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23/nov/2017Restaurar a criação exigirá a obra inspirada pelo Espírito de instituições cuidadoras e hábitos vivificantes
Que amor é este que tomaria tais riscos?
O Deus pactual de Israel e Pai de Jesus Cristo é um Criador extravagante, inventivo que, no que quase parece ser loucura, confiou o cuidado e o desenvolver da criação a nós, suas criaturas, comissionadas como portadoras de sua imagem. Delegadas e habilitadas a cumprir esta missão de cultivar a imagem portada, devemos trabalhar e jogar, fazer amor e arte, cuidar da terra e transformar o seu fruto em nosso pão diário enquanto também encarnamos os nossos sonhos mais selvagens em catedrais e arranha-céus. Esse fazer de cultura segundo a imagem portada será mais frutífero quando vai de acordo com o rumo do universo, quando o nosso trabalhar e o nosso brincar andam nos trilhos das normas vivificantes de Deus.
Criação, então, vem com uma missão e uma vocação. Ser portador da imagem de Deus é uma tarefa e responsabilidade confiada às criaturas. Se Deus criou a partir de e para o amor, então ele também nos criou com o convite para amar o mundo e assim desenvolver o seu, e o nosso, florescimento.
Mas…
Nós confessamos, e experimentamos com muita frequência, uma ruptura nesta visão carnavalesca do amor criativo. Enquanto o amor autodoador de Deus confiou a nós o cuidado e o cultivo de sua criação, a humanidade agarrou isso como um merecimento ao invés de receber como uma dádiva. Assim, a nossa missão de desenvolver o potencial latente na criação tomou a forma de uma invenção desinibida ao invés de uma co-criação normatizada. Conquanto este impulso criacional pela poiesis não pudesse ser obliterado ou apagado, este impulso criacional bom de fazer se tornou distorcido e mal-direcionado: ao invés de fazermos amor, fizemos guerra (e agora mesmo quando fazemos amor somos inclinados a fazê-lo de formas que vão contra ao que é bom de verdade para nós). Ao invés de cultivar a terra, temos criado sistemas inteiros que cobiçosamente a exploram. Ao invés de um fazer normatizado, a humanidade é inclinada a um violar licencioso. Temos falhado em cumprir a missão confiada a nós como portadores da imagem de Deus.
E mesmo assim…
O nosso bom Criador não nos deixou aos nossos próprios artifícios. Embora tenhamos rompido a plenitude do amor criativo, o nosso Deus condescendente também rompeu o nosso céu de bronze, bem como o nosso desejo de nos fechar na imanência, aparecendo na carne, na nossa carne, como a imagem do Deus invisível. Jesus de Nazaré aparece como o segundo Adão que modela para nós como é cumprir a missão original de portar a imagem e cultivar. A Palavra se tornou carne, não para salvar as nossas almas deste mundo caído, mas a fim de nos restaurar como amantes deste mundo, para nos (re)habilitar a cumprir aquela comissão criativa. De fato, Deus nos salva de forma que, novamente, num tipo de loucura divina, possamos salvar o mundo, possamos (re)fazer corretamente o mundo. E o amor redentivo de Deus transborda em seus efeitos cósmicos, dando esperança a esta criação em gemidos.
Então a nossa redenção não é algum suplemento a ser humano; é o que faz ser possível realmente ser humano, tomar a missão que nos marca como portadores da imagem de Deus. Santo Irineu captura isso sucintamente: “a glória de Deus é um ser humano plenamente vivo”. A redenção não impõe algum apêndice espiritual, nem nos libera de ser humano a fim de obtermos algum tipo de angelicalidade. Ao invés disso, a redenção é a restauração da nossa humanidade e a nossa humanidade está vinculada à nossa missão de sermos fazedores de cultura cocriativos pertencentes a Deus.
Embora a redenção de Deus seja cósmica, não antropocêntrica, ela de todo modo opera segundo aquele escândalo criacional original no qual a humanidade é comissionada como embaixadora, e mesmo cocriadora, por amor do mundo. De um jeito igualmente escandaloso, nós somos agora comissionados como coredentores. A redenção é a reorientação e a redireção de nossas capacidades de fazer cultura. Fomos nós que inventamos os sistemas culturais distorcidos que deformam e exploram este bom mundo; restaurar a criação à sua exuberante plenitude e fecundidade não acontecerá por fiat divino ou mágico, exigirá o trabalho duro, paciente e inspirado pelo Espírito de construir sistemas bem ordenados, instituições que cuidem da criação e hábitos vivificantes. Embora não seja uma questão de “salve a líder de torcida, salve o mundo”, a economia escandalosa da redenção de fato parece sugerir “salve a humanidade, salve o mundo”.
Uma das palavras do Novo Testamento para “salvação” (soteria) carrega as conotações tanto de livramento e libertação quanto de saúde e bem-estar. Então a salvação é tanto liberação de nossa desordem e restauração para saúde e florescimento. Eu não consigo numa ilustração melhor disso do que as práticas saudáveis que Wendell Berry nota e celebra em sua recente coleção Bringing It To The Table: On Farming and Food [Trazendo à mesa: sobre agricultura e comida]. Considere, por exemplo, o seu louvor aos agricultores Amish no nordeste do estado de Indiana que estão “trabalhando para restaurar solos esgotados”. Isso é uma interpretação compacta de nosso chamado redentivo. Sistemas, instituições e práticas que falham em cuidar do solo (e dos animais que vivem dele) se desenvolveram; elas sugam e roubam dele sem o restaurar. O erro, sim, o pecado, de tal enriquecimento ilícito se mostrará em breve porque tais sistemas e práticas vão contra o rumo do universo. A própria criação nos diz que estamos fazendo algo errado. A redenção, neste caso, é tangível e concreta: é rotação de culturas, espalhar adubo e ouvir o que o solo está nos dizendo. Trabalhar para restaurar um solo esgotado está situado dentro de um estilo de vida. De fato, é um estilo de vida.
Graças a Deus, tal trabalho cultural redentor e saudável não é uma província especial para cristãos. Embora a igreja seja aquele povo que foi regenerado e empoderado pelo Espírito para fazer a boa obra do fazer cultural, antecipações do reino vindouro não se restringem à igreja. O Espírito é pródigo em espalhar sementes de esperança, Então nós devoramos antecipações do reino sempre que as podemos achar. O Deus criador e redentor da Escritura se deleita na literatura judaica que encosta nos recônditos mais profundos do potencial da linguagem, no comércio muçulmano que caminha segundo o rumo do universo e nos casamentos bem-ordenados de agnósticos e ateus. Nós, também, podemos seguir a atitude de Deus e celebrar o mesmo.
Mas com que se parece a redenção? Em grande parte, você vai saber quando a vir porque ela se assemelha ao florescimento. Ela aparenta uma vida bem vivida. Ela aparenta o jeito que as coisas deveriam ser. Aparenta um pomar bem-cuidado repleto de frutos produzidos por antigas raízes. Aparenta o trabalho que edifica a alma e traz prazer. Aparenta um antigo casal de marido e mulher gargalhando com seus netos. Aparenta uma dançarina esticando o seu corpo até o limite, incorporando uma beleza estonteante em músculos e tendões ondulando com devoção. Aparenta o estudante de pós-graduação debruçado sobre um microscópio explorando recantos e fissuras da microcriação de Deus, procurando maneiras de desfazer a maldição. Aparenta a abundância para todos.
A redenção soa como as cadências surpreendentes de um concerto de Bach cujo ritmo parece expandir a alma. Soa como um escritório que zune com um senso de harmonia na missão, pontuado pela risada colaborativa. Soa como os gemidos e gritos de um jogador de tênis cujo intenso saque e fluida direita promulgam coisas que não sonharíamos serem possíveis. Soa como as questões de um aluno de terceira série cujo professor ama o suficiente para considerar e dar espaço para uma curiosidade santificada sobre o bom mundo de Deus. Soa até mesmo como o debate espirituoso de um jovem casal que está discernindo em seu casamento o que significa ter uma amizade que retrata a comunidade que Deus deseja (e é).
A redenção cheira como a provocação de carvalho de um Napa Chardonnay que gera antecipação em nossos paladares. Cheira como solo de baixo de nossas unhas depois de trabalhar com peônias e gerbérias. Cheira como a fumegante cozinha de inverno de uma família junta se preparando para o jantar. Cheira como a antiga sabedoria de um livro herdado de um avô ou aquele “cheiro lá de fora” do cachorro da família em novembro. Cheira como ir de bicicleta para o trabalho numa manhã nebulosa de primavera. Cheira até mesmo como a pungência salgada do trabalho duro e aquele buquê singular de odores que banham o nascimento de uma criança.
A redenção tem o gosto de uma colheita de primavera produzida por meio de trabalho amoroso e cuidado atento ao solo e à planta. Tem o gosto de um peru do dia de ação de graças cuja própria “peruidade” vem à vida a partir de seu próprio deleite animal com o ar livre. Tem o gosto da amargura do lúpulo de uma IPA compartilhada com amigos no pub da vizinhança. Tem o gosto até de comer o seu brócolis porque a sua mãe te ama o suficiente para querer que você coma bem.
Então a redenção aparenta a poesia corporal de Rafael Nadal e o sorriso maroto de Bett Favre numa noite boa; soa como os risinhos amorosos de Julia e Paul Child e cheira como a cozinha dela; reverbera como as antífonas profundas do cello de Yo-Yo Ma; é sentida como a métrica trêmula da poesia de Auden ou o deleite mágico do verso leve de Updike; aparenta o cuidado compassivo de Paul Farmer e de Madre Teresa. A redenção pode ser espetacular e fabulosa e (quase) triunfante.
Mas, em geral, a redenção empoderada pelo Espírito parece com o que Raymond Carver chama de “uma pequena coisa boa”. É como o nosso trabalho cotidiano bem feito, por amor, em ressonância com o desejo de Deus por sua criação, desde que o nosso trabalho aqui em baixo esteja aninhado como parte de uma contribuição a sistemas e estruturas de florescimento. É como fazer o nosso dever de casa, fazer o lanche das crianças para a escola, construindo com qualidade e com a devoção de um artesão, e bolando um orçamento municipal que discerne o que realmente importa e contribui para o bem comum. É claro, a redenção é a queda do apartheid, mas também são as amizades uma vez impossíveis feitas posteriormente. É um assento livre no ônibus para todos, mas também é se familiarizar com os meus vizinhos que são diferentes de mim. É nada menos do que tentar mudar o mundo, mas começa em nossas casas, nossas igrejas, nossas vizinhanças e nossas escolas.
Não nos deveria surpreender que a redenção nem sempre parece triunfante. Se Jesus veio como o segundo Adão que modela o fazer cultural redentivo, então em nosso mundo quebrado tal trabalho cultural parecerá cruciforme. Mas também parecerá como a esperança faminta por alegria e deleite.
Traduzido por Guilherme Cordeiro e revisado por Jonathan Silveira.
Texto original: Redemption. Comment Magazine. Este artigo foi publicado em 1 de março de 2010 na revista “Comment”, uma publicação da CARDUS: www.cardus.ca.
James K. A. Smith (PhD, Villanova University) é professor de Filosofia na Calvin College, onde também ocupa a cátedra Gary e Henrietta Byker de Teologia e Cosmovisão Reformadas Aplicadas. É editor da revista Comment, além de autor e organizador de vários livros, entre eles 'Você é aquilo que ama' e 'Desejando o Reino', publicados por Vida Nova. |
Você é aquilo que ama. Mas pode ser que você não ame o que pensa que ama. Nosso coração é moldado fundamentalmente por tudo o que adoramos. Talvez sem perceber, somos ensinados a amar deuses rivais em lugar do verdadeiro Deus para o qual fomos criados. Embora tenhamos a intenção de moldar a cultura, nem sempre temos consciência de quanto a cultura nos molda. Em Você é aquilo que ama, James K. A. Smith nos ajuda a reconhecer o poder formador da cultura e as possibilidades transformadoras das práticas cristãs, redirecionando nosso coração para o que de fato merece nossa adoração. Smith explica que a adoração é a “estação da imaginação”, capaz de incubar nossos amores e anseios de tal modo que os nossos engajamentos culturais tenham sempre Deus e o reino como referenciais. É por essa razão que a igreja e o culto em uma comunidade local de crentes devem ser o centro da formação e do discipulado cristãos. O autor engaja o leitor fazendo um uso criativo de filmes, obras de literatura e músicas e trata de temas como casamento, família, ministério de jovens, fé e trabalho. Além de tudo, também sugere práticas individuais e comunitárias para moldar a vida cristã. Publicado por Vida Nova. |
Veja também os demais artigos da série:
- Criação – Albert M. Wolters
- Queda – David K. Naugle
- Redenção – James K. A. Smith