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O amor impossível flui da misericórdia impossível | Jamie Dunlop
10/fev/2025Comecei a estudar o livro de Jó com uma certa relutância. Embora fosse a única responsável pelo envio de uma proposta de doutorado sobre Jó, quando finalmente encarei a perspectiva de uma luta de três anos com esse texto desafiador, a intimidação se instalou. Eu me senti incapaz de dizer algo verdadeiro e que valesse a pena sobre esse livro longo e difícil.
Com 42 capítulos (1.070 versículos), Jó é suficientemente colossal em sua tradução inglesa. O livro lida com questões teológicas importantes, baseadas no cenário injusto do sofrimento imerecido de Jó. Um complexo coro de vozes responde à sua situação aflitiva. O leitor tem de examinar as perspectivas de Jó, de sua esposa, de seus três amigos (Elifaz, Bildade e Zofar) e do jovem Eliú, bem como as de Deus, do enigmático satanás e do narrador. Como o leitor deve avaliar essas perspectivas? Quais são seus pontos de concordância e discordância? Quem está “certo”, e com base em quê?
Existe alguma maneira de ouvir uma mensagem coerente e convincente por meio das vozes dissonantes desse livro?
Parece importante ler uma parte da estrutura literária de Jó à luz do todo, mas descobrir como o livro inteiro se encaixa está longe de ser uma tarefa simples. Por exemplo: por que Deus repreende o discurso de Jó (38:2) e depois o elogia quatro capítulos adiante (42:7-8)? Ou como a ladainha poética de perguntas de Deus sobre a criação, que tem até relâmpagos e um avestruz (38:1–41:34), constitui uma resposta válida para um Jó coberto de chagas, acocorado em um monte de cinzas, lamentando a perda de seus dez filhos (veja cap. 1–2)?
Portanto, o livro de Jó em inglês está cheio de desafios, mas eu tenho de lidar com ele em hebraico. E muitos estudiosos afirmam que Jó tem o hebraico mais difícil do Antigo Testamento. O núcleo poético do livro (3:1–42:6) inclui cerca de 170 palavras que não ocorrem em nenhum outro lugar do Antigo Testamento, além de outras palavras raras e usos estranhos. Uma pessoa pode chegar ao texto com muito zelo interpretativo e acabar se sentindo frustrada quando palavras desconhecidas e sintaxe complicada fazem um verso de poesia parecer ininteligível.
No entanto, quando comecei a pesquisar, vi meus receios serem varridos por uma cascata de “alegria de Jó”. Hoje considero que esse livro é vital para cultivar a lealdade a Deus com uma alma tranquila e satisfeita, em um mundo cheio de sofrimento e perguntas sem resposta.
O que mudou? Minha “alegria de Jó” decolou quando resolvi memorizar o livro em hebraico.
Uma tarde, eu estava em Tyndale House conversando sobre meu processo de pesquisa com Kim Phillips, que havia escrito recentemente para Ink sobre antigas técnicas para memorizar os Salmos. Quando lhe falei sobre meu objetivo de mergulhar no texto hebraico de Jó durante meu estudo, Kim sugeriu casualmente que eu podia memorizar o livro inteiro. Fiquei impressionada com o jeito como ele fez parecer que seria razoável enfiar no meu cérebro 42 capítulos de uma literatura altamente sofisticada, escrita em uma língua antiga. Mas era uma perspectiva tentadora — irresistível, na verdade. Naquele dia, me comprometi a memorizar todo o livro de Jó em hebraico. E menos de 6 meses depois, alcancei meu objetivo.
Várias motivações me levaram a enfrentar esse desafio cognitivo. Eu estava — e continuo — receosa de impor ao livro estruturas teóricas e metodologias que presumimos serem inteligentes, mas podem não ser úteis. Um estudante de doutorado sério poderia facilmente se perder em uma câmara de eco de copioso debate acadêmico sobre Jó — os antigos perigos da proverbial torre de marfim. Quero participar de discussões acadêmicas enquanto ainda ouço Jó como um texto vivo e reflito em meus próprios pensamentos e perguntas que brotam do meu encontro com ele. Memorizar Jó foi uma forma de manter minha responsabilidade em relação ao texto bíblico, ao mesmo tempo em que permanecia profundamente ciente de que minha compreensão dele é provisória. Basicamente, eu esperava que me esforçar por muitas e muitas horas para gravar esse texto em minha mente me ajudasse a fazer meu doutorado de forma mais honesta e humilde.
Também vi a memorização de Jó como uma excelente oportunidade de me posicionar como estudante que pertence a Deus. Na minha opinião, os estudos bíblicos acadêmicos não devem ser divorciados da formação espiritual pessoal. Decidi banhar em oração essa tarefa técnica de hebraico, resolvi não emergir sem transformação do meu envolvimento com Jó. Eu chamo o empreendimento de “uma doutrina incorporada da experiência com as Escrituras”. Para mim e para outros, não fazia sentido memorizar Jó, dentre todas as passagens bíblicas. Por que me dar ao trabalho de colocar os 113 versículos de Elifaz na minha cabeça, sendo que Deus fica zangado com ele por seu discurso no final do livro (42:7-8)? Certamente, a maior parte desse livro — em que os personagens discutem a natureza da justiça divina e Jó se atreve a descrever Deus como seu inimigo — parece menos obviamente “edificante” para memorizar do que, digamos, o salmo 23. Mas minha doutrina das Escrituras confronta essas objeções: se Deus nos deu Jó nas Escrituras, o fato de eu não ter a mínima ideia do que o livro está fazendo, e por que razão, provavelmente revela mais a minha ignorância do que qualquer deficiência do texto. Então, por que não colocar Jó dentro de mim, orar ardentemente e ver o que acontece?
Ao iniciar meu experimento, me lembrei das magníficas capacidades do cérebro humano quando catalisadas pelo entusiasmo e restringidas pela disciplina. Minha rotina era a seguinte: eu acordava cedo e começava a repassar capítulos já memorizados de Jó na minha cabeça, assim que saía da cama. À medida que os capítulos memorizados foram aumentando, desenvolvi um sistema bem-elaborado de revisão rotativa de capítulos, praticando capítulos todos os dias até me sentir confiante para revisar esse bloco de texto a cada dois dias, depois a cada três. Após um tempo, antes de chegar à Tyndale House para começar o dia de trabalho, eu já havia repassado de 7 a 10 capítulos na minha cabeça. Eu estava me tornando um “Jó ambulante”, capaz de levar o livro comigo para a academia, o chuveiro ou as ruas de Cambridge.
Então eu passava meus primeiros 60–90 minutos na biblioteca revisando o material que havia aprendido mais recentemente (portanto, o mais precário) e adicionando novos versículos. Felizmente, a capacidade do meu cérebro de absorver o hebraico aumentou ao longo do tempo, permitindo que eu aumentasse também minha taxa de aquisição: inicialmente, eu adicionava 5–6 novos versículos por dia e, no final, estava aprendendo 8–10 novos versículos por dia. Passei muito tempo andando de um lado para outro e recitando baixinho no corredor da biblioteca. Estou feliz de poder dizer que não houve colisões com meus colegas tolerantes durante meus meses de devaneio matinal em Jó. Depois de terminar todo o livro, eu repassava 14 capítulos na minha cabeça todos os dias, 6 dias por semana, de modo que eu completava Jó duas vezes por semana. Com o texto agora bem fixado, reviso apenas 7 capítulos por dia antes de ir para a biblioteca (uma vantagem de ser madrugadora!).
O esforço valeu a pena? Sem dúvida, por muitas razões. Embora minhas motivações fossem mais devocionais do que acadêmicas, certamente colhi os benefícios para a pesquisa. Tendo internalizado Jó, sinto que consigo avaliar melhor os argumentos de outros estudiosos sobre o livro e tenho melhores condições de reunir evidências para apoiar os meus. Tenho mais capacidade de registrar conexões lexicais e temáticas em diferentes seções e vozes no livro — o que os estudiosos chamam de “intratextualidade”. Enquanto meus olhos se fixavam em cada palavra de Jó e minha mente buscava auxílios mnemônicos, comecei a apreciar o requinte desse texto notoriamente difícil em hebraico. Embora eu saiba que consigo captar apenas uma fração do brilho e da arte de Jó, fiquei maravilhada com os jogos de palavras, as aliterações e as repetições espirituosas que tecem o texto e o costuram.
Memorizar o livro todo faz com que seu comprimento pareça penoso, já que cada palavra escrita significa mais minutos que eu passo andando de um lado para outro. Inevitavelmente, eu me perguntei por que foi incluído tudo que há dentro de Jó, principalmente tendo em vista o fato de que grande parte do diálogo entre personagens humanos (caps. 3–37) parece tediosamente improdutivo. Mas e se o livro for longo de propósito? O que ele pode estar fazendo com a leitora, à medida que ela avança em uma jornada de Jó de 42 capítulos? Fiquei convencida de que um dos efeitos literários da estrutura e do estilo do livro é fazer crescer a ansiedade do leitor para que Deus responda. O leitor ouve o esgotamento das tentativas humanas de responder ao justo sofredor com explicações e soluções para sua situação. Isso faz com que ele anseie que o impasse seja desfeito pela voz divina — a única voz capaz de dar uma solução para Jó, tanto o homem quanto o livro.
Também foi um prazer descobrir as maneiras imprevistas pelas quais o texto inculca em mim certas posturas e obediência enquanto satura minha imaginação. Jó reverbera na minha vida de oração e nas conversas. Todos os dias, eu me vejo pensando nas minhas limitações como criatura e no convite que essas limitações me fazem para que eu confie no Deus que sabe o que eu não sei e governa o que não posso controlar. Eu me sinto mais motivada a interceder em oração pelos meus próximos que sofrem.
O imprevisto me lembra de me alegrar com o invisível. Envolver-se com as Escrituras na esperança de ouvir a voz de Deus é sempre um ato de fé. Relembrando o quanto o Senhor já me instruiu generosamente por meio de Jó, sinto a certeza de que ele continuará a fazer o que quiser no meu coração e na minha vida por meio das Escrituras. Sua operação é muitas vezes misteriosamente silenciosa e lenta, mas é real, profunda e duradoura.
Sim, estou envolvida em uma luta livre com Jó. E oro para que, dia após dia, ano após ano, eu possa me encontrar perdendo — totalmente subjugada e satisfeita com o Deus que continua respondendo ao seu povo nas páginas desse livro.
As sugestões de Ellie para memorizar a Bíblia:
- Estabeleça uma organização mental para o texto, de acordo com sua estrutura literária e temas. Nossa mente armazena informações com muito mais facilidade quando estão organizadas do que quando estão desorganizadas. Ao dividir Jó em capítulos e depois subdividir e tornar a subdividir, meu objetivo era ter uma versão “pesquisável” de Jó na minha mente. Posso acessar o texto no início de cada capítulo e em muitos outros pontos dentro do capítulo, diminuindo minha dependência da sequência para recordação.
- Crie um sistema para reter o material aprendido anteriormente. Pense na memorização como meditação e repita o texto incansavelmente. No caso de material novo, achei mais produtivo aprender versículos pela manhã, quando minha mente está mais fresca, e depois recitá-los em algum momento da tarde ou da noite. Quando eu forçava meu cérebro cansado a fazer isso por até mesmo 10 ou 15 minutos no final do dia, minha lembrança no dia seguinte era muito melhor.
- Procure envolver seu corpo o máximo possível: olhe para o texto, repita-o em voz alta, ande, crie uma dança interpretativa (opcional).
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![]() | Ellie Wiener Doutoranda na Universidade de Cambridge |
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Texto original: Learning to love: The surprising joy of memorising Job Tyndale House Cambridge. Traduzido e publicado no site Cruciforme com permissão. | ![]() |
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1 Comments
Parece-me excelente o conteúdo do livro. Ellie mostrou ser digna de receber o título.