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05/abr/2017Uma de minhas passagens favoritas em toda literatura é a resposta que Brejeiro dá à Dama do Vestido Verde em A Cadeira de Prata. A Dama (uma feiticeira má) possui vários personagens presos no submundo e, com o auxílio de um pouco de magia, tenta convencê-los de que Nárnia, Aslam e o resto do “Mundo de Cima” de fato não existem. Os personagens estão prestes a ceder, quando Brejeiro pisa no fogo mágico e declara:
“Uma palavrinha, dona – disse ele, mancando de dor –, uma palavrinha: tudo o que disse é verdade. Sou um sujeito que gosta logo de saber tudo para enfrentar o pior com a melhor cara possível. Não vou negar nada do que a senhora disse. Mas mesmo assim uma coisa ainda não foi falada. Vamos supor que nós sonhamos, ou inventamos, aquilo tudo – árvores, relva, sol, lua, estrelas e até Aslam. Vamos supor que sonhamos: ora, nesse caso, as coisas inventadas parecem um bocado mais importantes do que as coisas reais. Vamos supor então esta fossa, este seu reino, seja o único mundo existente. Pois, para mim, o seu mundo não basta. E vale muito pouco. E o que estou dizendo é engraçado, se a gente pensar bem. Somos apenas uns bebezinhos brincando, se é que a senhora tem razão, dona. Mas quatro crianças brincando podem construir um mundo de brinquedo que dá de dez a zero no seu mundo real. Por isso é que prefiro o mundo de brinquedo. Estou do lado de Aslam, mesmo que não haja Aslam. Quero viver como um narniano, mesmo que Nárnia não exista. Assim, agradecendo sensibilizado a sua ceia, se estes dois cavalheiros e a jovem dama estão prontos, estamos de saída para os caminhos da escuridão, onde passaremos nossas vidas procurando o Mundo de Cima. Não que as nossas vidas devam ser muito longas, certo; mas o prejuízo é pequeno se o mundo existente é um lugar tão chato como a senhora diz.”[1]
Alguns consideram esta passagem como um tipo de inversão da famosa alegoria da caverna de Platão, mas, até pouco tempo, eu nunca havia pensado nela como uma aplicação do argumento ontológico ou como uma cosmovisão platônica mais geral. Recentemente, então, deparei-me com a seguinte declaração do próprio Lewis em uma carta a Nancy Warner enviada em outubro de 1963. Warner mencionou que o filho dela havia feito referência à presença de um “argumento ontológico” em A Cadeira de Prata, e Lewis respondeu:
“Suponha que o seu filho filósofo… esteja se referindo ao capítulo no qual Brejeiro apaga o fogo com o pé. Ele deve agradecer a Anselmo e a Descartes por isto, não a mim. Eu simplesmente inseri a ‘Prova Ontológica’ de uma maneira apropriada para crianças. E isso não é uma façanha tão notável como se poderia pensar. Podemos inculcar muitas coisas na mente das crianças, coisas que estão além do conhecimento do Bispo de Woolwhich.”
Quem mais além de C. S. Lewis poderia unir o existencialismo e o argumento ontológico em um livro infantil? Chegar a tal inovação engenhosa de uma maneira tão acessível é um testemunho de seu brilhantismo.
Apelando ao coração
Em minha mente, essa passagem de Brejeiro é uma declaração contundente contra visões desconstrucionistas de mundo. Se o niilismo é verdadeiro e todas as doutrinas sólidas e belas do cristianismo – digamos, Deus, o céu, o bem objetivo – são falsas, então as ideias em meu cérebro têm mais peso do que a realidade que trouxe meu cérebro à existência. Isto é muito difícil de engolir.
O sentimento crescente do Ocidente moderno é que o “numinoso” está acabado e temos apenas que lidar com o “fenomênico” – nada de transcendente resta, todo pensamento está social e biologicamente condicionado, toda a metafísica resume-se apenas a “bebezinhos brincando”. Às vezes, em momentos de trevas, eu luto contra essa cosmovisão e vejo-me preso por sua terrível natureza. Nesses momentos, esse parágrafo de Brejeiro me ajuda. O parágrafo sugere não apenas a falsidade da dúvida, mas também sua fragilidade, pois, mesmo que a ideia fosse verdadeira, ela seria indigna de nosso compromisso.
Cada vez me questiono mais se a beleza do cristianismo deveria ser uma característica mais recorrente em nossa apologética em nosso atual momento cultural. Em uma era de desilusão, as pessoas frequentemente encontram mais verdade nas artes do que na lógica. É o cutucão no coração, mais do que o apelo à mente, que frequentemente triunfa. Para sermos mais eficientes em nossa defesa de Cristo, talvez devamos ajudar as pessoas a sentirem a completa maravilha do evangelho – o senso de encantamento e nostalgia que uma criança sente ao ler sobre Nárnia, por exemplo. É mais difícil rejeitar algo uma vez que você deseje que ele fosse verdadeiro.
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[1] LEWIS, C. S. As crônicas de Nárnia, A cadeira de prata. Ed. Martins Fontes, São Paulo: 2009, p. 598-599.
Traduzido por Jonathan Silveira.
Texto original: How C. S. Lewis Put the Ontological Argument for God in Narnia. The Gospel Coalition.
Gavin Ortlund (PhD, Fuller Theological Seminary) é marido, pai, ministro e professor visitante no ministério Reasons to Believe. É autor de muitos livros, incluindo Ascending Toward the Beatific Vision: Heaven as the Climax of Anselm’s Proslogion (Brill). Gavin escreve regularmente no blog Soliloquium. |
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2 Comments
Ótima reflexão do Gavin Ortlund nesse artigo.
C. S. Lewis foi muito feliz em nos fazer ver em Nárnia um vislumbre do Novo Céu e da Nova Terra.
Muito obrigado, de verdade, ajudou muito