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31/mar/2020Tem artistas que olham para o mundo e conseguem digerir o que veem com uma perspicácia capaz de ser confundida com poderes proféticos. A receita para suas obras de arte estão por aí, na vida e na sociedade, nos rumos que o ser humano toma, à vista de todos. Ao juntarem tudo para um projeto, porém, tiram do caldeirão algo que tem impressa tanta realidade que assombra. Quando perguntaram ao diretor Alfonso Cuarón como é que ele previu as grandes crises de refugiados da década de 2010 em seu filme de 2006, Filhos da Esperança, ele disse que simplesmente prestou atenção nas coisas.
O lendário designer de games Hideo Kojima não é nenhum bruxo. Porém, quando Hideo Kojima lança um jogo, todo mundo prende a respiração. O paralelo, pelo menos no mundo do cinema, seria com James Cameron. O cineasta sempre se embrenha em projetos estranhos, complexos e sem muita explicação. E sempre entrega um novo clássico, algo que muda não só o gênero, mas a mídia, e, às vezes, até um filme que chega ao número 1 histórico da bilheteria mundial (e James Cameron fez isso DUAS VEZES). Kojima quase sempre lança um jogo que fica na memória de todos, mas ele não joga para o popular, como Cameron. Kojima inventa maneiras novas de fazer coisas antigas, às vezes tão complicadas, e SEMPRE envolvendo uma trama que quer ao mesmo tempo ter os pés no chão, mas a cabeça nas nuvens mais surreais, que à primeira vista seus jogos podem afastar a maioria do público. Só que a genialidade está lá. E, aliada à genialidade, tem um humanismo incorrigível e um pacifismo ferrenho, que faz com que até mesmo seus famosos jogos de espionagem e guerra da série Metal Gear Solid proponham a possibilidade de serem completados sem que o jogador mate um ser humano digital sequer.
Mas Kojima também sempre fala sobre política, filosofia e humanidade. Seus personagens, enquanto canastrões e exagerados, têm buscas que comentam sobre a vida humana, tecnologia, os valores e o significado de uma nação e até fé, amor e morte. Um jogo de Kojima nunca é só um “joguinho”.
Dito isso, talvez nunca tenhamos encontrado uma obra de arte com um valor tão significativo para uma catástrofe do mundo real quanto sua “nova obra prima”, Death Stranding.
Você joga no papel de Sam Porter Bridges, que tem o visual e os grunhidos ríspidos de Norman Reedus, e você é essencialmente um entregador. A humanidade está enfrentando uma série de fenômenos bizarros, o que torna o transporte entre locais populados extremamente difícil e perigoso. A partir de um evento batizado com o nome do jogo, criaturas sombrias – agentes, literalmente, do mundo dos mortos, uma dimensão paralela para onde vão as almas falecidas – espreitam o mundo, terroristas armados se escondem nos vales, e a chuva é fatal. Qualquer coisa, quer seja orgânica ou não, quando entra em contato com chuva, tem seu tempo acelerado. Uma pessoa deixada ao léu envelhecerá e morrerá numa questão de minutos. Por conta disso, cidades extremamente fortificadas selaram suas entradas, deixando inúmeras pessoas isoladas ao longo do mundo.
Os EUA se fragmentaram, e a presidente americana convoca os serviços de Sam para cumprir três tarefas. Ele precisa viajar ao oeste para atingir povoados, cidades e até mesmo cabanas com pessoas solitárias, conectando todos à gigantesca rede wireless que cientistas criaram, o que devolveria o contato a milhares de pessoas. Além disso, ao atingir seu alvo na costa oeste americana Sam precisa achar um meio de resgatar Amelie, a filha da presidente, que foi raptada por terroristas. A terceira tarefa é a mais estranha e a mais comum no jogo inteiro. Sam precisa entregar pacotes. Por cerca de 90% do jogo, Sam terá que simplesmente carregar uma encomenda de um lugar para o outro.
O que vários veículos ridicularizaram, chamando de uma gourmetização da fetch quest, as velhas missõezinhas de “leva e traz”, é, na verdade, o centro desse pulo do gato que Kojima deu. Sam precisa atravessar terrenos enormes, completamente irregulares, carregando kilos e kilos de encomendas, a princípio usando pouco além de seu próprio corpo como ferramenta. Sua mochila high-tech suporta até um certo número de itens, que depois precisam ser acoplados aos seus braços e pernas. Seu equilíbrio precisa ser levado em conta: se ele vai correr por aí, colocar peso demais em um lado de seu corpo facilitará tombos. O technobabble sci-fi também ajuda Sam a construir objetos, como escadas, pontes, baús de armazenamento, e, mais para frente, veículos e até tirolesas, tudo para facilitar o transporte. E lá vai o entregador, pronto para enfrentar os perigos mais bizarros possíveis, além de ensinar o jogador a ter medo da chuva.
É nessa construção de utensílios que começamos a ver do que Kojima está realmente falando. O tema do jogo é, de fato, isolamento, nossa necessidade por contato, solidão. Sam é afefóbico – tem aversão a ser tocado por outros. Mas Kojima quer que a mecânica do jogo e a linguagem dele esteja refletindo sua temática, não só seu texto. Quando você constrói uma escada, ela vai continuar ali no ambiente e vai continuar lá até a chuva destruí-la. Porém, até isso acontecer, outro jogador de qualquer outra parte do mundo que esteja jogando Death Stranding pode esbarrar no mesmo obstáculo e ver a escada que você construiu lá, com seu nome. Ele pode então usá-la e até mandar um like (a unidade monetária do jogo) para você.
Isso se estende a praticamente tudo que você deixar para trás, incluindo as motos, cordas, antenas de observação. Quando você “destranca” um pedaço do cenário, podendo finalmente usar seus equipamentos na região, o mapa se ilumina com um monte de utensílios que outras pessoas ao redor do mundo criaram. Isso não deixa o jogo nem mais fácil nem mais difícil – há um equilíbrio constante entre o que vai aparecer “no seu mundo”, para que ninguém tenha vantagem demais.
Na série de games Dark Souls a qualquer momento um jogador pode invadir o seu jogo e atacar você. Kojima usa o mesmo princípio – cada jogador tem um mundo, todos os mundos estão conectados – para ensinar à nação gamer princípios sobre construir ao invés de destruir. Depois de certo tempo você começa a ver mais e mais estruturas criadas por pessoas ao redor do mundo, como estradas e abrigos. E começa um sentimento de que, juntos, você e outros jogadores estão criando um mundo novo das cinzas de um mundo antigo.
O jogo em si, o passo a passo (literalmente) das entregas acaba sendo viciante, tenso e memorável. A ação é muito bem ritmada, de maneira que mesmo simples entregas podem tanto ser caminhadas relaxantes ao longo de um cenário belíssimo, ou corridas frenéticas e nervosas. Seu simpático odradek – um radar acomodado no seu ombro – buzina um alerta quando você está na proximidade dos fantasmas sombrios, e tem que atravessar a região sem fazer nenhum barulho. Isso junto com o seu B.B., um bebê humano preso ao peito de Sam que funciona também como uma espécie de detector, permitindo que você enxergue os monstros.
As entregas são sempre caixas (com algumas exceções bem interessantes), de maneira que a única coisa que muda sobre elas de missão a missão é a quantidade e o peso. Porém, quem está pedindo e quem está recebendo faz bastante diferença. Pessoas ilhadas que precisam de suprimentos, de tecnologia, ou, às vezes, simplesmente se conectar à rede para poder voltar a ver seus entes queridos. Cada uma delas com seus dramas, suas opiniões e necessidades, todas mantendo em comum a obrigação de nunca saírem de seus abrigos. Sam se torna um herói, uma lenda, um santo, porque entrega a salvação literal para muita gente, mas também as entrega umas às outras de certa forma.
Todos os personagens de Death Stranding estão enfrentando algum tipo de isolamento. Uns mergulham no dever, outros na depressão. Heartman (que tem o visual… do cineasta Nicolas Winding Refn, de Drive..??) vive solitário num laboratório, enquanto tenta investigar uma dimensão paralela em busca de sua família. Deadman (a cara de ninguém menos que Guillermo Del Toro) é alguém sem contato social qualquer, em muita necessidade de um amigo. Mama (Margaret Qualley) ainda carrega as cicatrizes do que o cataclisma deu a ela, por precisar ficar conectada com uma criatura bastante incomum. A grande maldição de todos é o que a tragédia tirou de todos, o contato. A unificação, através de Sam, é a solução.
Há ainda mais personagens e mais fantasia e ficção científica que vão ficando progressivamente mais bizarras e complexas, mas é sempre a mesma coisa. Sam precisa andar, correr, escalar e saltar, enquanto machuca seu próprio corpo com o peso de encomendas para restaurar aquilo que todos tinham como certo até pouco tempo atrás. O mundo dos tolos só quer construir paredes quando esquece quão preciosas são as pontes.
Death Stranding é um estudo fascinante sobre cordas. A citação no começo do jogo diz que quase todas as culturas do mundo têm a vara – para atacar e para dividir – e a corda – para assegurar e para unir. Cordões umbilicais, algemas, conexão wi-fi, tudo vira não só mecânicas de jogo como peças metafóricas para aquilo que Kojima constrói mais ao longe. Sam pode, de fato, matar um outro ser humano se o jogador assim desejar. Mas há uma explicação tão biruta quanto efetiva do porquê ele não deve fazer isso que aquele pacifismo clássico de Kojima continua funcionando. É bem mais fácil terminar o jogo sem tirar nenhuma vida do que em qualquer de seus jogos anteriores.
Hideo Kojima saiu da Konami, sua casa por décadas, e a primeira coisa que faz no estúdio que leva seu nome, tecnicamente um estúdio “independente”, é um game sobre um futuro onde a conexão entre as pessoas e a habilidade delas em se unirem para ajudar umas às outras, ao invés de se destruírem, é o que salvará a humanidade. Um futuro onde todo mundo é obrigado a viver em constante quarentena e sair de seu abrigo gera perigos para todos.
Hideo Kojima lança esse jogo 124 dias antes da Organização Mundial de Saúde declarar que o COVID-19 causou uma pandemia global.
Como dito antes, Kojima pode parecer, mas não é nenhum cartomante. Mesmo que suas ideias sobre política, mídia, sociedade e tecnologia tenham sido referências para o mundo real em outras ocasiões, ninguém consegue prever uma catástrofe em nível global como a que assola o mundo durante o ano de 2020. Kojima, porém, a exemplo de Alfonso Cuarón, nunca parou de prestar atenção.
Não é a pandemia do COVID-19 que torna a conexão entre as pessoas importante, mas é ela que tornará inegável que sozinhos estamos todos perdidos. Durante o ano de 2020 a humanidade precisa ficar ilhada, exatamente porque assim estará salvando vidas. Um vírus ensinando à força para a humanidade o valor de construir ao invés de destruir.
Algo que Sam Porter Bridges já tinha nos contado. Que cada passo é uma conquista. Que cada entrega é uma dádiva. Que cada vida salva é uma vitória. Que moramos num mundo onde a distância é o maior obstáculo.
Mas que é sendo humanos que venceremos.
Keep on keeping on.
Texto originalmente publicado no site Judão.
Silas Chosen é roteirista, cineasta, publicitário, ilustrador e é viciado em cinema e histórias. Escreve para sites e programas de rádio sobre cinema, cultura pop e cristianismo desde 2004. Faz parte da 4U Films, ministério de cinema independente. |
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1 Comments
Que texto maravilhoso, meu amigo! Perfeito! O exato cerne do que é Death Stranding foi captado aqui. Fico contente de ter lido algo tão bem escrito e com detalhes que enriquecem o texto. Eu possuo um canal no Youtube e com certeza farei, caso permitam, citações desse artigo. Nesse canal, tento passar uma visão mais social e filosófica dos jogos sempre comparando com alguma outra mídia ou situação cotidiana. O próximo vídeo será sobre death stranding e com certeza seu texto ajudou. Agradeço bastante. Fique na paz!