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23/dez/2016A Igreja se confronta com um desafio de proporções gigantescas. Se os grandes inimigos do cristão são desconhecidos ou passam despercebidos, resta-nos esperar as consequências. O mundo se infiltra na Igreja, tornando-a indistinguível da cultura e dos valores ao redor. O que sobrevive é a cristandade com vestígios dos tempos passados. Os templos servem de museus e pontos turísticos. As bancas de jornais são marcadas pela pornografia e anúncios de boates e filmes para adultos. A mentalidade aberta acomoda novas crenças, tais como o espiritismo e a macumba, dentro de sua estrutura teológica. O mundanismo, a carnalidade e o demônio conquistam a Igreja de forma tão sutil e paulatina que as defesas são ineficazes. Para vencer tais forças do mal, os cristãos precisam conhecer profundamente esses inimigos e criar planos para se manterem incontaminados.
Por outro lado, há guerreiros que se levantam contra essas ameaças de uma forma impensada e antibíblica. Eles lutam de maneira direta contra o mundo em sua manifestação superficial. Apontam os canhões de condenação contra a moda; as ultrapassadas seriam as bíblicas, por serem antigas. As mulheres devem evitar calças compridas e cortes de cabelo. As mangas compridas e saias bem abaixo dos joelhos seguem a norma estabelecida por Deus. Os homens que deixam a barba ou os cabelos crescerem estão fora do padrão bíblico. Assistir a um filme de Hollywood ou jogar futebol no domingo merecem a condenação absoluta. O televisor, mais conhecido como fábrica de pecados, recebe condenação incessante. Houvesse mosteiros evangélicos, os adeptos deste modo de lutar contra o mundo logo os lotariam. Vencer o mundo apenas pela fuga não resolve o problema, uma vez que defesa sem ataque implica em derrota final.
Beber um copo de cerveja ou fumar um cigarro é indesculpável. Tais “pecadores” não nasceram de novo. Tomar banho de mar ou passear pelas praias do Brasil em dias quentes de férias é ser contaminado pelos prazeres do mundo e cair na tentação da carne. Os vícios carnais se limitam ao sexo, bebida e drogas. A estratégia que conduz à vitória está concentrada no vocábulo “não”. “Não fumo, não bebo e não me associo como os que assim procedem.”
Alguns cristãos tacham de demoníaca toda e qualquer manifestação sobrenatural. Uma irrupção de “línguas estranhas”, frequentemente identificada com sons de origem oculta, é condenada. A melhor maneira de evitar as influências do Maligno seria limitar-se a participar, discretamente, apenas de cultos tradicionais que não deem abertura para uma invasão de atuação demoníaca.
À luz da Bíblia, nenhuma dessas linhas de defesa resistirá à “tríplice” investida das trevas. Além do mais, o exército de Deus deve avançar atacando. Encerrar-se atrás das barricadas seria apenas um paliativo e nunca uma estratégia única.
Sem a renovação do “primeiro amor”, a conservação das tradições e costumes manterá a casca, sem revelar a nojenta decomposição atrás dos bastidores. Se deixamos de reconhecer os sinais do mundo dentro da Igreja e a carnalidade envenenando nosso próprio caráter, como pretendemos conquistá-Ias? Se as ciladas de Satanás penetram facilmente nos corações e afetam as decisões dos membros do Corpo de Cristo, assim como um gato que prende o ratinho, como escaparemos no dia mau que vem chegando (Ef 6.13)?
A igreja e os seus congregados serão “mais do que vencedores” se deixarem que o Espírito Santo os encha. O Espírito foi concedido para transformar discípulos medrosos em testemunhas invencíveis (At 1.8). Cheios dEle, nenhum inimigo foi capaz de vencê-Ias (At 2-4). O Paracletos divino não se engana nem deixa de reconhecer as células cancerosas do mundanismo que infectam os órgãos vitais da igreja. O Espírito não luta apenas contra a carne (GI 5.17), mas identifica as marcas da natureza adâmica, para que possamos mortificá-Ia. O antagonista do diabo é o Espírito de Deus, porque Ele é maior (1Jo 4.4) e não suscetível ao engano.
Ser enchido pelo Espírito não é tanto uma questão de esforço, mas de entrega. Ele convence do pecado (Jo 16.8) e ilumina nossas inclinações, mas ainda precisa dar-nos a coragem para obedecer. Disse Hudson Taylor: “Deus dá o Espírito Santo não para os que O desejam, nem para os que oram e O pedem, nem para os que querem estar sempre cheios, mas aos que Lhe obedecem”.
C. S. Lewis nos adverte contra dois extremos: uma preocupação exagerada com o demônio e suas forças e uma ignorância total. Evitemos ignorá-Ia na descrença que interpreta sua influência maléfica como um acaso natural, ou explicar tudo que é desagradável ou ruim como consequência direta da sua atividade. O problema da hipersensibilidade de muitos cristãos da ala carismática mais radical, que os leva a identificar demônios agindo diretamente através da maioria ou mesmo em todos os problemas e contratempos, não favorece uma luta eficaz contra esse inimigo. Muitos crentes são obcecados pelos desafios da “guerra espiritual”, “ataque satânico”, “opressão demoníaca”, e isto os leva a se preocupar muito mais com o diabo do que com o Senhor. A consequência de tais exageros é dar mais reconhecimento a Satanás do que glória a Deus.
Ao invés de estarem firmados “na força do seu poder” (Ef 6.10), tais crentes ficam enredados por temores e ansiedades diante dos ataques que possam surpreendê-los a qualquer momento.[1]
Mas, uma vez discernida a presença e atuação real do inimigo, devemos lutar (Ef 6.12) com a disposição e disciplina de um esportista. O lutador não tem, como todos os praticantes dos outros esportes, oportunidade para recuperar o fôlego. Sempre alerta, sem nunca baixar a guarda, só assim o lutador poderá evitar o golpe fatal. Ninguém poderá esperar que Satanás tire folga ou que se afaste num feriado.[2]
Igualmente tenaz é o Espírito de Deus: “Se vivemos no Espírito, andemos também no Espírito” (Gl 5.25). Ele mantém nossa vida; também nos pode manter em pé, firmes contra o ataque que nos ameaça continuamente.
O prof. Richard Lovelace nos adverte sobre o elemento unificador no mal global. O mundo, no sentido bíblico negativo, identifica-se com o sistema total da corporação carnal que age sob o controle de Satanás. Nele há incentivos e restrições, galardões e perdas que produzem padrões característicos de comportamento, estruturas anticristãs, métodos, alvos e ideologias. Os símbolos bíblicos da prostituta e da Babilônia (em Apocalipse) e a Cidade do Homem, de Agostinho, incorporam muitas formas e atividades do mal, difíceis de discernir e ainda mais complexas para serem combatidas.[3] Quem se limita a combater o pecado de maneira individualista sente-se como um guarda num carro policial, empenhado em patrulhar sozinho uma megalópole como São Paulo ou Rio de Janeiro.
Sistemas econômicos, sociais e religiosos, caracterizados pela desumanidade, confirmam o ensino bíblico de que o mundo faz parte do espólio do diabo, que luta fortemente para manter cativo o que ele conquistou na queda (Mt 12.29). Sistemas econômicos, políticos e judiciários, relações raciais e internacionais revelam a infiltração do “joio” semeado pelo inimigo de Deus no mundo (cf Mt 13.28). No meio da criação, cresce indiscriminadamente tudo o que se opõe à intenção divina.
Ainda que todos nós estejamos envolvidos no pecado corporativo do mundo e, sem querer, sejamos participantes das investidas do “senhor” deste século contra Deus, como cristãos, temos a responsabilidade de confessar nossa culpa.[4] Foi assim que Neemias (9.16-37) e Daniel (9.3-19) lutaram, reconhecendo a participação dos justos no sistema apodrecido da nação. É somente pela morte que podemos nos livrar da malha humana da qual fazemos parte. Como os soldados romanos que crucificaram o Senhor da Glória, mas não sabiam o que faziam, contribuímos, queiramos ou não, para os propósitos do inimigo.
Mesmo assim, o clarim de Deus nos convida: “Retirai-vos dela (a Babilônia que corrompe as nações), povo meu, para não serdes cúmplices em seus pecados… ” (Ap 18.4). A advertência bíblica contra qualquer jugo desigual com os incrédulos, para evitar a contaminação do povo de Deus (2 Co 6.14-18; Lv 26.12; Jr 32.38; Ez 37.27; Is 52.11), deve nos alertar contra uma despreocupação com o mundanismo do qual parece impossível escapar.
A confissão e a separação das trevas devem ser acompanhadas de um ministério profético. Pela denúncia da injustiça e pelo modelo amoroso da igreja, que obedece à verdade e demonstra o amor fraternal, agapê, de coração ardente (1Pe 1.22), será possível levantar uma barricada contra as forças aliadas do mal.
Mais do que nunca, os cristãos precisam acordar, levantando-se dentre os mortos para buscar a iluminação de Cristo (Ef 5.14). No crepúsculo vespertino da história, urge que a igreja nacional e internacional reconheça os dias desafiantes que enfrentamos. Quebremos os laços invisíveis do mundo que nos algema. Levantemos um clamor até o céu com petições incessantes ao Senhor, para que Ele abra os olhos do coração do Seu povo (Ef 1.18), fazendo-o distinguir as ciladas do diabo e renovar uma luta eficaz contra a carne. Somente uma mobilização intensa e geral nos garantirá a vitória. Precisamos reconhecer o perigo da mente secularizada, a mente que sufoca e abafa qualquer concessão aos princípios cristãos.
O avanço do secularismo mundano e o rápido esvanecimento dos traços cristãos na sociedade devem forçar a Igreja a ser mais conscientemente cristã. É urgente aumentar o compromisso cristão no nível social e intelectual. Acima de tudo, precisamos articular e propagar o evangelho como a única alternativa para estes dias que se assemelham àqueles, “anteriores ao dilúvio” (Mt 24.38). Se não cremos que vale a pena resistir ao diabo, desvendar as falsas atrações do mundo e mortificar a carne, só nos resta aguardar o suicídio espiritual do “povo” de Deus.
É hora de encerrar estas linhas. Multiplicar palavras não aumenta necessariamente a força do compromisso de guerrear contra os inimigos de Deus. Mas a maior preocupação persiste: até onde nós, evangélicos, estamos engajados na luta? Que incentivo divino ou humano seria capaz de mobilizar os santos brasileiros para que gastem cinco minutos a mais em oração, batalhando contra o mundo, mortificando a carne e resistindo ao diabo? Que motivação de qualquer procedência nos convenceria de que “perseguir a santificação” é imprescindível, mil vezes mais importante do que levantar um templo novo, amplo e belo? Estruturas eclesiásticas, domínio político, poderio econômico, prédios faraônicos, organização mundial, tudo foi conquistado pela Igreja há mil anos. Mas todo esse sucesso eclesiástico não protegeu o povo de Deus das incursões do secularismo (Tt 2.12). Através dos séculos, avanços obtidos no âmbito humano foram compensados por perdas espirituais. A história se repete, mas há escapatória: basta que a igreja identifique seus adversários e confiantemente coloque toda a armadura de Deus. O Senhor tem sido e será nosso refúgio de geração em geração (SI 90.1).
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[1] Norio Yamakami, pastor da Igreja Holiness do Brasil, é a fonte principal deste parágrafo.
[2] Dean Sherman, Batalha Espiritual (Betânia), 1990, p. 3.
[3] Dynamics of Spiritual Life, pp. 93s.
[4] Cf. R. Lovelace, ibid., p. 94.
Trecho extraído da obra “O mundo, a carne e o diabo“, de Russell P. Shedd, publicado por Vida Nova: São Paulo, 1995, pp. 121-126. Publicado com permissão.
Russell P. Shedd (1929-2016), Ph.D., foi fundador de Edições Vida Nova, conferencista internacional e pastor. Intensamente preocupado com a educação teológica e a formação de líderes para a igreja brasileira e dos países de língua portuguesa, foi durante mais de 40 anos professor de Novo Testamento nas melhores escolas teológicas de São Paulo e escreveu inúmeras obras publicadas por Edições Vida Nova e pela Shedd Publicações. |
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O Dr. Shedd está convencido de que, sem uma reflexão bíblica mais profunda, esses inimigos agirão ainda mais livremente no meio do campo do senhor. Afinal de contas, mesmo sendo proibidos de arrancar o joio semeado pelo inimigo (Mt. 23.29), isso não quer dizer que devamos ficar preocupados com o trigo que se destrói. O propósito de O Mundo, a Carne e o Diabo é atender à sua necessidade básica de alertar os cristãos e apontar algumas diretrizes para a vitória na batalha espiritual. Publicado por Edições Vida Nova. |
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1 Comments
Grande escritor e palestrante Russell Shedd! Esse livro, “O mundo, a carne e o diabo”, está na minha biblioteca particular.
Pareceu-me confusa uma pequena parte do comentário acima sobre o livro conforme transcrito abaixo:
“Afinal de contas, mesmo sendo proibidos de arrancar o joio semeado pelo inimigo (Mt. 23.29), isso não quer dizer que devamos ficar preocupados com o trigo que se destrói.”