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09/maio/2016Poucos livros causaram uma impressão duradoura em minha mente e em meu pensamento. Um deles li há mais de cinquenta anos e o título era “The Metaphysical Foundations of Modern Science” (“Os Fundamentos Metafísicos da Ciência Moderna”). Fiquei impactado, porque estabelecia a importância de se entender que todas as teorias científicas pressupõem certas premissas filosóficas. As premissas filosóficas, que são os alicerces da investigação científica, frequentemente não são questionadas e nunca são, sequer, submetidas a uma análise superficial. Porém, em uma época em que debates acirrados são travados entre ciência e teologia, é importante que recuemos e questionemos os fundamentos pré-científicos para todo empreendimento do saber.
A palavra “ciência” significa conhecimento. Temos a tendência de ter uma visão restrita desta palavra, como se o conhecimento se aplicasse apenas ao campo da investigação empírica. Além do conhecimento material, também precisamos considerar a verdade formal. Nesse aspecto, trataríamos a matemática como uma ciência genuína, uma vez que, em sua dimensão formal, produz conhecimento real. Na verdade, se olharmos para a história do progresso científico, veremos que a força que tem conduzido novos avanços e paradigmas, tem sido, com maior frequência, a força da matemática formal. Porém, é surpreendente ver como as pessoas que estão engajadas com a pesquisa científica material, por vezes, ignoram as pressuposições filosóficas de seus próprios trabalhos.
No famoso livro “Cosmos”, de Carl Sagan, baseado na série televisiva com o mesmo nome, o autor faz a seguinte declaração: “Cosmos é uma palavra grega que indica a ordem do universo. De certa forma, é o oposto de caos. Ela implica a profunda interligação existente em todas as coisas”. Nessa definição aparentemente inofensiva de toda estrutura da obra de Sagan, ele presume que o universo sob investigação da ciência é um cosmos, ao invés de um caos. Ele afirma que a palavra “cosmos” envolve uma profunda interligação de todas as coisas. Esse é o maior pressuposto da investigação científica, ou seja, que o universo que buscamos conhecer é coerente. Há uma interligação implícita e profunda de todas as coisas. A alternativa para o cosmos, como Sagan indicou, é o caos. Se, no fundo, o universo é caótico, então todo o empreendimento científico entra em colapso. Se o universo é caótico e desconexo, então, nenhum conhecimento é possível. Até mesmo as menores unidades de informação atômica não podem ser compreendidas dentro de uma estrutura de completo caos. Assim, o pressuposto de uma ordem coerente e racional existente em todas as coisas é explícito entre os cientistas.
Essa ideia de coerência presumida possui suas raízes na antiga investigação filosófica. Os gregos antigos, por exemplo, buscavam a realidade última, um princípio fundacional para a unidade que faria sentido a partir da diversidade. Essa unidade última é o que a ciência da teologia fornece. Ela fornece o pressuposto para a ciência moderna. Esse é, precisamente, o motivo que levou o proeminente filósofo Antony Flew a converter-se de seu ateísmo para o deísmo – a necessidade essencial de um fundamento coerente para a realidade, a fim de que qualquer conhecimento seja possível. Essa coerência última não pode ser fornecida pela contingência deste mundo. Isso requer uma ordem transcendente.
Na Idade Média, aconteceu uma crise no campo da filosofia por conta do renascimento daquilo que os pensadores muçulmanos chamaram de “aristotelismo integral”. Na tentativa de alcançarem uma síntese entre filosofia aristotélica e teologia muçulmana, esses pensadores produziram um conceito chamado de “teoria da dupla verdade”. Essa teoria argumentava que o que era verdade na religião, poderia ser falso na ciência e o que era verdade na ciência poderia, ao mesmo tempo, ser falso na religião. Para traduzirmos isso a categorias contemporâneas, a ideia seria algo do tipo: como cristão, alguém poderia acreditar que o universo veio à existência por meio de um ato orientado de um Criador divino e, ao mesmo tempo, acreditar que ele emergiu de maneira gratuita como um acidente cósmico. Essas duas verdades examinadas pela lógica aparentariam ser contraditórias. Contudo, a teoria da dupla verdade afirmaria que a verdade é contraditória e que alguém poderia manter essas ideias contraditórias ao mesmo tempo. Esse tipo de esquizofrenia intelectual impera em nossa época, onde as pessoas, de segunda a sexta-feira, acreditam que Deus não teve nada que ver com a formação do cosmos e no domingo tornam-se criacionistas. Falham em perceber que os dois conceitos são totalmente irreconciliáveis.
A essa altura, surge a pergunta: “A lógica realmente deve ser levada em conta em nossa tentativa de entender a realidade?” Novamente, se vamos presumir que o cosmos é coerente, a lógica deve ser levada em conta não apenas para algo, mas para tudo. Tomás de Aquino respondeu ao aristotelismo dos filósofos muçulmanos medievais substituindo duplas verdades com o conceito de artigos mistos, distinguindo natureza e graça (não as dividindo, como muitos de seus críticos alegam). Aquino disse que existem verdades que podem ser conhecidas por meio da revelação especial que não são discernidas a partir da investigação do mundo natural. Ao mesmo tempo, existem verdades aprendidas a partir do estudo da natureza que não são encontradas na Bíblia, por exemplo. Não se pode encontrar a noção de sistema circulatório do corpo humano claramente estabelecida nas Escrituras. O que Aquino estava dizendo é que existem verdades que são artigos mistos, que podem ser conhecidas a partir da Bíblia, ou pelo estudo da natureza. Entre esses artigos, ele incluiu o conhecimento da existência de um Criador.
O ponto fundamental, é claro, é que Aquino estava argumentando, em consonância com seu famoso predecessor, Agostinho, que toda verdade é a verdade de Deus e que toda verdade se encontra em um nível superior. Se a ciência contradiz a religião ou se a religião contradiz a ciência, pelo menos uma delas deve estar errada. Houve épocas na história em que a comunidade científica corrigiu não a Bíblia, mas as interpretações pobres dela, como vemos no caso do escândalo envolvendo Galileu. Por outro lado, a revelação bíblica pode agir como freios intelectuais sobre teorias científicas que estão despidas de fundamento. De qualquer forma, se o conhecimento é possível, o que Sagan pressupôs deve continuar sendo pressuposto, ou seja, para que a verdade seja conhecida e a ciência seja possível, deve haver uma realidade coerente que estamos buscando conhecer.
Traduzido por Jonathan Silveira e revisado por Priscila Slobodticov.
Texto original: All Truth is God’s Truth. Ligonier Ministries.
R. C. Sproul (1939-2017) foi pastor da igreja St. Andrews Chapel, em Sanford, Flórida, fundador e presidente do ministério Ligonier, professor e autor de diversos livros. |
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- Toda verdade é a verdade de Deus
Começando com antigos pensadores gregos como Platão e Aristóteles, passando por filósofos cristãos como Agostinho e Tomás de Aquino, e chegando aos formadores do pensamento moderno como Kant e Nietzsche, R. C. Sproul apresenta-nos o gigantesco impacto que as ideias desses e de outros pensadores exerceram e exercem sobre os fatos, as artes, a cultura e a teologia no mundo em que vivemos, além das consequências que elas têm sobre a nossa vida no dia a dia. Ao fazer uma exposição de conceitos básicos da filosofia, o propósito deste livro é mostrar que quanto maior for o conhecimento que o cristão tem das ideias que deram forma à nossa cultura, maior será sua capacidade de entender e influenciar o contexto no qual está inserido. Publicado por Edições Vida Nova. |
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