Por que temos de interpretar a Bíblia? | Grant R. Osborne

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O processo de estudo da Bíblia é chamado de “hermenêutica”, um termo derivado da palavra grega para “interpretação”. O primeiro e mais importante passo na interpretação da Bíblia é, na verdade, o reconhecimento de que devemos interpretá-la. À primeira vista isso parece óbvio: a Bíblia é a Palavra de Deus. Não teríamos, portanto, que buscar o significado pretendido por ele? Contudo, poucos foram treinados para pensar dessa forma. Muitos de nós abordamos a Escritura de forma aleatória. Folheamos a Bíblia, colocamos o dedo sobre uma parte do texto e pronto. O que queremos é um novo ânimo, ou seja, que o texto toque nosso coração de alguma forma. Isso não é necessariamente errado, exceto pelo fato das “necessidades que sentimos” muitas vezes ficarem acima da verdade bíblica.

O movimento de “memorização de versículos” é um bom exemplo da forma errada de lidar com a Escritura. No passado, versículos eram tirados de seu contexto; a impressão era que uma vez memorizado um versículo, Deus abençoaria qualquer coisa que fizéssemos com isso. Recentemente, a ênfase mudou para a memorização de passagens inteiras para que se aprenda o contexto. Isso mostra algum progresso, pois versículos não têm sentido fora de seu contexto. Porém, temos que dar um passo adiante, pois raramente existe uma preocupação em se estudar o significado da passagem. A verdade é que a melhor maneira de memorizar uma passagem é estudando-a profundamente. Assim, não se aprende somente as palavras, mas a mensagem também. E não somente isso – o significado descoberto sob a superfície da passagem é sempre empolgante e capaz de transformar nossa vida. Além de ser a mensagem de Deus!

Contudo, permanece ainda a pergunta: por que precisamos de métodos modernos complicados para alcançar algo que deveria ser simples – entender a Bíblia? Diversos argumentos podem ser elaborados contra a questão apresentada: primeiro, devemos confiar no Espírito Santo e não nas técnicas humanas; segundo, os próprios escritores bíblicos quando interpretavam a Escritura não usavam métodos complicados e se concentravam no significado simples do texto (vem à mente Mc 1.22 – Jesus ensinou “como quem tinha autoridade e não como os escribas” (professores de seminário!); terceiro, por toda a história da igreja, cristãos se viraram muito bem sem a hermenêutica. Então, para que isso agora? Cada um desses argumentos merece resposta.

Primeiro, não há nenhuma passagem na Bíblia que afirme que o Espírito Santo nos dirá o significado do texto. Em vez disso, o Espírito usa o texto para nos convencer e nos levar para mais perto de Deus. A pergunta não é se o Espírito pode usar aquilo que conseguimos entender do texto, e sim se desejamos conhecer a Palavra de Deus mais profundamente. Por se tratar da Palavra de Deus, temos que desejar conhecer o significado pretendido por Deus, ou seja, o significado que Deus inspirou no autor.

Quanto ao segundo questionamento, o método dos escritores do Novo Testamento para interpretar o Antigo Testamento evidentemente não era um conjunto de princípios hermenêuticos modernos. Como poderia ser? Em cada período bíblico de interpretação (e.g., a interpretação que os profetas faziam da Torá ou da Lei e a interpretação que os profetas posteriores faziam dos profetas anteriores), os autores usaram os métodos de suas próprias épocas. Isso é chamado de “acomodação divina”, o que significa que Deus usou o entendimento comum daquele tempo para comunicar suas verdades reveladas. Será que deveríamos nos tornar rabinos do primeiro século, já que Jesus usou o modo de pensamento deles em passagens como Marcos 11.27-12.34 (debates com os líderes do templo)? É claro que não! Também não devemos usar métodos rabínicos de interpretação da Bíblia somente porque os autores do Novo Testamento o fizeram. Pelo contrário, usamos os métodos de nossos dias e Deus os abençoa. Nosso objetivo é entender a mensagem do texto sagrado da melhor maneira possível e nos alegramos com qualquer coisa que nos ajude a alcançar esse objetivo.

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À primeira vista, parece que a terceira crítica, que na verdade é uma extensão da segunda, tem algum mérito. Considere, contudo, que o entendimento das técnicas hermenêuticas se desenvolveu ao longo de toda história da igreja e que cada passo dado melhorou o entendimento da igreja sobre a Escritura. Além disso, nenhum dos grandes homens e mulheres de Deus (e.g., Agostinho, Tomás de Aquino, Lutero, Calvino, Wesley) estava satisfeito com o que sabia, pois todos buscaram aprender mais. O mesmo é verdade hoje.

Muitos leitores ainda perguntarão: “Por que todos esses estágios complexos? Não é suficiente simplesmente ler a Bíblia e deixar que ela fale comigo?” Duas respostas são necessárias. Primeiro, em certo sentido isso é suficiente, pois a leitura simples da Palavra de Deus tem sido benéfica ao seu povo por séculos. Entretanto, existem vários níveis de entendimento – um nível devocional básico, um nível de sério estudo leigo, níveis de planos de estudo feitos por professores, por pastores e por estudiosos que escrevem comentários. Cada nível é usado de forma poderosa por Deus. A pergunta é se temos que (ou queremos) permanecer sempre no primeiro nível. Este capítulo proporciona a oportunidade de o leitor expandir seus horizontes para um novo nível.

A segunda resposta à pergunta feita no parágrafo anterior é questionar se uma leitura simples pode ser suficiente em última análise. Conta-se a história de um estudante bem intencionado que desafiou seu professor: “Entender a Bíblia é tão difícil para você. Eu simplesmente a leio e Deus me revela seu significado”. Conquanto a afirmação do estudante reflita “uma confiança em Deus, algo que é recomendável, também revela um entendimento simplista (e potencialmente perigoso) da iluminação do Espírito Santo e da clareza da Escritura”.[1] Ler um texto indutivamente produz um nível básico de entendimento, mas não podemos evitar compreendê-lo com base em nossa própria experiência e de acordo com nossas crenças previamente estabelecidas. Somos inevitavelmente limitados por nossas próprias pressuposições.

Para nos aprofundarmos no entendimento do autor original (inspirado por Deus), precisamos das ferramentas da interpretação.


Notas

[1] 1William W. Klein, Craig L. Blomberg e Robert L. Hubbard, Jr., Introduction to Biblical Interpretation (Dallas: Word, 1993), p. 4.


Trecho extraído e adaptado da obra: 3 perguntas cruciais sobre a Bíblia, do autor Grant R. Osborne publicado por Edições Vida Nova: São Paulo, 2014, p. 97-101. Publicado no site Cruciforme com permissão.

 

(1942-2018) PhD, University of Aberdeen) foi professor de Novo Testamento na Trinity Evangelical Divinity School, em Deerfield, Illinois, nos Estados Unidos. Também é autor de vários livros, entre eles A espiral hermenêutica, 3 perguntas cruciais sobre a Bíblia e Apocalipse (da Série Comentário Exegético), publicados por Vida Nova.

3 perguntas cruciais sobre a Bíblia é uma versão simplificada de A espiral hermenêutica, escrita num nível mais acessível. Esta obra lida com três questões que confrontam todos os que se dedicam ao estudo da Bíblia. Com uma linguagem persuasiva e objetiva, o autor estabelece posições com robusta firmeza.

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