprio ato pelo qual Deus inaugura seu reino é a ressurreição de Cristo dentre os mortos, a reafirmação da criação. Uma ética do reino que fosse colocada em oposição à criação não poderia estar interessada no mesmo reino escatológico que o Novo Testamento anuncia […] Por outro lado, uma ética da criação que fosse colocada em oposição ao reino, não poderia ser uma ética evangélica, pois falharia em perceber as boas novas de que Deus agiu para trazer tudo aquilo que Ele criou à sua plenitude.” (RMO)
Como a teologia natural, O’Donovan afirma a ordem moral objetiva que é inerente à criação. Levar a sério a Queda do homem (como em Romanos 1), contudo, mina a confiança epistêmica da qual o programa da teologia natural depende: “Ao falarmos sobre a natureza humana caída, apontamos não somente uma persistente rejeição da ordem criada, mas também uma inescapável confusão em suas percepções sobre ela. Isso não nos permite seguir a receita estoica de uma “vida de acordo com a natureza” sem uma medida de cautela epistemológica” (19). Podemos afirmar com segurança
“que a rebelião do homem não foi bem sucedida em sua destruição da ordem natural da qual ele faz parte, mas isso não é algo que poderíamos dizer com autoridade teológica exceto com base na revelação de Deus na ressurreição de Jesus Cristo. Dizemos que isto, esta ou aquela demanda ou proibição cultural […] reflete fielmente a ordem criacional. Isso, porém, também é algo que só podemos saber assumindo nosso lugar dentro da revelação dessa ordem oferecida em Cristo. Como os céticos e relativistas nos lembram, não é autoevidente o que é natureza e o que é convenção.”
Embora O’Donovan concorde com os kuyperianos e defensores da lei natural que existem normas morais “ontológicas” objetivas de moralidade e prosperidade inscritas na criação, o problema com os programas de lei natural da teologia pública é que eles também presumem uma habilidade universal de conhecer e entender essas normas: “O programa epistemológico para uma ética que seja ‘natural’, no sentido de que seus conteúdos são simplesmente conhecidos por todos, precisa enfrentar barreiras elevadas de descrédito” (RMO 19).
O que está errado com a lei natural?
Penso que isso nos fornece uma maneira de ser francamente honestos sobre por que os programas de lei natural falham em persuadir no debate público (os debates recentes sobre casamento são um bom exemplo). Aquilo que claramente vemos como “racional” e “natural” em si depende da iluminação e de virtudes intelectuais que não estão universalmente disponíveis. Discernir adequadamente os contornos da criação e da lei natural na verdade requer fé. Francesca Murphy recentemente fez a mesma afirmação em First Things: “Um ensino que uma vez fez parte do senso comum da sociedade agora se tornou um item de fé, e de uma fé esotérica. Somente aqueles com princípios bíblicos, inclusive aqueles católicos que usam a lei natural, veem a necessidade de restringir o casamento a casais heterossexuais. Os argumentos racionais que oferecemos caem em ouvidos surdos. Poderíamos muito bem estar citando as Escrituras.” Apelos à natureza dependem da iluminação da revelação especial.
Isso, porém, não significa que as normas só se aplicam à comunidade cristã; elas continuam sendo normas para uma humanidade plena. Francesca, então, aconselha um testemunho público contínuo e argumenta sobre esse assunto de um ponto de partida cristão não-apologético: “penso que a visão tradicional do casamento na verdade se tornou uma matéria de fé e precisamos continuar a argumentar que isso deve estar nos livros jurídicos mesmo após cada estado ter sancionado o casamento entre pessoas do mesmo sexo”. Reconhecer as condições revelatórias para o insight sobre a natureza humana não anula a proclamação pública.
Como ser humano: ressurreição prática
Uma vez que a criação é reafirmada na ressurreição de Cristo e que a “natureza” é somente conhecida “em Cristo”, então qualquer consideração cristã sobre a “mundanidade” precisa ser indesculpavelmente evangélica, enraizada naquilo que conhecemos como Evangelho – e por causa do Evangelho. Isto deve incluir nossa teologia política, mesmo que nossa teologia política envolva uma percepção de como viver com aqueles que não estão “em Cristo”. Em nosso testemunho público e político, não devemos parecer que estamos trabalhando nas trevas como todos os outros, sem revelação e iluminação. Contrariando o Rei Lear, O’Donovan faz uma afirmação ousada em Desire of the Nations (DN): “Deus não tem espiões. Ele tem profetas e ele os comissiona a falar sobre a sociedade em palavras que reprovem o discurso inautêntico dos falsos profetas.” Uma teologia pública evangélica é nutrida pela especificidade da revelação de Deus em Cristo, que está atada na história canônica revelada nas Escrituras: a história de Israel.
É por isso que a teologia política evangélica é ao mesmo tempo evangélica e escandalosamente histórica. “Verdadeiros profetas”, ele continua, “não podem falar somente dos erros dos falsos profetas. Seu julgamento consiste precisamente naquilo que eles têm a dizer sobre o propósito de Deus em renovar, sobre sua misericórdia mesmo para com sociedades tão fracas e frágeis como Israel e Judá – comunidades instáveis nas quais o destino das almas dependia. A teologia cristã deve assumir a função do profeta e aceitar a história como a matriz na qual a política e a ética tomam forma, afirmando que essa é a história do agir de Deus” (DN 11-12). Esse é exatamente o exercício de O’Donovan em Desire of the Nations: ler a história de Israel tanto como “uma história da redenção” quanto como nossa história – sim, como parte do pedigree da democracia liberal. Isto é ler a história de Israel “como a história de como certos princípios de política e vida social são vindicados pela ação de Deus no julgamento e restauração das pessoas” (DN 29).
“Nada na democracia moderna mudou o fato de que a existência política depende de estruturas de comando e obediência”, O’Donovan observa (DN 18). Assim, o âmago de uma teologia política cristã está em discernir a natureza da autoridade que, nas Escrituras, está acoplada ao reino de Deus. Mas O’Donovan novamente enfatiza a continuidade com a criação: “A história do governo divino protege e redime os bens da criação […] Quando falamos de governo divino, falamos do cumprimento das promessas para todas as coisas mundanas e humanas” (DN 19). É por isso que a visão política cristã é seu próprio tipo de humanismo: Jesus é a imagem de Deus que a humanidade foi projetada para ser e, portanto, ele é o exemplo da humanidade e para a humanidade. Sua ressurreição é a realização (não o triunfo ou a superação) da humanidade. “O momento da ressurreição não aparece como um meteoro isolado que surge do céu, mas como o clímax da história do governo divino” (DN 20). Escandalosamente, é a vida particular de Jesus que nos mostra como a vida humana plena deve ser.
É por isso que uma teologia política cristã profética e coerente não pode operar sob o manto do naturalismo metodológico, fingindo que a revelação de Deus em Cristo é de alguma forma irrelevante para a nossa “penúltima” vida política. Sua vida e revelação são o único meio em que poderíamos entender como a vida política deve estar organizada. Assim, “a teologia política deve ir além dessas concepções gerais e tomar o caráter de proclamação histórica, atestando a afirmação de que Deus reina. Seu tema é o governo de Deus demonstrado e vindicado, a salvação que ele forjou em Israel e nas nações. A não ser que a teologia política fale desse modo, ela só poderá desenvolver um tipo de teoria política, não uma teologia política evangélica, uma ‘Lei’, no sentido teológico, ao contrário de um ‘Evangelho’” (DN 81).
Isso significa que a teologia política está descaradamente enraizada na especificidade e particularidade da autorrevelação de Deus em Cristo e na história igualmente particular de sua aliança com o povo de Israel e o povo da nova aliança, que é a Igreja. O corpo de Cristo é essa polis em que participamos em Cristo, no qual nossa percepção é santificada pelo Espírito para que possamos discernir o reino de Deus e então ser equipados para a proclamação pública da boa, mas desconcertante novidade de que a submissão ao reino de Deus é o meio de a humanidade ser libertada.
Traduzido por Bruno Mori Porreca e revisado por Jonathan Silveira.
Texto original: “Beyond Creation and Natural Law: An Evangelical Public Theology”. Cardus.
James K. A. Smith (PhD, Villanova University) é professor de Filosofia na Calvin College, onde também ocupa a cátedra Gary e Henrietta Byker de Teologia e Cosmovisão Reformadas Aplicadas. É editor da revista Comment, além de autor e organizador de vários livros, entre eles 'Você é aquilo que ama' e 'Desejando o Reino', publicados por Vida Nova. |
1 Comments
Texto incrível. Ainda não conhecia o O’Donovan, obrigado por apresentá-lo assim com a síntese do pensamento político dele. Para fechamento magistral da tradução, creio ser pertinente a colocação de uma vírgula nas últimas linhas do última parágrafo – na parte “…equipados para a proclamação pública da boa, mas desconcertante [VÍRGULA] novidade de que a submissão ao reino de Deus…”