“Onward”: tecnologia e desencantamento do mundo | Luiz Adriano Borges

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“Onward” ou, em português “Dois irmãos: uma jornada fantástica”, é uma animação da Pixar, lançada em março de 2020, mas que, devido à epidemia de coronavírus, passou meio despercebida. Apesar disso é um filme excelente, tratando de muitos elementos morais como família, reconciliação, sacrifício e dar passo de fé. Vou apontar alguns spoilers, então, se você ainda não viu, corra lá ver e depois volte ao meu texto.

O mundo do desenho é habitado por criaturas míticas e a mágica era algo comum por muito tempo, apesar de ser difícil controlá-la e utilizá-la. Poucos se tornavam habilidosos nas mágicas. “O mundo era cheio de maravilhas. Tinha aventura. Emoção.” A magia era muito necessária para as necessidades cotidianas. Até que um dia tiveram início os avanços tecnológicos. Primeiro a lâmpada, que tornou a iluminação muito mais fácil, depois os diversos eletrodomésticos: fogão, máquina de lavar, lareira, videogames etc. Depois de avanços tecnológicos, a mágica se tornou obsoleta e foi amplamente descartada. O universo encantado se tornou industrializado e entediante. Mas a magia ainda sobrevivia. Principalmente entre os irmãos elfos, Ian e Barley. Este, o mais velho, é um entusiasta da magia e curte jogos de tabuleiros (D&D) e cartas (Magic) com a temática.

Não precisamos avançar muito na história para percebermos a riqueza do tópico: o desencantamento do mundo face às comodidades da tecnologia. É uma parábola da nossa cultura tecnológica contemporânea.

Ian e Barley, “Onward”

É um fato que a tecnologia trouxe inúmeras melhorias para o cotidiano das pessoas. Não precisamos mais ir à floresta, cortar madeira e acender um fogo para cozinhar e nos esquentarmos; simplesmente ligamos um botão. Não que alguém queira advogar o retorno aos tempos pré-tecnológicos, mas algo fica faltando no intercâmbio com a tecnologia. Vejamos o que pode ser.

Timothy Keller em seu fabuloso livro que explora a falta de sentido contemporânea, “Deus na era secular”, traça um histórico e um panorama filosófico e teológico da aparente extinção da religião. Mas de fato o que temos é que o transcendental não desaparece totalmente e as ideologias seculares acabam imanentizando antigas promessas religiosas. É o que Charles Taylor explorou em sua monumental “A era secular”. Como diz Keller, “o secularismo estrito sustenta que as pessoas são apenas entidades físicas sem alma, que os entes deixam de existir quando morrem, que as sensações de amor e beleza não passam de fatos neurológicos/químicos, que não existe certo ou errado fora do que nós, em nossa mente, determinamos e escolhemos” (Deus na era secular, p. 39). É uma visão por demais pobre e incapaz de explicar toda a riqueza da realidade.

Não à toa, todo o desenvolvimento tecnológico e científico da virada do século XIX para o XX não foi capaz de trazer alegria às pessoas. Pelo contrário, trouxe guerras, mortes, doenças e desespero. O mito do progresso estava enterrado porque as pessoas não encontravam sentido no que estava acontecendo. Isso porque progresso material não está ligado a avanços morais e de significado. Já no início do século XX, Max Weber vai falar sobre o desencantamento do mundo em “A ética protestante e o espírito do capitalismo”, em 1904. Ao longo do século XX, a filosofia existencialista demonstrou profundamente como a ausência de sentido levava a um niilismo suicida.

E hoje, no século XXI, onde havíamos aparentemente domado as forças da natureza ao nosso favor pelo controle tecnológico, continuamos a ter doenças, mais poluição, estresse, cansaço mental, ruídos de comunicação. A tecnologia não consegue estabelecer sentido. Muitos filósofos da tecnologia vão afirmar que a tecnologia produz uma falsa realidade reduzindo nossas experiências reais.

Os membros dos inklings, grupo de amigos que se reunia em Oxford na primeira metade do século XX para discutir literatura, tentou exatamente achar paliativos para a sociedade tecnológica. Eles eram amantes da era medieval, não com um sentido de retorno nostálgico às origens, mas sim pela busca da ética perdida. Para principalmente dois deles, C. S. Lewis e J. R. R. Tolkien, os contos de fadas eram um meio de resgatar a imaginação moral perdida. Após terem sobrevivido aos horrores dos campos de batalha da Primeira Guerra Mundial, onde muitos encontravam desespero, eles encontraram esperança. Não sem criticar a modernidade e seus ideais de progresso. Em suas obras abundam críticas ao papel destruidor da tecnologia. Eles não eram contrários à tecnologia, mas queriam restabelecer a imaginação como um meio enriquecedor da realidade.

Os Inklings

Para Tolkien, “os contos de fadas também oferecem, em grau ou modo peculiar, estas coisas: Fantasia, Recuperação, Escape, Consolo, coisas de que as crianças por via de regra precisam menos que os mais velhos” (J. R. R. Tolkien. “Árvore e folha”, p. 44). Portanto, todos deveriam ler contos de fadas como um bálsamo para a alma. Muitas vezes se confunde o gosto por mundos imaginários como simples fuga da realidade, mas isso não pode estar mais errado. Tolkien diz que

“A fantasia é uma atividade humana natural. Certamente ela não destrói a Razão, muito menos insulta; e não abranda o apetite pela verdade científica nem obscurece a percepção dela. Ao contrário. Quanto mais arguta e clara a razão, melhor fantasia produzirá. Se os homens estivessem num estado em que não quisessem conhecer ou não pudessem perceber a verdade (fatos ou evidência), então a Fantasia definharia até que eles se curassem. Se chegarem a atingir esse estado (não parece totalmente impossível), a Fantasia perecerá e se transformará em Ilusão Mórbida”.

Diversas vezes ele criticou a feiura das cidades industrializadas inglesas; cidades com falta de imaginação, onde o belo deu lugar ao útil em prédios quadrados e fábricas fumacentas.

É muito sintomático que no filme “Onward” a substituição da mágica seja pelas facilidades da tecnologia.

Muitos autores apontam que mágica e tecnologia possuem a mesma base em suas origens: a busca por controle. A diferença é que a mágica dá um significado mais profundo para a realidade do que a tecnologia. Por exemplo, com a tecnologia podemos transformar tudo na natureza a nosso favor e nem precisamos nos preocupar porque a natureza é desencantada; não pensamos mais em termos mágicos com relação a ela; não achamos que há seres mágicos nos bosques ou que tudo é uma criação de Deus; a natureza é algo a nosso dispor. Na maioria das vezes nem entendemos como funcionam nossos aparelhos.

Tolkien diz que o motivo básico da magia é “imediatismo: velocidade, redução de trabalho, e redução também de um mínimo (ou ao ponto de desaparecimento) da lacuna entre ideia ou desejo e o resultado ou efeito” (Tolkien, Letters of, carta número 155). Assim, o passo para se utilizar tecnologia para facilitar nossa vida é irresistível.  Mas essa busca por eficiência traz muitos problemas. Em nossa sociedade contemporânea tudo é orientado pelo mandamento da eficiência: a concepção urbana, a produção de alimentos e até nossas comunicações. Mas isso não produz uma vida boa. Pelo contrário, como percebemos pela condição hipermoderna, ou a sociedade do cansaço.

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A tecnologia é uma maneira mais fácil de fazer muitas coisas, mas ela transforma tudo que toca, nos tira da realidade e esse desfoque do que vale a pena nos torna desencantados e desesperançados, porque, no fundo, sabemos que o mundo é muito mais que somente matéria. Somos seres corporais, mentais e espirituais. As tecnologias têm o poder de nos desencarnar e transformar nossas mentes, além de retirar o tempo para a contemplação. Reuniões e aulas online nos deixam cansados e com uma sensação de incompletude. As ligações não são perfeitas, há falhas e ruídos de comunicação, falta a expressão corporal e saímos estafados e tensos. O problema não é necessariamente a tecnologia, mas sim que procuramos utilizar a tecnologia para substituir muitos aspectos da realidade, uma vez que os artefatos parecem facilitar nossa vida.

Um filósofo da tecnologia que tenho gostado muito de ler é Albert Borgmann. Ele procurou fazer uma análise da cultura tecnológica contemporânea, apontando seus problemas e propondo soluções. Sua proposta é voltarmos ao que ele denomina de práticas focais, porque dessa forma colocaríamos a tecnologia em seu lugar ao realizar certas ações para além dos aparelhos eletrônicos: preparar uma refeição, correr, caminhar, jogar um jogo de tabuleiro, ler, fazer atividades comunitárias e em conexão com a realidade. Por que isso seria suficiente para evitar o estresse da condição pós e hipermoderna? Porque, ao nos deixar levar pelo ritmo da tecnologia, com relógios, cronogramas, telas, internet, nos tornamos praticamente ciborgues, seres tecnológicos. Isso leva ao que vários autores têm apontando como a sociedade do cansaço (Buying Han Chul) e uma “geração superficial” (Nicholas Carr), que perdeu contato com a realidade. A tecnologia quer construir uma realidade desencarnada e quer tornar nossa mente robotizada. Parece simples, mas essa parece ser uma boa saída para a questão tecnológica: a simplicidade do equilíbrio da tecnologia com as atividades focais propostas por Borgmann.

Basicamente, a ideia de Borgmann é uma solução de reencantar o mundo, trazendo a beleza e preenchendo de significado tudo o que fazemos. (McGrath também fala nestes termos em “The reenchantment of nature”). Por isso que o cristianismo, como uma tradição comunitária, narrativa, festiva e que envolve corpo, alma e mente, é tão propensa a resgatar a beleza do mundo.

As pessoas não percebem como o desencantamento do mundo foi deletério para a vida. O secularismo tentou passar para a ciência e a tecnologia as promessas religiosas, mas com resultados ambíguos desde o século XIX: campos de concentração, nazismo, bomba atômica, poluição, degradação ambiental e agora, as promessas do transumanismo, de superação das limitações humanas através da bioengenharia. Isso porque, promessas de imortalidade e transcendência quando imanentizadas, produzem uma escatologia capenga, pretende trazer o paraíso para a terra, mas transforma sua superfície num inferno. Só lembrarmos da outrora verdejante Isengard na Terra Média, mas que, nas mãos de Saruman, se transformou numa horrível distopia industrial.

Lewis dizia que, “por vezes, os contos de fadas podem dizer melhor o que deve ser dito” (“Sobre histórias”). É impressionante como esse desenho da Pixar tocou em algo certeiro. Queremos a facilidade da tecnologia, mas perdemos muita coisa pelo caminho. Claro que é preciso encontrar um equilíbrio; não se trata de jogarmos fora toda nossa tecnologia, nem abraçá-la por completo. Porque, se ficarmos presos ao tradicionalismo, à uma era imaginada, isso também seria problemático, pois tentaríamos criar retrotopia. Mas, se focarmos nossos olhares no futuro, desconsiderando as lições da história, buscando estabelecer uma utopia tecnológica e científica, acabaremos por trazer uma distopia, prenunciada tantas vezes. Talvez o retorno de tantas distopias nos últimos tempos (Matrix, série Divergente, Maze Runner, Jogos Vorazes etc.) seja sintoma de preocupações ambientais, tecnológicas e científicas e falta de sentido.

Por isso, é preciso equilíbrio para que não vivamos em um mundo sem Graça, desencantado. Interessante que o nome do desenho da Pixar é “Onward”, algo que significa adiante, à frente; a grande lição desta obra é que podemos aceitar e utilizar os benefícios da tecnologia, mas nunca devemos nos esquecer o sentido das coisas, as origens que dão sentido e cimentam as estruturas éticas e morais da nossa vida. Ao equilibrarmos passado e presente, cuidamos para que nosso mundo seja reencantado, e a realidade seja novamente enriquecida. Não podemos viver sem um senso de transcendência, mas a tecnologia pode ser uma ferramenta útil em nossa peregrinação terrestre, desde que posta em seu lugar, e se enfoque no que realmente vale a pena ser vivido.

O filme aponta a necessidade de resgatarmos o que é valioso, “mágico”, e principalmente, restabelecer os laços familiares, olhando para frente, relembrando nossas raízes, mas sem cair numa nostalgia paralisante. A coragem para ir à frente, melhorando a vida material, mas sem abandonar os profundos elementos que dão sentido à vida humana, que é o relacionamento com Deus e com nosso próximo. A tecnologia e a ciência podem ser bons artefatos para isso, mas nunca seu substituto.

Luiz Adriano Borges é professor de história na UTFPR-Toledo, lecionando sobre história da técnica, tecnologia e sociedade, filosofia, sociedade e política. Sua área de pesquisa centra-se na História e Filosofia da Tecnologia e da Ciência. Seus projetos mais recentes são: “A visão cristã da tecnologia” e “Esperança em Tempos de guerra. Ciência, tecnologia e sociedade em Tolkien, Huxley, Lewis e Orwell (1892-1973)".
Vivemos em uma época que valoriza a razão empírica, a evolução do progresso humano e o direito de todos escolherem sua própria expressão de significado, propósito e alegria. Para muitos hoje, a ideia de Deus ou de um poder superior não faz mais nenhum sentido. Para muitos, a fé e a religião já não podem oferecer nada de valor. Como seres humanos, não podemos viver sem satisfação, sentido, liberdade, identidade, justiça e esperança.

Por isso, neste novo livro, Timothy Keller, pastor e autor best-seller do New York Times, convida o cético e o estudante de filosofia e de religião a considerar que o cristianismo ainda é a resposta para todas essas necessidades. Escrito para crentes e para quem ainda não vê razões para crer, Deus na era secular lança luz sobre o profundo valor e importância do cristianismo em nossas vidas.

Publicado por Vida Nova.

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