(Spoilers de O Irlandês)
Nasce o sol, e o sol se põe, e apressa-se e volta ao seu lugar de onde nasceu. O vento vai para o sul, e faz o seu giro para o norte; continuamente vai girando o vento, e volta fazendo os seus circuitos. Todos os rios vão para o mar, e, contudo, o mar não se enche; ao lugar para onde os rios vão, para ali tornam eles a correr. Todas as coisas são trabalhosas; o homem não o pode exprimir; os olhos não se fartam de ver, nem os ouvidos se enchem de ouvir.
O que foi, isso é o que há de ser; e o que se fez, isso se fará; de modo que nada há de novo debaixo do sol. Há alguma coisa de que se possa dizer: Vê, isto é novo? Já foi nos séculos passados, que foram antes de nós. Já não há lembrança das coisas que precederam, e das coisas que hão de ser também delas não haverá lembrança, entre os que hão de vir depois.
Eu, o pregador, fui rei sobre Israel em Jerusalém. E apliquei o meu coração a esquadrinhar, e a informar-me com sabedoria de tudo quanto sucede debaixo do céu; esta enfadonha ocupação deu Deus aos filhos dos homens, para nela os exercitar. Atentei para todas as obras que se fazem debaixo do sol, e eis que tudo era vaidade e aflição de espírito.
Eclesiastes 1.5-16
É interessante pensar que um cineasta tão eclético e icônico como Martin Scorcese nunca escondeu seu interesse pela alma dos seus personagens. E alma no sentido mais espiritual, moral e crítico possível. Afinal, estamos falando do cara que nos deu A Última Tentação de Cristo, Kundun, Silêncio, e não só Gangues de Nova York, Os Bons Companheiros, Cassino, Os Infiltrados, O Irlandês.
Mas é exatamente nestes últimos filmes, os mais “bombásticos” criados pelo mestre novaiorquino, onde ele pode explorar os buracos internos de coisas muito mais próximas a ele – a identidade ítalo-americana, a moralidade ocidental, o catolicismo não como pano de fundo, mas como motor da ética quebrada de seus personagens – e como isso tudo ferve dentro deles criando confusão, contradição, humor e contemplação. E violência.
Em O Irlandês, seu filme “All Stars”, com Pacino, DeNiro, Pesci, Keitel (ah, se Brando estivesse vivo), Scorcese dá um dos passos mais duros de qualquer vida humana ao admitir com todas as letras que está velho. São três horas e meia filmadas com a energia e o brilhantismo pragmático que fez sua carreira, editadas com energia e potência. Mas o assunto da câmera não é outro senão um senhor de idade olhando para o passado.
Frank Sheeran, papel de Robert DeNiro, ex faz-tudo de algumas máfias do nordeste americano, está velho, sozinho, e conta para quem quer ouvir os detalhes mais íntimos de suas aventuras, quando se misturava com os homens feitos da Filadélfia. Ali, nos anos mais complicados da política estadunidense do século XX, ele virou capataz do chefão Russell Bufalino (um Joe Pesci DÁDIVA DE DEUS) e de uma das figuras mais controversas e curiosas da época, o líder sindical Jimmy Hoffa (um Al Pacino PRESENTE DO UNIVERSO). O filme retrata a carreira inteira de Sheeran, desde sua juventude até seus momentos finais, mas o ponto de vista é colocado ali na ponta. Sheeran está olhando pra trás e está contando suas vitórias, orgulhos, derrotas. E está percebendo que é tudo areia ao vento.
Vemos sua amizade tanto com o mentor Bufalino como com o poderoso Jimmy Hoffa. Sua identificação com os dois, e a tragédia de ser o homem com a arma na hora em que Hoffa se torna um problema para a máfia. Como seus prisioneiros na Segunda Guerra, Sheeran passa a vida cavando sua própria cova, mas não é no sentido mais “filmes de máfia” que conhecemos.
Houve um questionamento sobre a quantidade e a qualidade dos papéis femininos não só neste filme mas em outros da filmografia do diretor. E, embora a discussão seja legítima e necessária, e mesmo que, de fato, pouco se ouça a voz de uma mulher em O Irlandês, a única vez que Anna Paquin (fazendo aqui a filha de Sheeran que menos se aproxima do pai) fala alguma coisa é talvez a fala mais importante do filme, e, com certeza, a mais poderosa. Logo após a traumática sequência em que Sheeran e seus associados criam a armadilha para se livrar de um de seus melhores amigos, DeNiro senta em sua poltrona, próximo à família. Sabemos que sua cabeça está a milhão. Sua filha então pergunta “Por quê?”.
E esse “por quê?” é o porquê que Sheeran não consegue responder até seu último suspiro. Assim como não sabe responder porque seu personagem leva o segredo de tantos colegas, amigos e inimigos para o túmulo. O agente de polícia que quer resolver casos velhos lhe informa que ele está guardando segredos de um monte de gente morta. Sheeran mostra a foto de sua filha ao lado de uma das figuras mais emblemáticas e populares do país para sua enfermeira e ela responde com um encabulado “Ah, que bacana. Nunca ouvi falar desse cara”.
Scorcese está numa sessão de terapia onde está destilando o drama da velhice. Sheeran olha para a obra da sua vida e percebe que é um rio que corre para o mar, mas o mar não enche nunca. Plantou balas e colheu abandono. É triste pensar que Scorcese pode analisar uma carreira inimitável sob estas lentes: “Eu cheguei onde ninguém mais chegou, e o que consegui? O que construí? Prestígio, sucesso, prêmios? É tudo vaidade.”
A tecnologia usada para rejuvenescer os atores (que é um pouco esquisita no começo com DeNiro, mas durante o filme inteiro é IMPECÁVEL em Pesci e Pacino) se torna parte da linguagem por conta do que este filme é realmente. Não funcionaria se fossem outros atores interpretando os papéis. O reconhecimento precisa ser imediato e precisamos de uma duração épica de três horas e meia para absorver o peso dessa vida que Sheeran levou. Estamos olhando memórias da maneira menos glamurosa e menos nostálgica possível. Sheeran não tem saudades dos tempos áureos – ele está lamentando-os.
O Irlandês é um filme de fotografia majestosa e com atuações majestosas. Alguns dos melhores atores do cinema americano, gente com carreiras inacreditáveis, entregam aqui alguns de seus melhores trabalhos. O próprio Martin Scorcese mostra que a velhice não desacelerou a vibração que temos quando sua câmera está solta.
Mas O Irlandês é um filme sobre a tragédia da ampulheta. De que a areia cai, e o nosso medo de que depois que ela caia, isso não venha a significar nada.
O rei sábio que, segundo a tradição, escreveu o livro bíblico de Eclesiastes estava contemplando seus sucessos quando viu que aquilo não lhe trazia nada. Seus tesouros tinham o valor de vento, suas conquistas tinham o sabor de cinzas. Um Ozymandias deprimido.
Scorcese não tem por que olhar para si mesmo dessa forma, sendo que deu tanto para o mundo por meio de sua arte. Mas o recente debate, cansativo e inútil, sobre sua visão dos filmes da Marvel, pode ter tocado num ponto importante. Se a percepção de todo mundo sobre o que é Cinema não mais sincroniza com a visão daquele que, dentre os melhores, talvez tenha sido o mais dedicado à sétima arte, o que lhe resta?
Espero, sinceramente, que lhe restem ainda anos e anos de cinema. E que Martin Scorcese encontre algo mais feliz ao olhar para trás, muito mais do que o rei Salomão ou Frank Sheeran. Scorcese, afinal, merece.
Artigo publicado originalmente no site Judão.
Silas Chosen é roteirista, cineasta, publicitário, ilustrador e é viciado em cinema e histórias. Escreve para sites e programas de rádio sobre cinema, cultura pop e cristianismo desde 2004. Faz parte da 4U Films, ministério de cinema independente. |