O aconselhamento bíblico e o sacerdócio universal dos crentes | Franck Neuwirth

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25/ago/2025
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Introdução

O sacerdócio universal dos crentes é uma doutrina, enfatizada pela Reforma Protestante, que afirma que todos os cristãos são chamados a servir a Deus e ao próximo como sacerdotes. Este sacerdócio não deve ser confundido com o sentido levítico do Antigo Testamento, envolvendo todos os rituais e sacrifícios que eles executavam, mas como participantes da vocação celestial no atual ministério de Cristo, o “Sumo Sacerdote da nossa confissão” (Hb 3.1). A implicação prática desse ensino é que todos os membros da igreja, e não apenas os pastores ou líderes, são responsáveis pelo cuidado mútuo, pelo ensino e pela exortação. Por essa razão, podemos afirmar que o aconselhamento bíblico é uma prática que promove o sacerdócio universal dos crentes.

Infelizmente, o aconselhamento muitas vezes é entendido como uma prática especializada, reservada aos pastores, líderes ou até mesmo profissionais da saúde. No entanto, as Escrituras ensinam que o aconselhamento é um chamado comunitário. O apóstolo Paulo exorta: “Habite, ricamente, em vós a palavra de Cristo; instruí-vos e aconselhai-vos mutuamente em toda a sabedoria” (Cl 3.16). Essa ordem não é dirigida apenas à liderança, mas a toda a igreja.

Portanto, refletir sobre o aconselhamento à luz do sacerdócio universal dos crentes é fundamental para recuperar a centralidade da Palavra e da comunhão cristã na edificação da igreja para a glória de Deus. Vejamos, a seguir, algumas dessas reflexões.

 

1. O fundamento bíblico do sacerdócio universal

O conceito de sacerdócio universal tem sua raiz no Antigo Testamento, quando Israel foi chamado a ser “reino de sacerdotes e nação santa” (Êx 19.6). No Novo Testamento, esse chamado foi ampliado e aplicado a toda a igreja, composta por membros de todas as nações. Pedro declara: “Vós, porém, sois geração eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus, a fim de proclamardes as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz” (1Pe 2.9).

Podemos afirmar com isso que este sacerdócio é uma realidade teológica que define a identidade e a vocação da igreja. Cada crente é chamado a ministrar o conforto de Deus ao próximo (2Co 1.4), não por meio de sacrifícios, mas por meio de Sua Palavra, da oração e do serviço mútuo, na dependência do Espírito Santo. Nesse sentido, o aconselhamento é expressão direta desse chamado sacerdotal.

 

2. O aconselhamento como expressão do sacerdócio universal

Conforme já mencionado em Colossenses 3.16, o aconselhamento bíblico é uma tarefa de todos os crentes em Jesus para a edificação de Seu Corpo. Isso significa que cada cristão é convocado a exercer um ministério de edificação recíproca, ajudando seus irmãos a viverem de acordo com a vontade de Deus (Rm 14.19; 15.2; 1Co14.5, 12, 26).

O sacerdócio universal, portanto, está fundamentado na mutualidade cristã. Vejamos alguns textos que trabalham esta verdade:

  • Romanos 15.14: “E certo estou, meus irmãos, sim, eu mesmo, a vosso respeito, de que estais possuídos de bondade, cheios de todo o conhecimento, aptos para vos admoestardes uns aos outros.”
  • 1Tessalonicenses 5.11: “Consolai-vos, pois, uns aos outros e edificai-vos reciprocamente, como também estais fazendo.”
  • Hebreus 3.13: “Exortai-vos mutuamente cada dia, durante o tempo que se chama Hoje, a fim de que nenhum de vós seja endurecido pelo engano do pecado.”
  • Tiago 5.19-20: “Se algum entre vós se desviar da verdade, e alguém o converter, sabei que aquele que converte o pecador do seu caminho errado salvará da morte a alma dele e cobrirá multidão de pecados.”

Esses textos revelam que o aconselhamento mútuo é um imperativo bíblico, o qual é exercido, por exemplo, mediante admoestação, consolo, edificação, exortação e conversão do mal caminho, enraizado na identidade sacerdotal da igreja.

 

3. A centralidade da Palavra e do Espírito

Um aspecto fundamental do sacerdócio universal é que ele se exerce na dependência da Palavra e do Espírito. Como afirma Jay Adams, “a base do aconselhamento cristão nada mais é, senão as Escrituras do Antigo e Novo Testamentos”[1]. Isso significa que o poder transformador não está no conselheiro, mas na Palavra aplicada pelo Espírito Santo.

Além disso, podemos afirmar que o aconselhamento não busca “apenas” um “alívio psicológico”, mas uma verdadeira transformação espiritual, pois o alvo do aconselhamento não é a simples solução de um problema, mas fazer com o que o aconselhando atinja a conformidade com Cristo, sendo cada vez mais parecido com ele[2]. Esta verdade está no fato de que o Espírito Santo é aquele que nos “guiará a toda a verdade” (Jo 16.13), verdade esta que nos transformará até que alcancemos a “medida da estatura da plenitude de Cristo” (Ef 4.13).

 

4. Implicações eclesiológicas

Se todo crente é chamado a aconselhar, isso implica em algumas responsabilidades para a igreja local:

  • Capacitação: a liderança deve treinar os membros para que exerçam o aconselhamento de forma bíblica (Ef 4.11-12).
  • Comunhão: o entendimento de que o aconselhamento não acontece apenas em sessões formais, mas no dia a dia da vida comunitária (Gl 6.2).
  • Cooperação: o aconselhamento não deve ser visto como uma tarefa exclusiva do pastor, mas uma prática comunitária. Dessa forma, todos cooperam para o crescimento do Corpo de Cristo. (Ef 4.15)

Essas implicações reforçam a ideia de que a igreja é chamada a ser um espaço de cuidado mútuo, onde cada membro contribui para a edificação do corpo (Ef 4.16).

 

Conclusão

O aconselhamento bíblico, à luz do sacerdócio universal dos crentes, é uma expressão prática da identidade da igreja como povo sacerdotal de Deus. Longe de ser uma tarefa exclusiva de líderes ou especialistas, é um chamado comunitário, fundamentado na Palavra, sustentado pelo Espírito e orientado para a glória de Deus.

Como o povo de Israel fora chamado para ser um “reino de sacerdotes” (Êx 19.6), assim a igreja, também como povo de Deus, é chamada a exercer um ministério de cuidado mútuo, aconselhando-se em sabedoria e amor. Recuperar essa visão é essencial para fortalecer a vida da igreja, edificar os crentes e testemunhar ao mundo a suficiência da Palavra de Deus.

Portanto, todo crente é um conselheiro em potencial, chamado para cuidar de corações aflitos com a Palavra divina. Logicamente, existem assuntos que carecem de uma maior experiência e sabedoria para aconselhar. Porém, todos os crentes podem, dentro de sua experiência de fé e conhecimento da Palavra, ser uma bênção na vida uns dos outros, como um ferro que afia o ferro (Pv 27.17). Vivendo dessa forma, a igreja cumpre sua vocação e manifesta, em sua prática comunitária, a realidade do Reino de Deus.

 


Notas

[1] Jay E. Adams, Teologia do aconselhamento cristão, 6. ed. (Eusébio, Peregrino, 2016), p. 13.

[2] Wadislau Martins Gomes, Aconselhamento redentivo (São Paulo: Cultura Cristã, 2004), p. 17. Veja também: Robert Smith, “Disciplina espiritual e o conselheiro bíblico”, in: John F. MacArthur Jr.; Wayne A. Mack, Introdução ao aconselhamento bíblico: um guia básico de princípios e práticas de aconselhamento (São Paulo: Hagnos, 2004), p. 171.

 

Franck Neuwirth é Doutor em Ministério pelo Reformed Theological Seminary, EUA, em parceria com o Centro de Pós-graduação Andrew Jumper. É Escritor da Editora Cristã Evangélica e Coordenador Acadêmico no SETECEB, além de lecionar disciplinas na Área de Novo Testamento, Grego, Metodologia Científica e Aconselhamento. Atualmente, está cursando seu PhD pela Universidade de Viena na Áustria. Franck é casado com Ilma Rabelo Neuwirth e pai da Isabella e do Luiz Filipe.

Autor de "Aconselhamento bíblico para todos", no prelo, por Edições Vida Nova.

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