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26/ago/2019No verão de 1962, o historiador italiano Carlo Ginzburg pesquisava documentos inquisitoriais nos arquivos paroquiais de Udine quando se deparou com um processo um tanto quanto espesso, com uma sentença extremamente longa, o que era bastante incomum. A principal acusação era de que o réu defendia que o mundo tinha sua origem na putrefação.
O réu era o homem conhecido como Mennochio, que desempenha atividades como moleiro, trabalhando em moinhos e que viveu no século XVI. Mesmo não muito abastado, Mennochio conseguiu ter um certo nível de instrução, chegando a aprender um pouco de latim. Mas sua grande marca era ser um grande falastrão, como muitas testemunhas apontaram. E foi isso que chamou a atenção dos inquisidores. Ele gostava de apresentar suas opiniões heréticas para qualquer um que quisesse lhe ouvir.
Assim, Mennochio é convocado e preso pelo Santo Ofício, principal tribunal da inquisição. Muitos conhecidos seus o aconselharam a ficar em silêncio perante os inquisidores, mas ele não conseguia se segurar: falou acerca da criação do mundo, dos sacramentos, de Deus e do diabo, expondo toda a sua cosmovisão esquizofrênica. Os inquisidores ficaram curiosíssimos em saber que um camponês podia ter tantas ideias. Daí a extensão das inquirições.
Após várias sessões, Menocchio expõe sua cosmogonia, suas ideias de como o mundo, os anjos e os seres humanos vieram a existir. Para ele, Deus criou o mundo com uma matéria da mesma maneira que do leite se faz queijo. Os primeiros seres foram os anjos, “produzidos pela natureza da mais perfeita substância do mundo, assim como os vermes nascem do queijo” (p. 136). A história, com outras posições polêmicas, é analisada por Carlo Ginzburg no delicioso livro “O queijo e os vermes”.
Menocchio é um caso exemplar: alguém que constrói toda uma visão de mundo baseada em suas poucas leituras e sua experiência direta (no caso de nosso camponês, o mundo rural). Cruzava várias informações, não sabia julgar o correto e o errôneo e fazia um amálgama incoerente de tudo o que lia e ouvia. Até os inquisidores se surpreenderam com tanto disparate.
Nesta semana em que comemoramos o dia do historiador (19/08), me vem à memória esse caso. O que aprendemos com Menocchio? Ele era alguém que lia, mas não sabia interpretar o que lia e ouvia. Misturava conceitos e estava ansioso para falar o que aprendia para qualquer um que estivesse disposto a ouvi-lo, até mesmo para pessoas que tinham poder sobre sua vida. Atualmente temos sérios problemas de analfabetismo funcional, com pessoas incapazes de compreender um texto simples. Sabem ler, mas não conseguem compreender o que está sendo dito. Os dados mostram que na faixa de pessoas entre 15 a 64 anos 29% são analfabetos funcionais.[1]
Agora imaginem o tamanho do estrago quando muitas informações truncadas são difundidas e publicizadas… o palco dos menocchios atuais é a internet. Fake news, conspirações, trolls, memes… eis as fontes de informação de muita gente. Exige-se uma grande carga de sabedoria para se navegar nas redes. Devido à quantidade de informações disponíveis, as redes parecem ter a capacidade de tornar qualquer pessoa em um grande filósofo, teólogo, enfim, um intelectual.
Talvez seja pertinente pensarmos em alguns parâmetros para atuação nas redes sociais.
1. Antes de mais nada, devemos ser críticos com todas as informações que recebemos. Na verdade, não somente na internet, mas ser crítico dos livros que lemos, das conversas que temos, das palestras/pregações que ouvimos. Não acredite em tudo que lê.
2. Sabedoria ao difundir uma ideia. Uma das marcas da humanidade é querer expor suas ideias; sem problemas, mas o que antes fazíamos para pessoas próximas, com a vantagem de podermos corrigir e sermos corrigidos em nossas polêmicas, agora fazemos isso para um público potencialmente imenso. Quando postamos uma ideia impensada nas redes, não sabemos quem será o receptor daquela informação. Por isso ocorrem tantos ruídos de comunicação que podiam facilmente ser mitigados em encontros pessoais. Já parou para pensar que talvez sua ideia não seja assim tão merecedora de sair de sua cabeça? Coloque num papel, reflita sobre o que pensa, amadureça e só depois, se necessário, se for construtivo e agregador de valor, poste. Nos tempos bíblicos, os pergaminhos eram extremamente caros, “postar” algo que não valesse a pena era impensável.
3. A fonte de informação que estamos lendo é confiável? Que é tendenciosa, não há discussão, não existe neutralidade em nenhum lugar. Se a fonte se coloca como neutra, ou isenta, desconfie também. Atenção que mesmo fontes confiáveis podem trazer informações falsas ou equivocadas. Ninguém está livre de erros, mas não se pode desculpar a falta de caráter de não desculpar por equívocos.
4. Cuidado com comprar “pacotes” de ideias somente porque se identifica com certa corrente de pensadores. Sabemos que todos os espectros políticos e religiosos possuem seus próprios conjuntos de crenças. Terraplanismo, negacionistas de problemas ambientais, antivacinas, enfim, podemos aumentar a lista indefinidamente. Não há vergonha alguma em fugir da sua bolha de influência. O ser humano não é um ser monótono (um só tom) no que concerne a ideias.
5. A notícia que está lendo está atualizada ou é recente? No atual quadro de tensões políticas, é comum alguém desenterrar notícias antigas para defender suas opiniões ou criticar posições. Acontece que as pessoas mudam de opinião (ou deveriam) e pode ser que não defenda mais tal posição. Pode-se perguntar se tal posicionamento permanece. Outra coisa é que os dados podem ser desatualizados ou tratar de algo que já “prescreveu”. A maior parte das vezes que se publicam notícias antigas o intuito é criar caos.
6. Concedo que é difícil ser crítico o todo tempo e ficar checando se a notícia é verdadeira. Mas o cristão é chamado a examinar todas as evidências, retendo o que é bom (1Tessalonicenses 5.21), levando cativo todo o nosso entendimento à obediência de Cristo (2Coríntios 10.4-5), amando a Deus de todo o nosso coração, alma e entendimento (Mateus 22.35-38). Como fazer isso na nossa atuação nas redes? Desenvolvendo uma vida de santidade e refletindo constantemente na Palavra, para que nossos pensamentos e atitudes reflitam ações de um verdadeiro discípulo de Cristo. Pense antes de postar: minha ação está honrando a Deus?
7. Não compartilhe com leviandade; leia, reflita, na dúvida converse com quem pode te auxiliar a compreender as informações. Cultive boas amizades, na internet e principalmente fora dela. Comunidades são extremamente importantes na hora de fortalecer uns aos outros nas fraquezas individuais. Não pratique o “hating post” a postagem de ódio… lembrem que somos chamados a amar nossos inimigos (Lucas 6.27-36); atacá-los nas redes com certeza não se qualifica como amor.
8. Não seja pedra de tropeço para os outros; cuidado ao postar coisas que podem levar ao escândalo. Nem todas as ideias precisam sair da sua cabeça.
9. Leia bons livros. Isso nos ajuda no ponto 1, sobre ter pensamento crítico. Não devemos basear nossa formação nas redes. Aliás, podemos perceber que muitas pessoas se informam unicamente pelas redes sociais e nunca leem livros. Não há como construir espírito crítico se perdendo nesse mar de informações que é a internet. Ela nos ajuda muito a encontrar informações, mas somente com uma boa carga de leitura (quantitativa e qualitativa) conseguimos julgar se as informações procedem. Digamos que, na construção de nossa visão crítica, gastemos para cada hora na internet outras 3 a 4 horas de leitura de livros. Não estou falando de tempo total nas redes, porque passamos muito tempo livre nas redes apenas surfando descompromissadamente; falo do tempo exclusivo que tiramos (ou deveríamos tirar) para ler postagens informativas.
10. Por fim, não sejamos como Menocchio. Somos, principalmente os mais jovens, muito mais companheiros de viagens de grandes pensadores que estão no processo de aprendizagem do que grandes sábios reconhecidos em seu campo. (Ver o excelente artigo: “Jovens, não somos o Gandalf da teologia“). A construção do conhecimento exige sim paixão, mas também humildade e sabedoria.
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[1] https://epocanegocios.globo.com/Brasil/noticia/2018/08/epoca-negocios-tres-em-cada-10-sao-analfabetos-funcionais-no-pais-aponta-estudo.html
Luiz Adriano Borges é professor de história na UTFPR-Toledo, lecionando sobre história da técnica, tecnologia e sociedade, filosofia, sociedade e política. Sua área de pesquisa centra-se na História e Filosofia da Tecnologia e da Ciência. Seus projetos mais recentes são: “A visão cristã da tecnologia” e “Esperança em Tempos de guerra. Ciência, tecnologia e sociedade em Tolkien, Huxley, Lewis e Orwell (1892-1973)". |
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1 Comments
Obrigada por esta sua postagem. Um abraço pelo dia do historiador! (não sabia, mas o artigo trouxe a informação). Que não sejamos leitores funcionais: haja aprendizado, reflexão e senso crítico, também o desejo humilde de ouvir e assimilar, mais do que com tola avidez, espalhar vozes, textos e pensamentos que ocupam espaço, tempo, energia sem gerar algo que vale a pena.