O Abutre – Capetalismo | Silas Chosen

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Em 2013, o diretor Martin Scorcese lançou um filme polêmico, pesado, daqueles que não dá para você assistir com a namorada, a mamãe e o papai. Meio que envolve lançamento de anões por esporte, inserção de cocaína por vias pouco convencionais e um nível de imoralidade tão absurdo que mal dá para acreditar que o filme é baseado em uma história real. E quem de fato leu o livro que deu origem a O Lobo de Wall Street ainda diz que as partes pesadas mesmo ficaram só no livro. Neste filme, encontramos os absurdos destrutivos que um bilionário viciado em dinheiro é capaz de fazer.

Não é um filme que necessariamente fala mal do capitalismo, e sim um filme que alerta sobre os problemas de deixar a ganância ilimitada solta, servindo recompensas àqueles que vampirizam a sociedade. Ali, o capitalismo é uma ferramenta, uma faca: pode cortar um pão ou cortar uma garganta.

Em 2014, o diretor Dan Gilroy, roteirista veterano de Hollywood, escreve e dirige seu primeiro longa, e aqui o negócio muda bastante. Com uma visão muito mais direta sobre a filosofia americana de “vencer a qualquer custo”, de “não medir esforços para estar por cima”, Gilroy quase cria um filme de terror, dentro de uma comédia terrivelmente escura e realista.

Em O Abutre, Jake Gyllenhal interpreta um trambiqueiro chamado Lou Bloom, que parece pertencer a uma religião chamada “corporativismo”. Ele assalta pessoas, age com violência, vive de pequenos crimes. Mas quando começa a falar, você não ouve a parca educação de um criminoso comum, ou ainda um discurso vitimizado sobre como sua vida é injusta. Bloom é um carismático evangelista, e seu evangelho é “crescer”. Quando vai pedir um emprego, dispara ininterruptamente suas vantagens, sua vontade de trabalhar e sua lealdade para com a empresa. Fala sobre alcance de metas, sobre compromisso, sobre plano de carreira, e o faz com a paixão de um professor entusiasmado. E com a gana de um chacal faminto. O cômico é o quanto Bloom acredita na própria enxurrada de besteiras que despeja o filme inteiro. Sabe todos aqueles jargões que ouvimos em palestras motivacionais de executivos de sucesso, e que tentam substituir trabalho e esforço com atalhos e explicações loucas para cases de sucesso? Encontre uma palestra sobre criatividade publicitária para mais referências.

o-abutre-1Cansado de roubar cobre para sobreviver, numa madrugada, vagando pelas ruas de Los Angeles, se depara com um acidente e nota quão rápido aparecem equipes de filmagem para capturar imagens chocantes. Equipes que partem o mais rápido possível para vender a notícia para o jornal matutino mais sanguinolento que conseguirem. E então decide que encontrou seu ramo. Vai viver de vender a desgraça alheia como “informação” e “entretenimento”.

A própria executiva da televisão delimita as regras: a audiência só se importa com “cidadãos de bem” (ênfase nas aspas). Quanto mais ricas, brancas e moradoras de área nobre forem as vítimas, melhor. Quanto mais proximidade, violência e choque, mais dinheiro Bloom recebe. E enquanto não está convencendo seus interlocutores, empregados e colegas com uma fanfarra de dados corporativos e projeções de crescimento, Bloom também maquina para levar as tragédias para além, custe o que custar.

Lou Bloom é um psicopata, e um psicopata com um objetivo. Ele não quer “dinheiro”. Ele não quer “poder”. Ele quer “chegar lá”. A subida é muito mais importante para ele do que o topo. O filme é de uma ironia finíssima ao transformar em herói uma pessoa tão alucinada e execrável como Bloom, e o faz porque, normalmente, é exatamente isso o que todo mundo em volta faz. O self-made man, que chega, conquista, e conta os louros é caricaturado aqui como um maníaco esbugalhado que não dorme e não come até atingir seus objetivos. Só que enquanto a cultura ocidental (e quase que todo o cinema ocidental) vê nisso a maior de todas as nobrezas, Gilroy e Gyllenhal criam com Bloom a imagem do capitalismo amoral que, sem pudor nenhum, é o sonho de muita, muita gente.

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Gyllenhal está espetacular no filme. Seus olhos, sua entrega, seu porte físico faminto e até sua voz estão mudados para criar um ser humano que quer ser um predador, mas não tem o porte para isso. E Gilroy, indicado ao Oscar por Roteiro Original, além de criar uma história redonda e efetiva, consegue filmar uma Los Angeles escura e assombrosa, perfeita para a trama.

“O Abutre” vai fazer você se contorcer. Vai fazer você questionar. E vai fazer você prestar atenção para quem o mundo está batendo palmas. Se o amor ao dinheiro é a origem de todo o mal, o amor ao poder, ao ego e ao perfeccionismo não devem estar muito atrás. Com uma eficiência demoníaca, Bloom obtém sucesso em suas empreitadas, enfrentando obstáculos e sendo criativo para contorná-los. Bloom cresce. Bloom desabrocha.

Em outro grande filme, Os Suspeitos, comenta-se sobre como o maior truque do diabo foi fazer o mundo acreditar que ele não existia. Em O Abutre, percebemos mais do que isso. A nossa percepção do que é “positivo” e “negativo” foi desarticulada para dar lugar a uma cosmovisão – aceita em 9 entre 10 escolas, governos, estabelecimentos, igrejas e lares – que prega a estagnação como o inferno, e a falha como a morte. E uma sociedade assim gera psicopatas loucos por “mais”.

“O Abutre” mostra que aquele político que venderia a mãe por mais um voto, sob muitas perspectivas, já vendeu. E que nós podemos estar em qualquer um dos lados. Podemos ser a vítima ilegítima do “crescimento necessário de um empreendedor nato”, afinal não se faz uma omelete sem esmigalhar ovos. Podemos ser o concorrente que não enforcou todos os limites morais para atingir o sucesso, e por isso é defenestrado pelo sistema. Podemos ser o superior que não distingue a bomba relógio no meio de todo o dinheiro que seu pupilo está trazendo. Ou podemos ser Bloom, e ter um animal escondido por trás de um sorriso ensaiado e um aperto de mão firme.

Cuidado com aquele colega que aplaude a “visão” de Lou Bloom. O filme é uma comédia de humor negro, mas tem muita gente que, lá no fundo, queria que fosse um vídeo motivacional.

Silas Chosen é roteirista, cineasta, publicitário, ilustrador e é viciado em cinema e histórias. Escreve para sites e programas de rádio sobre cinema, cultura pop e cristianismo desde 2004. Faz parte da 4U Films, ministério de cinema independente.

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