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Uma flagrante teologia pública evangélica seria uma receita para a irrelevância sectária e para o nosso isolamento em uma câmara de ressonância de nosso enclave cristão?

Não, afirma Oliver O’Donovan em Resurrection and Moral Order, e por duas razões. Primeiro, porque o que sabemos por meio da especificidade do Evangelho e da revelação bíblica ainda é conhecimento sobre a criação e a natureza humana, e como tal, ainda fornece insights para o bem comum. Segundo, porque a ordem “secular” pode ser mais cristã do que parece. Uma tarefa crucial da teologia política evangélica e o trabalho histórico e genealógico paciente, que revela os débitos que nossa ordem “secular” possui com a especificidade de Israel e de Cristo – uma tarefa que O’Donovan realiza em Desire of the Nations. “Assim como a superfície de um planeta apresenta várias crateras pelo bombardeio que recebe do espaço, os governos da era presente mostram o impacto da glória nascente de Cristo” (p. 212).

Acima de tudo, essa teologia política recusa-se a deixar que o político permaneça retirado da especificidade do impacto do Evangelho. Nossas instituições políticas, hábitos e práticas são configurações culturais contingentes que são incluídas no “tudo” que Cristo redime (Colossenses 1:16-17). O político não é isolado do impacto do evento-de-Cristo e do testemunho específico da igreja na história – incluindo os hábitos políticos que são aprendidos na polis que é a igreja. O’Donovan indica que essa “teologia política formada pelo evento-de-Cristo” deve primeiro:

“criticar as noções existentes de bens e necessidades políticas, não somente as noções republicanas clássicas, mas as imperiais e teocráticas também, à luz daquilo que Deus realizou pela raça e pela alma humana. As normas públicas devem ser ajustadas às novas realidades em que membros ordinários da sociedade possam a ouvir a voz de Deus e a proclamá-la em público mesmo que, de acordo com o profeta, esses homens e mulheres sejam escravos. Ideias sobre o que o governo é devem ser corrigidas à luz daquele governo soberano que o Espírito exerce por meio da consciência de cada adorador.” (p. 122-123)

Esse mistério do Evangelho – que o Rei do universo conhece o número de fios de cabelo de sua cabeça – revela sua própria revolução política: nenhum indivíduo pode ser uma mera engrenagem na máquina coletivista se o Espírito do Rei Criador governa a consciência de cada um. Esta realidade do Evangelho gera o que O’Donovan chama de “teologia política em sua forma liberal, atacando e superando a pretensão de autonomia da ordem política” (p. 123). Até mesmo o liberalismo carrega as marcas do impacto meteórico do Evangelho.

Mas a teologia política também possui uma forma eclesiológica, um “lado construtivo de sua tarefa, que é mostrar como a extensão do Evangelho do Reino dentro do Evangelho Pascal, em vez de destruir, eleva nossa experiência de comunidade. […] A independência do crente, então, não é antissocial. Ela emerge da autoridade de outra comunidade, centrada na autoridade do Cristo ressurreto” (p. 123). A igreja incorpora um modo de ser político diferente que deve ser espalhado, por meio da revelação e do testemunho, para reconfigurar até mesmo a política da cidade terrena.

O Saeculum como tempo, não como espaço

Tudo isso está centrado na convicção central do Evangelho de que Cristo agora reina, que “o reinado de Cristo é o reinado do próprio Deus exercido sobre todo o mundo. Ele é visível na vida da igreja […], mas não somente lá” (p. 146). Tudo está, agora, em sujeição a Cristo (Hebreus 2:5-8); ele já destronou principados e potestades (Colossenses 2:15). Mas nós vivemos em um “ainda não” onde a vitória ainda não é universalmente reconhecida. E é esse tempo, ou seja, entre a cruz e o reino porvir, entre a ascensão e a segunda vinda, entre a extensão universal do seu domínio e o seu reconhecimento universal, que constitui o período que é “o secular”, o saeculum, a era em que nos encontramos. “Dentro da estrutura dessas duas afirmações”, O’Donovan observa, “se abre um espaço de autoridade secular que não presume que o evento-de-Cristo nunca ocorreu ou que a soberania de Cristo seja agora transparente e inconteste” (p. 146). Os governantes terrenos permanecem no seu lugar, mas a sua autoridade se torna uma espécie de autoridade incompleta. Ou melhor, sua autoridade não é definitiva porque agora eles respondem ao Rei dos Reis. “Autoridades seculares não são agora mediadores do governo de Deus em seu sentido pleno. Eles mediam apenas os Seus julgamentos” (p. 151). Não é que autoridades “seculares” tenham autoridade absoluta sobre uma jurisdição limitada; eles tiveram sua autoridade delegada apenas por um tempo (o saeculum).

Algo dessa dinâmica é ilustrada em uma cena de O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei. Chegando a Minas Tirith, Gandalf se aproxima daquele sentado no trono com uma espécie de respeito subversivo: “Todos saúdam Denethor, filho de Ecthelion, Senhor e Regente de Gondor”. Denethor é lembrado por Gandalf de que é um regente do trono, não seu rei por direito. O fato não passa despercebido por Denethor, que entende a presença de Gandalf como uma ameaça ao seu poder e domínio. “Você pensa que os olhos da torre branca estão cegos?”, pergunta Denethor. “Eu vi muito mais do que você pensa. Com sua mão esquerda você me usaria como escudo contra Mordor. Com a mão direita você busca me derrubar. Eu sei quem cavalga com Théoden de Rohan. Ah sim, chegou aos meus ouvidos sobre esse Aragorn, filho de Arathorn. E eu te digo agora, eu não me curvarei a esse andarilho do Norte, o último de uma casa caída, há muito afastada do poder.” O regente de Gondor entende muito bem quem Gandalf representa: ele é um embaixador do rei por direito (Aragorn). E como tal, Gandalf representa um rei que ameaça a demanda de Denethor por lealdade. Assim, Gandalf nunca será um súdito dócil para Denethor, ao contrário, ele é um subversivo. E suas palavras finais lembram Denethor desse fato: “Não lhe foi dada autoridade para negar o retorno do rei, regente.” O resultado, como O’Donovan coloca, é a humilhação dos governantes da terra e a “dessacralização” da política pelo Evangelho (151). O caráter secundário do secular é agora reafirmado de outro modo. Como ele resume, “O estado mais verdadeiramente cristão entende a si mesmo como completamente ‘secular’” (p. 219).

Então nós não transitamos entre as jurisdições de dois reinos; nós vivemos na época do governo contestado, onde os principados e poderes continuam a se agarrar em uma autoridade que foi retirada deles. A igreja é agora o local onde se vê como o governo de Cristo se parece – e será na igreja que as autoridades (os regentes) desse mundo virão para reconhecer seu próprio caráter secundário. Assim, O’Donovan realiza uma análise do “verdadeiro caráter da igreja como sociedade política” (p. 159). É quando falhamos em reconhecer isso – quando “paramos de entender a igreja como uma sociedade governada por ‘outro rei’ (Atos 17.7)” – que a igreja “se acomoda às sociedades políticas existentes como um sistema de prática religiosa que pode florescer dentro delas, uma espécie de agência de serviços […] que coloca a si mesma à disposição de uma multidão de governantes” (p. 162). Ao invés disso, a igreja deveria ser o centro gravitacional político que molda como nós nos relacionamos com as autoridades desta era passageira.

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Por um lado, isso significa relativizar as autoridades “seculares”. Mas, por outro lado, isso também significa que a missão da igreja pode ter um papel aqui. Na proclamação da igreja e em sua incorporação de uma polis na qual Cristo reina, “as nações e governantes da terra são confrontados com o governo de Deus” (p. 193). É a própria missão da igreja que leva isto ao palácio imperial, à mansão do poder executivo e aos salões do capitólio. “A igreja se dirige à sociedade”, observa O’Donovan, “e aos seus governantes. O seu sucesso no primeiro ponto foi a base de sua grande confiança para confrontar o segundo. […] Cristo conquista os governos a partir de baixo, removendo seus súditos de debaixo de sua autoridade” (p. 193).

Cristandade e não constantinianismo

O’Donovan aponta que esse era o projeto da Cristandade: uma empreitada fundamentalmente missional na qual as autoridades reinantes reconhecessem o senhorio de Cristo, reconhecessem que são apenas regentes do rei que há de vir. Mais especificamente, era uma visão de governo e sociedade cativada não meramente pelo reconhecimento de leis “naturais”, mas por um imaginário distintivamente evangélico por submeter-se a Cristo, moldar o perdão, a misericórdia e a compaixão de Jesus, e por refletir as realidades políticas praticadas primeiro na igreja. Assim, O’Donovan nos trás de volta Teodósio: “Ao censurá-lo, a igreja tomou para si a tarefa de julgar juízes e começou o lento trabalho de reformar o critério da justiça terrena” (p. 201) – um trabalho que nós, liberais democratas, herdamos dela.

Isso, é claro, não é o que estamos acostumados a ouvir associado com “Constantinianismo”. Mas, como O’Donovan mostra, a maioria dos exemplos usados pela crítica são, na verdade, exemplos de outra coisa – uma igreja que perdeu seu centro evangelical, missional, e esqueceu como orar “Venha o Teu reino”. Uma vez que a igreja esqueceu que este ainda é o saeculum – uma vez que caiu na armadilha de pensar que o Reino já chegou na configuração da sociedade – o resultado foi uma “colusão negativa”: “a pretensão de que não havia mais nenhum desafio a ser enfrentado pelos governos em nome do Cristo reinante” (p. 213). O nome que O’Donovan dá a esta colusão e esquecimento escatológico é forte: não é “Cristandade”, mas sim “Anticristo” (p. 214). Este é o motivo pelo qual qualquer Cristandade verdadeira deve estar preparada para o martírio tanto quanto deve estar “preparada para receber a homenagem dos reis quando ela é oferecida ao Senhor dos mártires” (p. 215).

Cristandade é, então, uma empreitada missional que se recusa a deixar que a sociedade política permaneça protegida do domínio de Cristo enquanto, ao mesmo tempo, reconhece a distância escatológica entre o Agora e o Ainda-Não. Do centro da igreja como sociedade política, a Cristandade testemunha como a sociedade deveria ser diferente, de maneira que imagina a possibilidade de conversão – não apenas de almas, mas de nossas imaginações políticas. Esta é uma visão de testemunho e engajamento politico que proclama o significado político, não somente da “natureza” ou da “criação”, mas do Evangelho como a revelação que nos mostra como ser verdadeiramente humanos e como o mundo é chamado a ser na ressurreição de Jesus. Assim, a Cristandade carrega o testemunho da especificidade do Evangelho.

Cristandade como amor ao próximo

Esta ousada e escandalosa especificidade é, em última análise, um ato de amor. Aqui podemos conectar a discussão de O’Donovan sobre a Cristandade com um questionamento anterior em Resurrection and Moral Order: O que significa amar o meu próximo? “Em primeiro lugar, devemos amar o próximo porque o próximo é projetado para o amor de Deus” (p. 228).

“A verdadeira fraternidade exige o reconhecimento do bem supremo simplesmente para que possamos ver o próximo pelo que ele é. Mas isso significa que nossa busca pelo bem-estar do próximo deve levar a sério o pensamento de que, como nós mesmos, ele é um ser cujo fim está em Deus. ‘Amá-lo’ sem respeitar essa verdade fundamental sobre ele seria um exercício de fantasia. Santo Agostinho costumava dizer que nosso primeiro dever para com o próximo é ‘confiscá-lo para Deus’. Isto não significa que, como alguns críticos pretendem nos avisar, que cada gesto ou ato de amor direcionado ao próximo deva ter um fim religioso ou um ‘motivo ulterior’. Significa simplesmente que existe, em nosso amor pelo próximo, um reconhecimento do grande chamado e destino dele em estar em união com Deus e um desejo de promover esse destino no contexto de preocupação por seu bem-estar.” (p. 229)

Se nós verdadeiramente amamos o nosso próximo, iremos testemunhar da plenitude para a qual eles são chamados. Se nós verdadeiramente desejamos seu bem-estar, devemos proclamar sobre a abrangência de obrigações morais que Deus exige como dádivas para nos direcionar ao crescimento e trabalhar na esperança de que elas se tornem as leis da terra (ainda que com níveis diferentes de expectativas). Essa é uma ação política que reconhece que o fim natural da humanidade é sobrenatural: que a plenitude do ser humano é esclarecida no Evangelho, e não no minimalismo da “natureza”.

É por isso que eu sugiro que os movimentos de direitos civis são uma espécie de projeto da Cristandade do século 20. Testemunhando da especificidade do Evangelho para amar, informada pela especificidade Cristológica exemplar da não-violência e fomentada pelas práticas da igreja cristã, o movimento dos direitos civis, em seu ímpeto animado, era uma empreitada que se recusava a imaginar que a sociedade era impenetrável ao governo de Cristo. Ao contrário, imaginaram que ela poderia se tornar uma “comunidade de amor”. Como Charles Marsh comenta em sua admirável história do movimento dos direitos civis, “a comunidade de amor”, que eles vislumbraram deveria “ser finalmente descrita como uma dádiva do reino de Deus introduzida na história pela igreja, existindo, assim, a partir da proveniência do mistério de Cristo no mundo.” Foi na igreja nutrida pelo Verbo que se fez carne e com a imaginação alimentada pelo Evangelho que eles aprenderam a ansiar por uma pátria melhor (Hebreus 11.16), mas também a imaginar que esta pátria poderia ser mais parecida com ela.

Traduzido por Bruno Mori Porreca e revisado por Maria Gabriela Pileggi.

Texto original: Rethinking the Secular, Redeeming Christendom. Este artigo foi publicado em 2 de abril de 2015 na revista “Comment”, uma publicação da CARDUS: www.cardus.ca.

James K. A. Smith (PhD, Villanova University) é professor de Filosofia na Calvin College, onde também ocupa a cátedra Gary e Henrietta Byker de Teologia e Cosmovisão Reformadas Aplicadas. É editor da revista Comment, além de autor e organizador de vários livros, entre eles 'Você é aquilo que ama' e 'Desejando o Reino', publicados por Vida Nova.

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