No dia 23 de outubro de 2011, foi noticiado que três mil zumbis haviam invadido as ruas de Brighton, no Reino Unido. Essas notícias não eram estritamente falsas. A invasão foi real; os zumbis, porém, não eram. Eles eram, na verdade, três mil fãs de zumbis, participando de sua última febre, o ZomMob: pessoas de todas as idades e contextos, vestidas de zumbis, reunindo-se para passar pelas maiores cidades. Um artigo observou, “É a prova mais recente… de que os mortos-vivos realmente estão marchando — pelo menos culturalmente”. Nas últimas cinco décadas, houve um grande crescimento da menção de zumbis na literatura. O que atrai esse fenômeno cultural?
Neste estudo, restringiremos nossa análise ao zumbi do produtor de filmes George A. Romero — o “RomZom” — retratado nos filmes A noite dos mortos-vivos (1986), O despertar dos mortos (1978) e Dia dos mortos (1985). Romero é considerado o pai dos filmes modernos sobre zumbis; Twohy afirma que ele “assegurou-se de que os zumbis nunca mais fossem vistos da mesma forma”.[1]
O que diz?
Apesar da ideia de os mortos comerem os vivos não ser completamente nova,[2] A noite dos mortos-vivos (1986) foi o primeiro filme a imaginar esse conceito na forma de zumbis. “Noite… introduziu traços de canibalismo na representação dos ‘mortos-vivos’”,[3] “criando uma espécie de zumbi, significantemente mais aterrorizadora do que as representações anteriores”.[4]
RomZom é um “cadáver lento, reanimado e ávido por carne humana, geralmente ocorrendo em multidões”,[5] um “monstro pestilento macabro”,[6] desprovido de intelecto e emoção.[7] Ele é retratado como “ameaçador e infectante para toda a raça humana”,[8] transformando vítimas em zumbis, geralmente em um contexto apocalíptico. De fato, “mais do qualquer outro monstro, os zumbis […] sinalizam o fim do mundo como o conhecemos”.[9]
Além disso, de acordo com Paffenroth, RomZom foi projetado para diminuir “as fronteiras entre […] humanos e sub-humanos”. Wilson, ao citar A noite dos mortos-vivos, diz o seguinte:
“O raro filme de terror […] anuvia as fronteiras […] entre a escuridão e a luz”, para que o “protagonista encontre o verdadeiro monstro dentro deles.[10] Aqui encontramos a intenção de Romero: ele está “perguntando o que é um zumbi inteligente, além de […] um ser humano [escravizado] a seus apetites? O que somos, além de […] zumbis ligeiramente mais inteligentes, uma tribo de canibais desequilibrados e autodestruidores colocando as presas uns nos outros?”.[11]
Quem o escreveu?
Romero é um homem divertido. Durante a propaganda de um de seus filmes em que ele faz graça de si mesmo, diz: “Espero que a gente se divirta assistindo”.[12] Mas ele também é um homem desconfiado, acredita que os nossos vizinhos são nossos piores inimigos e que as três redes de televisão de sua época eram “três grandes mentiras […] agora existem 400 mil blogueiros […] existem 400 mil mentiras em potencial”.[13] Ele admite que usou seus filmes para “expressar suas visões políticas”. Confessa de forma pessimista que “os humanos [em seus filmes] são os [personagens] dos quais menos gosto […] é neles que o problema realmente está. Os zumbis são apenas mosquitos”.[14] Mecanismos de roteiro, tais como reservar os piores comportamentos para os personagens humanos, retratam a desconfiança de Romero em relação à humanidade, e novamente levantam à pergunta “O que somos?”.[15]
Romero, portanto, pretende que os zumbis exponham o estado da humanidade, especialmente males como o consumismo, o individualismo e o racionalismo. Paffenroth observa que “qualquer pessoa que assiste a filmes de zumbi deve estar preparada para uma forte acusação à América moderna”.[16] O zumbi é, então, uma metáfora ou espelho da verdadeira humanidade.
Quem o lê?
Apesar do protesto inicial contra Noite (1968), o filme mostrou-se extremamente popular em muitas culturas e gerações. O seguinte trecho da Varsity encapsula a resposta inicial.
Até que a Suprema Corte estabeleça uma diretriz nítida para a pornografia da violência, Noite […] servirá como uma boa definição de limite exterior, como exemplo […] Este filme de terror […] coloca sérias calúnias sobre a integridade e a responsabilidade social de seus […] produtores […] e sobre a saúde moral de cinéfilos que alegremente optam por essa completa orgia de sadismo.[17]
Entretanto, os “críticos começaram a reconhecer que o filme não somente chocou ou enojou […] ele perturbou e deixou perplexos os espectadores, e exigiu mais deles em um nível mais profundo, exigindo mais atenção”.[18] Quando Despertar dos mortos foi lançado (1978), os críticos estavam sujeitando os filmes de Romero a uma “análise detalhada e acadêmica”.[19] As mensagens de Romero pareceram alcançar os telespectadores também. Harper descreve que quando visitou um shopping, depois de assistir Despertar, um fã exclamou, “Olha! É exatamente como Despertar! Todos esses consumidores parecem zumbis andando pelo shopping!”.[20] O crescimento dos filmes de zumbi nas últimas quatro décadas demonstra o amplo apelo de RomZom.[21]
Devido à semelhança de RomZom com os seres humanos, ele se tornou tema de investigação e de debate entre filósofos. Fascinou diversos acadêmicos, como o dr. Leaning, da Universidade de Winchester, no Reino Unido, que agora oferece um módulo sobre os zumbis.[22] Comentaristas de filmes especulam sobre as múltiplas metáforas por trás de RomZom. Neste artigo, consideraremos quatro metáforas oferecidas por Michael Johnson, de ReelSchool: dissociações, verdadeira humanidade, morte e contágio.[23]
Os temas de dissociação, contágio e morte estão relacionados. Johnson explica que os zumbis ressoam com nossos desejos de permanecermos individuais quando enfrentamos pressão social para nos conformarmos, e de nos “dissociarmos” ou de nos separarmos da multidão; o bando implacável de zumbis é uma figura dessas forças que buscam nos contaminar com ideias. Dennett concorda que os zumbis representam os proponentes de qualquer cosmovisão. Por exemplo, os cristãos podem ser vistos como zumbis, apresentando uma ameaça; o evangelho, então, se torna contagioso.[24] Muitas vezes isso está ligado ao medo da morte e do contágio viral: o zumbi é “uma representação literal do nosso futuro, forçando você a enfrentar seu medo […] literalmente vindo lentamente em sua direção, de forma implacável, inflexível, incontrolável”. Novamente, a mensagem de Romero passa para o primeiro plano; Johnson diz “um dos aspectos mais terríveis [do gênero zumbi] […] não tem nenhuma relação com o monstro do lado de fora, tentando derrubar sua porta; está totalmente relacionado com o monstro interior. Em um mundo pós-apocalíptico […] as pessoas estão livres para ser o que elas realmente são”.[25]
Como Johnson sugere, o apelo dos zumbis também reflete uma fantasia humana de viver em um apocalipse. Cole, por exemplo, sugere que o filme zumbi “satisfaz as nossas fantasias pós-apocalípticas”.[26] O ZomMob mencionado na introdução, torna acessível a oportunidade de viver, de alguma forma, a fantasia apocalíptica, quando grupos reencenam ataques e conversões. Videogames nos protagonizam em nosso próprio apocalipse zumbi.[27] Organizadores de eventos, Battlefield Live, oferecem experiências apocalípticas mais realísticas “por demanda popular”.[28] Um artigo no cracked.com sugere que a razão pela qual essa fantasia “nos atrai, é que não há mais ninguém para nos julgar […] o apocalipse é como ser liberto de uma prisão”.[29] Outro artigo oferece cinco razões; provavelmente todos vêm de um desejo por autonomia”.[30]
Depois de descrever o texto cultural e seu mundo, agora somos capazes de sujeitá-lo a nossa análise teológica.
Jonathan Edwards diz que por meio da revelação geral (ao olharmos para o mundo ao nosso redor), podemos concluir que “… toda a humanidade está, por natureza, em um estado de ruína total”.[31] Romero chegou à mesma conclusão. De certa forma, os filmes de Romero ampliam a revelação de Deus sobre o verdadeiro estado da humanidade. Nesse sentido, o zumbi é o produto da graça comum e da revelação geral. O apóstolo Paulo usa uma imagem que podemos dizer que se assemelha a zumbis, para descrever o comportamento da humanidade caída: “… vocês se mordem e devoram uns aos outros” (Gl 5.15). De modo semelhante, Romero vê a humanidade “mordendo e devorando uns aos outros”, retrata isso na forma de zumbis, e diz, de fato, “Eles são nós”. Ao estabelecer uma causa para a maldade dos zumbis, e contrastando os zumbis com personagens humanos, ele pergunta ao espectador, “Que doença causa a sua maldade?”. Seus filmes reconhecem e proclamam que não devemos ser dessa forma, o que está alinhado com a intenção de Deus. O retrato de Romero sobre a inclinação do homem para o mal, é um sinal da graça restrita e revelação geral de Deus.
Ao vermos incorporada e ampliada a maldade da humanidade dessa forma, percebemos que os zumbis, em contexto, funcionam de modo semelhante à lei de Deus. Paulo escreve que ele “não saberia o que é pecado, a não ser por meio da lei” (Rm 7.7). Lutero compara a lei a um espelho “onde você encontrará o que falta em você e o que deve buscar”.[32] O zumbi, diferentemente do evangelho, é como a lei — um espelho que expõe a necessidade de um salvador, mas que não o oferece. Em contraste, Edwards escreve que “Cristo se relaciona diretamente com essa ruína, como o remédio para a doença”.[33] O zumbi não vai tão longe, nem oferece uma alternativa; portanto, não oferece esperança.
Brockway sugere que a autonomia está na raiz da fantasia apocalíptica. Esse desejo por controle está no coração da idolatria, e se origina no jardim do Éden, na decisão de Adão e Eva de comerem o fruto. Isso significa que nosso fascínio pelo apocalipse zumbi tanto decorre de nossos anseios por viver nosso profundo ídolo por autonomia, quanto os impulsiona.
No entanto, talvez também possa haver algo a mais em curso aqui. Davidson sugere que a fantasia de zumbi revela outro desejo: ser liberto da prisão da ocupação da vida e do trabalho. Isso ecoa o clamor de Lameque, de que seu filho Noé, “nos aliviará do nosso trabalho e do sofrimento de nossas mãos” (Gn 5.29). Lameque anseia pelo fim do trabalho doloroso — um desejo pela libertação da maldição. Talvez nos encontremos cativados pelo apocalipse zumbi porque ele toca nesse anseio, despertando a esperança de um fim. O espírito humano anseia por um salvador para nos libertar da maldição, dando-nos descanso. No entanto, em última análise, essa fantasia se torna idolatria, ao estabelecer o apocalipse como salvação.
Descobrimos que RomZom tem camadas de significado que vão além do que Romero pretendia e de modo mais profundo. Ele revela nossa depravação; massageia nossos anseios interiores ou idólatras, e fornece um meio de externá-los ou de simplificar nossos temores. Isso é significativo, porque os espectadores persuadidos pelo RomZom não precisariam ser convencidos a reconhecer a inclinação pecaminosa e aberração da humanidade; a esse respeito, o coração deles pode provar ser um bom solo para a semente do evangelho. Além disso, RomZom mostra que eles desejam — vida, descanso e libertação da maldição — e se sentem sem esperança e presos. Por meio do zumbi, chegamos à necessidade de um salvador, e assim, por meio do zumbi, chegamos a Cristo: “Deus, que é rico em misericórdia, trouxe-nos vida com Cristo mesmo estando nós ainda mortos em transgressões” (Ef 2.4,5).
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[1] Margaret Twohy, “From voodoo to viruses: the evolution of the zombie in twentieth century popular culture”, tese de mestrado (Trinity College Dublin, 2008), p. 13.
[2] Os mortos retornando para comer está há muito tempo na consciência do homem. O épico de Gilgamesh contém estas palavras: “Ressuscitarei os mortos, e eles comerão os vivos. Farei com que os mortos ultrapassem os vivos em número!”. Citações em Stephanie Dalley, Myths from Mesopotamia: creation, the flood, Gilgamesh, and others, ed. rev. (Oxford University Press, 2009), p. 80.
[3] Tony Williams, The cinema of George A. Romero: knight of the living dead (London: Wallflower Press, 2003), p. 12.
[4] Twohy, p. 15.
[6] James B. Twitchell, dreadful pleasures: an anatomy of modern horror (Oxford: Oxford University Press, 1985), p. 267.
[7] Kim Paffenroth, Gospel of the living dead: George Romero’s visions of hell on earth (Waco: Baylor University Press, 2006), p. 12.
[8] “Zombie (fictional)”, Wikipedia, the free encyclopaedia, diponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Zombie.
[9] Paffenroth, p. 8.
[10] Eric G. Wilson, Secret cinema: gnostic vision in film (Bloomsbury Academic, 2006), a partir da p. 121.
[12] “Survival of the dead George A. Romero Introduction”, 2010 [citada em 13 de novembro de 2011], disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=9sGx0gTVkqM&feature=youtube_gdata_player.
[13] “Diary of the dead—George A. Romero interview”, 2007 [citada em 13 novembro de 2011], disponível em: http://www.youtube.com/watch?-v=ljOVL8lCV_Q&feature=youtube_gdata_player.
[14] “10 questions for George Romero” [citada em 13 de novembro de 2011], disponível em: http://www.time.com/time/magazine/article/0,9171,1992390,00.html.
[16] Paffenroth, p. 21.
[17] Paffenroth, p. 27. Ironicamente, mas por outros motivos, não era essa a intenção de Romero — lançar calúnia sobre a saúde moral de produtores de filmes?
[18] Paffenroth, p. 28.
[20] Harper, “Zombies, malls, and the consumerism debate: George Romero’s Dawn of the dead”, Americana: The Journal of American Popular Culture (1990-present) 1 (2002), disponível em: http://www.americanpopularculture.com/journal/articles/fall_2002/harper.html.
[21] “The Internet Movie Database (IMDb)”, s.p. [citada em 13 de novembro de 2011]. Disponível em: http://www.imdb.com/. Além dos vários títulos americanos, o Canadá produziu Shivers (1975) e Rabid (1977); Nova Zelândia e Reino Unido produziram Braindead (1992); há o italiano Dellamorte Dellamore (1994); Versus (2000), do Japão; 28 days later (2002) e Shaun of the dead (2004), da Inglaterra; e o espanhol [Rec] (2007). Alguns títulos foram distribuídos com outros nomes nas Filipinas e em Portugal.
[22] John Sudworth, “Zombie craze continues to infect popular culture” [citada em 13 de novembro de 2011], disponível em: https://www.bbc.co.uk/news/uk-15418899.
[23] Michael Johnson, “The meaning of the zombie”, YouTube [citada em 13 de novembro de 2011], disponível em; http://www.youtube.com/watch?v=_nyEQplt9Nc.
[24] “Dan Dennett on dangerous memes”, vídeo em TED.com [citada em 13 de novembro de 2011], disponível em: http://www.ted.com/talks/lang/eng/dan_dennett_on_dangerous_memes.html.
[25] Johnson, “The meaning of the zombie”, grifo nosso.
[26] Liz Cole, “GreenCine | Zombies” [citada em 13 de novembro de 2011], disponível em: http://www.greencine.com/static/primers/zombies1.jsp.
[27] Jamie Russell, Book of the dead: the complete history of zombie movies (FAB Press, 2005), p. 171.
[28] Latest News—Battlefield LIVE Pembrokeshire” [citada em 13 de novembro de 2011], disponível em: http://www.battlefieldlivepembrokeshire.co.uk/news.shtml.
[29] “Why we’re obsessed with the apocalypse” [citada em 13 de novembro de 2011], disponível em: http://www.cracked.com/blog/why-were-obsessedwith-apocalypse/.
[30] “5 reasons you secretly want a zombie apocalypse” [citada em 13 novembro de 2011], disponível em: http://www.cracked.com/article/136_5-reasons-you-secretly-want-zombie-apocalypse/?wa_user1=1&wa_user2=Weird+World&wa_user3=article&wa_user4=recommended.
[31] R. C. Sproul, Willing to believe: the controversy over free will (Baker, 2002), p. 145.
[32] Martin Luther, A treatise on good works (The Floating Press, 2009), p. 91.
[33] Sproul, p. 145.
Trecho extraído da obra “Conectados: relacionando sua fé com o que você assiste, lê e ouve”, de Daniel Strange, publicada por Vida Nova: São Paulo, 2021, pp. 171-180. Traduzido por Larissa Medeiros Nobre. Publicado no site Tuporém com permissão.
Daniel Strange é PhD pela Bristol University, especialista na relação do cristianismo com outras religiões. É presbítero na East Finchley Baptist Church, diretor do Crosslands Forum e autor dos livros "The possibility of salvation among the unevangelised" e "Making Faith Magnetic". É casado com Elly, com quem tem sete filhos. |
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