Não pule a genealogia | Gedimar Junior

Spoilers Vida Nova 2025 | Edições Vida Nova
10/dez/2024
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Rabe!, CC BY-SA 4.0, via Wikimedia Commons

Normalmente, quando iniciamos a leitura do Evangelho de Mateus, somos tentados a fazer duas coisas: ou pular o trecho de Mateus 1.1-17 ou lê-lo de forma apressada, sem dar atenção aos detalhes. Se você já fez isso (assim como eu), este texto é para você. Se você já incentivou outras pessoas a lerem assim, este texto é para elas. Defenderei que a genealogia tem muito a nos ensinar. Espero que você não pule este artigo nem o leia rapidamente.

 

Semelhança entre Gêneses e Mateus

O primeiro elemento importante que gostaria de destacar é que há uma certa semelhança entre a genealogia de Jesus e a genealogia da criação. Quando lemos o Evangelho de Gênesis 1.1-2.3 (isso mesmo, o livro de Gênesis também é uma boa notícia de Deus) e o contrastamos com o capítulo 1.1-17 de Mateus, percebemos que há uma certa semelhança na estrutura:

  • Introdução (ver Gn 1.1-2 & Mt 1.1);
  • Desenvolvimento (ver Gn 1.3-31 & Mt 1.2-16);
  • Conclusão (ver Gn 2.1-3 & Mt 1.17).

Há também uma semelhança na estrutura em termos teológicos, ou seja, em ambos os textos percebe-se a pessoa de Deus em evidência na narrativa:

  • Deus como personagem principal em Gênesis 1.1-2 e Jesus em Mateus 1.1.
  • O desenvolvimento dos atos de Deus em Gênesis 1.3-31 e em Mateus 1.2-16.
  • A retomada do personagem principal em Gênesis 2.1-3 e em Mateus 1.17.

Além disso, há uma semelhança no conteúdo. A primeira pode ser vista quando lemos Gênesis 1. Na leitura, encontramos a centralidade de Deus como o grande Criador e duas evidências da obra de suas mãos: os céus e a terra. Da mesma forma, ao lermos Mateus 1.1, encontramos a centralidade de Jesus e, em seguida, dois elementos centrais que apontam para a sua vinda: Jesus é filho de Davi e Jesus é filho de Abraão. Por fim, no desenvolvimento, encontramos a segunda semelhança. O texto de Gênesis é marcado pela expressão ‘E disse Deus’, enquanto em Mateus é marcada pela expressão ‘gerou’. Em ambos os casos, o leitor consegue perceber quando uma cena se encerra e a outra se inicia. Vejamos um exemplo:

Disse Deus: Haja luz.

E houve luz.

e fez separação entre a luz e as trevas.

E Deus chamou à luz dia, e às trevas, noite.

E foram-se a tarde e a manhã, o primeiro dia.

E disse Deus: Haja um firmamento no meio das águas… (Gn 1.3-6)

Abraão gerou Isaque;

Isaque gerou Jacó. (Mt 1.2)

 

 

 

 

Conseguiu captar a semelhança? No exemplo de Gênesis, percebe-se que a primeira cena está ligada ao elemento da luz e a segunda, ao elemento do firmamento. Da mesma forma, em Mateus, captamos que a primeira cena envolve o nascimento de Isaque e, na sequência, o nascimento de Jacó.

Portanto, aqui cabe uma breve provocação a todos nós: a maneira como lemos Gênesis 1 é a mesma com que lemos Mateus 1? Ou, melhor, quando iniciamos a leitura do livro de Gênesis, pulamos a primeira parte? Se a resposta for não, por que pulamos ou somos tentados a pular a primeira parte de Mateus? O fato é que, da mesma forma que a narrativa da origem da criação tem muito a nos ensinar, certamente a narrativa da origem de Cristo também tem.

 

Por que Mateus escreveu sobre a origem de Jesus em uma lista?

No início da narrativa, encontramos Mateus relatando a genesis de Jesus. Esta palavra grega possui um leque de significados, mas me parece que ela traz a ideia de “genealogia”. Você pode até optar por outra tradução (como, por exemplo, início ou nascimento), mas certamente há de concordar que o autor do livro optou por escrever a narrativa por meio de uma lista “anotada”.[1]

Mas qual o propósito de uma genealogia? A finalidade, tanto na literatura judaica quanto na helênica, era dar identidade a alguém. [2] Em outras palavras, tendo Jesus como o personagem principal da narrativa de Mateus, pela lógica, todos os nomes citados posteriormente deveriam apontar para Ele. Esse tipo de texto era muito comum no contexto judaico; basta ver, por exemplo, a genealogia de Gênesis 5.1-32.

Muito embora algumas versões em português nomeiem este capítulo como “Genealogia de Sete” [3], eu prefiro a descrição “Os descendentes de Adão”. [4] Uma das razões é que o parágrafo começa dizendo que aquele relato é sobre os descendentes de Adão (Gn 5.1). A última razão é porque, quando lemos os últimos versículos do capítulo, encontramos uma certa ênfase na pessoa de Noé: “Que ele nos traga alívio de nossas tarefas e do trabalho doloroso de cultivar esta terra que o Senhor amaldiçoou” (Gn 5.29). Ou seja, embora a genealogia seja dos descendentes de Adão, me parece que Moisés buscou revelar aos seus leitores a identidade de um descendente, a saber: Noé.

Outra evidência que sustenta essa minha hipótese é que o único pai cujo nome de todos os seus filhos foi citado é Noé: “Noé gerou três filhos: Sem, Cam e Jafé” (Gn 5.32). Nos pais que antecederam Noé, Moisés usou a expressão: ‘E teve outros filhos e filhas’ (Gn 5.4b, 7b, 9b, 13b, 16b, 19b, 22b, 26b e 30b). Por fim, mais um bom motivo para acreditar que a intenção de Moisés foi revelar a identidade de Noé pode ser visto no contexto da passagem. Ou seja, do capítulo 6 até o capítulo 9, encontramos os relatos sobre a missão e a aliança que Deus fez com ele. Portanto, espero que esses exemplos tenham ajudado você a captar o propósito de uma genealogia.

Com esse exemplo em mente, voltemos à pergunta da seção: Por que Mateus escreveu sobre a origem de Jesus em uma lista? Primeiro, porque era costume na época usar esse tipo de gênero literário para mostrar ao leitor a identidade de uma pessoa. E, em segundo lugar, o mesmo princípio do primeiro ponto é sustentado pelo contexto geral do Evangelho de Mateus. Afinal, todo o Evangelho foi escrito para falar da pessoa e da missão de Jesus. Com isso, se a genealogia possuía, em termos retóricos, um mecanismo de apresentação, certamente ela serviu para dar ainda mais credibilidade ao personagem principal do texto de Mateus.

Portanto, este é mais um motivo pelo qual a genealogia tem muito a nos ensinar. Quanto mais soubermos sobre os elementos desta lista, maior será nossa capacidade de compreender por que Ele nasceu e por que Mateus se dedicou a escrever sobre Ele.

 

Sobre o que podemos aprender com a genealogia

Sobretudo, a genealogia de Mateus nos ensina sobre a história da redenção por meio de uma matriz diferente (isso será assunto para um próximo artigo). Ou seja, por meio de cada nome, podemos observar como Deus conduziu o Seu povo até a vinda do Seu Filho.

Portanto, que em nossas próximas leituras possamos considerar a ler  Mateus 1.1-17 com mais atenção, assim como lemos o primeiro capítulo do livro de Gênesis, captando como cada palavra se conecta com o todo, que é Jesus. Da mesma forma, que possamos ler a genealogia com o objetivo de conhecer a sua identidade messiânica, pois, os nomes presentes da genealogia não foram colocados de forma aleatória; cada nome ali presente dá credibilidade ao ministério de Jesus que será visto até o último capítulo de Mateus.


Notas

[1]Para saber mais a respeito do conceito de anotação, veja o artigo de NOLLAND, John. Genealogical Annotation in Genesis as Background for the Matthean Genealogy of Jesus. Tyndale House Bulletin, 1996.

[2] Mark Allan Powell. Matthew: An Interpretation Bible Commentary. Louisville, Kentucky. Westminster John Knox Press, 2023.

[3] Veja por exemplo as versões: A21, ARC.

[4] Veja por exemplo as versões: NAA, NVI, NVT, ARA.


Gedimar Junior é professor de Teologia e Filosofia no Seminário Betel Brasileiro. Formado em Teologia e Mestre em Hermenêutica pelo Betel Brasileiro. Mestre em Divindade pelo Seminário Martin Bucer e bacharelando em Filosofia pela Academia Atlântico. Atualmente, é editor-chefe da Revista Reflexão Teológica e Missiológica, organizador do projeto de pesquisa: Pensamento e obra de John Webster.

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