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20/jul/2016Quando nos retraímos – Evangelismo e os limites do Pluralismo (Parte 2) | David T. Koyzis
27/jul/2016Num inverno há quarenta anos, durante meus estudos de graduação, descobri o grande estadista e pensador Abraham Kuyper (1837-1920), cujo pensamento teria um grande impacto no subsequente curso da minha vida. Embora eu tenha sido criado como cristão e tenha entendido que Jesus morreu na cruz para me salvar do pecado e da morte, eu nunca havia ouvido da mesma forma que a redenção em Cristo é cósmica em seu escopo e se estende para toda a criação. Embora esse insight não seja estranho para a tradição cristã, a forma como Kuyper expressou isso me impressionou de forma especial: “Não há um único centímetro quadrado, em todos os domínios de nossa existência, sobre os quais Cristo, que é soberano sobre tudo, não clame: ‘É meu!’.” Kuyper apresentou suas famosas Preleções sobre o Calvinismo na Universidade de Princeton em 1898, e ele atuou como Primeiro Ministro da Holanda entre 1901 e 1905. Ele exemplificou em sua própria vida o esforço de viver debaixo do senhorio de Cristo em todas as áreas da atividade humana, incluindo a política.
É claro que política no mundo real é uma maneira de tentar conciliar a diversidade de forma pacífica, como o cientista político britânico, Sir Bernard Crick, corretamente expressou. Ela requer a tolerância de “diferentes verdades”, ou, mais precisamente, de diferentes reivindicações sobre a verdade. Como, então, pode-se esperar que os cristãos – para quem as Escrituras frequentemente trazem a frase “Assim diz o SENHOR” –, vivam com descrentes que negam a soberania de Deus, para início de conversa? Como podemos viver um compromisso amplo com o Reino de Deus em uma sociedade e política tão diversificadas? Kuyper e seus seguidores não seriam impelidos para o estabelecimento de uma forma de teocracia? Afinal de contas, existem comunidades cristãs que adorariam emendar a Constituição para que ela reconheça não apenas uma divindade genérica, mas o Deus trino em toda sua glória e majestade.
Mas essa não era a abordagem de Kuyper. Durante sua carreira política, Kuyper trabalhou, não para transformar a Holanda em uma comunidade divina, mas, de modo mais modesto, para garantir um lugar na esfera pública a seus apoiadores cristãos reformados (Gereformeerd) diante das ideologias seculares disseminadas após a Revolução Francesa. Ele fez isso principalmente por meio de seu Partido Antirrevolucionário (ARP), que veio a governar a Holanda diversas vezes em coalizão com a Christian Historical Union (CHU) e o Roman Catholic Sate Party (RKSP), antecipando em quase um século os esforços ecumênicos conhecidos como Evangelicals and Catholics Together, encabeçado pelo padre John Neuhaus e Chuck Colson.
Na América do Norte, Colson e sua grande colaboradora Nancy Pearcey provavelmente fizeram mais que qualquer outro para divulgar o legado de Kuyper entre os cristãos evangélicos; e a biografia magistral de Kuyper, escrita por James D. Bratt, promete disseminar ainda mais o conhecimento sobre esse grande líder cristão. Na verdade, isso não acontece num momento tão cedo. Em muitos aspectos, nossa política norte-americana está gradativamente tomando o caráter dividido dos países europeus no século 19 e início do século 20, embora (ainda) sem o mesmo nível de instabilidade política. De 1789 até 1958 a França passou por uma sucessão de regimes em uma sociedade dividida entre os partidários e os oponentes da Revolução. A lei de 1905 ordenando um secularismo oficial, ou laïcité, ratificou a vitória dos republicanos sobre seus oponentes, consolidando uma cosmovisão na qual a fé é tornada inócua e restrita à esfera privada de maneira segura.
Na Holanda, em contraste, Kuyper e seus associados tentaram algo diferente. Sim, as mesmas tensões políticas existentes na França estavam presentes na Holanda, mas elas foram superadas com sucesso meio século atrás por, entre outras coisas, adotar uma representação proporcional (RP) e instituindo políticas educacionais igualitárias. A RP garantiu que partidos políticos seriam representados de acordo com seu atual apoio popular, enquanto que a reformas educacionais garantiram recursos para todas as escolas, mesmo aquelas com explícito aspecto confessional.
Aqui na América do Norte, algumas organizações seguiram o legado de Kuyper, inspirados pelo desejo de ser agentes do Reino de Deus na vida pública, incluindo o Center for Public Justice (CPJ), o Christian Labour Association of Canada e o grupo de estudos canadense Cardus. Seus esforços foram algumas vezes rotulados de pluralismo de princípio, que, de acordo com o site do CPJ, significa:
“a necessidade de reconhecimento e proteção constitucional da vida religiosa na sociedade. Pluralismo de princípio significa que o governo deveria dar tratamento igual a diferentes comunidades de fé. O governo não deveria ter a autoridade de decidir o que constitui a verdadeira religião. Portanto, o governo não deveria tentar estabelecer uma religião ou forçar o secularismo na vida pública. A maioria das formas religiosas de vida busca expressão além das paredes de uma igreja. A maioria guia seus fiéis na forma como devem viver na sociedade e não somente em sua adoração e profissão de fé. Justiça, portanto, requer tratamento igualitário da religião tanto na esfera pública como na privada.”
É claro, uma tolerância com diferentes visões de mundo pode levar alguém a concluir que todas essas diferentes perspectivas se encontram igualmente niveladas na esfera pública, cada qual contribuindo e cooperando pacificamente com suas respectivas qualidades. Isso pode ser o ideal para alguns, mas ninguém pode contar com as coisas funcionando desse jeito, principalmente pela presença de várias ideologias políticas que, como eu descrevi em Visões e Ilusões Políticas, tendem a tomar um aspecto idólatra e, como todos os ídolos, são incapazes de dividir o poder com outros. Apesar dos esforços legítimos de vários crentes de reservar um espaço na esfera pública, os seguidores das ideologias secularizadoras têm historicamente encontrado meios de frustrar tais esforços, enquanto, paradoxalmente, acusam os crentes de tentar um golpe teocrático.
Para começar, a mídia popular sempre retrata os aderentes de religiões reveladas tradicionais como “pessoas de fé”, um termo que pode inicialmente soar respeitoso, mas, num olhar mais de perto, revela um tom condescendente. Pessoas de fé são aquelas almas ignorantes que persistem em ordenar suas vidas ao redor dos preceitos arbitrários de um ser divino inverificável. É possível conviver com essas pessoas, o comentarista afirma, desde que elas mantenham suas crenças cuidadosamente confinadas em suas próprias comunidades e deixem o espaço público para aqueles que têm uma inclinação mais moderna e científica. Ou, seguindo a proposta de Rousseau, eles devem moderar suas reinvindicações de que Deus se revelou diretamente a eles de uma maneira específica e admitir que todos estão experimentando suas próprias maneiras de buscar uma divindade genérica que faz o menor número de exigências possível. Debaixo dessa cosmovisão, a liberdade religiosa garantida pela Primeira Emenda da Constituição Americana é rebaixada para uma liberdade de culto mais maleável, com as elites secularizadas implicitamente reivindicando presidir imparcialmente as comunidades de fé rivais.
Ainda sim, como o filósofo Roy Clouser corretamente observou, todos possuem a crença em algum tipo de divindade. Ou adoramos o Deus verdadeiro ou adoramos algo dentro da criação que nós colocamos no lugar de Deus. O Deus-substituto pode ser a razão, o método científico, sucesso na carreira, saúde, prestígio acadêmico ou estima social. De fato, toda pessoa é uma pessoa de fé, incluindo aqueles que negam a realidade de Deus ou reivindicam que, se há um Deus, nós não podemos conhecê-lo ou a sua vontade. Não há, em suma, nenhuma neutralidade religiosa.
Hoje os ídolos mais prevalentes que competem pelo controle da esfera pública são os deuses gêmeos dos direitos humanos e da autonomia sexual. Tomados em conjunto, eles se somam à extremamente contestável proposição de que indivíduos deveriam poder viver suas vidas como quisessem, livres de regras sociais e padrões externos que possam restringi-los. Esses padrões são sempre apresentados como opressivos e, como tal, violações dos direitos humanos. Desse modo, qualquer comunidade eclesial que discipline seus membros por viverem de modo contrário ao caminho bíblico é agora vista como uma ameaça para a liberdade de seus membros. Michael Ignatieff expressou isso muito bem: “Direitos humanos são a linguagem por meio da qual indivíduos criaram uma defesa de sua autonomia contra a opressão da religião, do estado, da família e do grupo” (ênfase minha). Se nossos líderes políticos vierem a aceitar a estreita visão individualista de Ignatieff, então o entendimento Norte Americano tradicional de liberdade religiosa não poderá coexistir facilmente com direitos humanos concebidos de maneira tão ampla.
Isso nos traz de volta para o pluralismo de princípio de Kuyper, que só poderá funcionar se os participantes da esfera pública fizerem um esforço de boa-fé de se absterem de fazer reivindicações monopolísticas da totalidade. Os seguidores desses deuses gêmeos serão capazes e dispostos a realizarem esse esforço? Desenvolvimentos recentes não são particularmente encorajadores, uma vez que as alegações de autonomia do indivíduo são geralmente consideradas a cartada final sobre os objetores de consciência de cristãos, judeus e outros que possam se mostrar reticentes a, por exemplo, financiar abortos ou liberar licenças de casamentos para casais do mesmo sexo. Não devemos nos iludir pensando que a retórica do pluralismo irá por si mesma levar à coexistência pacífica, mas faremos bem em seguir o exemplo de Kuyper e cooperar naquilo que podemos com nossos oponentes enquanto, ao mesmo tempo, nos preparamos para tomar posições impopulares quando e onde precisarmos.
Traduzido por Bruno Mori Porreca e revisado por Maria Gabriela Pileggi.
Texto original: What would Kuyper do?: Idolatry and the limits of pluralism. First Things.
Leia aqui a segunda parte do artigo.
David T. Koyzis é doutor em Filosofia pela Universidade de Notre Dame e atualmente é professor de Ciência Política na Redeemer University College, em Ancaster, Ontário, onde leciona desde 1987. Em 2004, sua obra Visões e ilusões políticas, publicada por Edições Vida Nova, foi premiada em primeiro lugar na categoria não ficção/cultura pela The Word Guild Canadian Writing Awards. |
Neste estudo abrangente e atualizado, o cientista político David Koyzis examina as principais ideologias políticas de nosso tempo, a saber, o liberalismo, o conservadorismo, o nacionalismo, o democratismo e o socialismo. Koyzis faz tanto uma análise filosófica quanto uma crítica honesta a cada ideologia, revelando os problemas de cosmovisão inerentes a cada uma delas, destacando seus pontos fortes e fracos. Além disso, ele oferece modelos alternativos que são fruto do engajamento histórico de cristãos na arena pública ao longo dos tempos. Escrito sob uma perspectiva bastante ampla e analítica, Visões e ilusões políticas reafirma, em sua segunda edição ampliada e atualizada, o compromisso de ser um guia útil e sensível, sobretudo para aqueles que atuam na esfera pública, analistas culturais, eruditos, cientistas políticos, enfim, todos os que se interessam pelo pensamento político. Publicado por Vida Nova. |