Onde Adão está no começo da história humana, vemos Jesus Cristo. Ele é o Filho, portador da imagem de seu Pai. Ele vence na tentação, e sua Filiação é comprovada pela obediência. A mentira de Satanás é extraordinariamente refutada por ele. A serpente tinha dito a Adão e Eva: “Vocês serão como Deus” (Gn 3.5). Eles creram naquela mentira e assim retornaram ao pó do qual vieram. Longe de experimentar a glória com o fruto proibido, o primeiro casal experimentou medo e vergonha.
Mas em Jesus a promessa da criação do homem à imagem de Deus recebe o cumprimento da glória celestial. Foi a vontade de Deus desde o início que o homem fosse como Deus, não em rebeldia, mas em união com a Filiação de Cristo. A criação do homem à imagem de Deus não somente tornou a encarnação possível; foi o próprio plano de Deus de acordo com o seu propósito da encarnação. A criação de Adão, a formação de Eva, o teste no jardim — tudo nos prepara para Jesus Cristo.
Não sabemos de que maneira Deus teria manifestado sua imagem no homem por meio de Cristo se Adão e Eva não tivessem desobedecido. Certamente Adão, como filho obediente, teria sido levado a conhecer o Filho amado. Mas sabemos que o pecado humano não frustrou o plano de Deus. Na verdade, o triunfo de Deus por meio de Cristo sobre o pecado é tão glorioso que somos levados a concluir que, sem o pecado, um amor e uma misericórdia tão maravilhosos no coração de Deus nunca poderiam ter sido manifestados. Podemos quase concordar com Agostinho, que exclamou: “Felix culpa!” (Transgressão venturosa!). A maravilha da vitória de Deus em Cristo sobre o pecado manifestou-se imediatamente depois da Queda. Adão e Eva estavam envergonhados diante de Deus e um diante do outro. Eles juntaram folhas de árvores como um anteparo para tentar esconder sua sexualidade um do outro e seu ser da presença de Deus. Mas a obra de suas mãos não podia restaurar a unidade que haviam desfrutado um com o outro, nem podia protegê-los do juízo de Deus. Deus os buscou no jardim e eles precisaram responder à convocação de sua voz.
Uma cena de julgamento foi instituída. Deus inquiriu a respeito de sua transgressão. Mas então eles buscaram refúgio atrás de outro anteparo frágil: as desculpas por meio das quais podiam transferir a culpa. Adão culpou Eva, tornando-se seu acusador, em vez de seu defensor. No processo também culpou Deus: “A mulher que colocaste aqui comigo — ela me deu do fruto da árvore, e eu comi” (Gn 3.12). Eva, por sua vez, culpou a serpente: “A serpente me enganou, e eu comi” (Gn 3.13). O que caracterizou a resposta dos pecadores no Éden não foi arrependimento, mas medo e fuga. O Juiz, tendo averiguado o caso, pronunciou sua sentença. Ele começou com a serpente, a quem o testemunho de Eva apontava; depois julgou Eva e, por fim, Adão.
O que chama a atenção no julgamento de Deus é seu comedimento e misericórdia. A pena pela desobediência era a morte, mas Adão e Eva não caíram mortos ao pé da árvore. A pena efetivamente seria aplicada: “Você é pó, e ao pó voltará” (Gn 3.19). Mas antes dessa sentença terrível o Senhor pronunciou palavras de esperança.
A serpente foi julgada antes de Eva e de Adão, e o julgamento da serpente mudou tudo. Deus inverteria o quadro. Embora Eva tinha se tornado amiga de Satanás e inimiga de Deus, Deus reverteria a situação. Ele colocaria a inimizade não entre Deus e o homem, mas entre o homem e Satanás. A soberania da palavra de Deus brilha por meio da promessa. Expressa no tempo futuro, ainda assim é a palavra do poder de Deus, do Deus que pode dar vida aos mortos e chamar à existência coisas que não existem, como se existissem (Rm 4.17).
De modo específico, a mulher e a descendência dela foram feitas inimigas de Satanás por meio das gerações de conflito que se seguiriam. Não Adão, mas o futuro descendente dele seria o Inimigo de Satanás. Os termos do oráculo não tornam claro se a semente prometida da mulher seria seu primeiro filho ou uma longa linhagem de seus descendentes. Adão parece ter entendido que a promessa de Deus implicava o cumprimento da ordem de povoar a terra, pois deu à sua mulher o nome de Eva, “vivente”, como a mãe de todos os viventes (Gn 3.20). Esse nome está em contraste com a sentença de morte que Deus havia pronunciado, mas não foi dado em desafio a Deus, mas em afirmação da promessa divina. Eva também falou pela fé quando seu primeiro filho nasceu: ela deu à luz um homem com o auxílio do Senhor. (A afirmação de Gênesis 4.1 poderia ser traduzida: “Eu dei à luz um homem: o Senhor”.)
A promessa de Deus foi além de uma declaração de inimizade entre a semente da mulher e a descendência da serpente. Haveria um desfecho decisivo: a cabeça da serpente seria esmagada, e o calcanhar do homem seria ferido. A figura se encaixa com a maldição proferida sobre a serpente; ela corresponde à aversão do homem a cobras peçonhentas. Mas, assim como a serpente não é meramente um animal do Jardim do Éden, mas porta-voz de Satanás, assim também o juízo aponta além da experiência do homem com picadas de cobras para o cumprimento final dessa profecia: o conflito e a vitória em que o Filho da mulher sofreria, mas a serpente seria esmagada.
Paulo sustenta essa interpretação quando escreve aos cristãos romanos: “O Deus da paz em breve esmagará Satanás debaixo dos pés de vocês” (Rm 16.20). A vitória de Cristo sobre Satanás trará vitória ao povo de Deus: os planos de Satanás serão totalmente frustrados. João relata as palavras de Jesus às vésperas do Calvário: “Chegou a hora de julgar este mundo; agora o príncipe deste mundo será expulso” ( Jo 12.31). Paulo se alegra com o triunfo de Deus na cruz sobre todos os “principados e potestades”, as forças demoníacas do reino de Satanás (Cl 2.15, KJV).
A ironia suprema do Calvário é que a aparente vitória de Satanás foi sua derrota. O livro de Apocalipse retrata Satanás não meramente como uma serpente, mas como um grande dragão vermelho em pé diante da mulher que está prestes a dar à luz, “para devorar seu filho no momento em que nascesse” (Ap 12.4). Embora o propósito de Satanás tenha sido derrotado quando Jesus escapou da matança dos meninos de Belém, Satanás pareceu alcançar seu propósito no Gólgota. Ao som da zombaria inspirada por Satanás, Jesus estava pendurado na cruz, em aparente impotência, e ali morreu.
Mas Jesus não somente foi ressuscitado dos mortos e exaltado à direita de Deus (Ap 12.5; At 2.32,33); ele foi vitorioso em sua própria morte. Foi sua morte que expiou o pecado, cumpriu as exigências da Lei e trouxe salvação aos pecadores. Por intermédio da morte de Cristo, Deus desarmou os principados e poderes, triunfando sobre eles na cruz (Cl 2.15). À sombra da cruz, Jesus podia dizer: “Agora é o julgamento deste mundo: agora o príncipe deste mundo será expulso” ( Jo 12.31, KJV).
Jesus triunfou por sua vida bem como por sua morte. Ele cumpriu o chamado que havia sido feito a Adão. A ordem para Adão e Eva era terem domínio sobre a terra. O domínio de Adão é exercido agora por Cristo. Como ocorre com frequência na obra de salvação, o cumprimento em muito supera as expectativas despertadas pela promessa. Cristo exerce um domínio muito maior do que o que foi dado a Adão. Ele é Senhor não só deste planeta, mas do cosmo.
O senhorio de Cristo é exercido de um modo direto e imediato que reflete seu poder divino, bem como sua autoridade como segundo Adão. Ele pode ordenar o vento e o mar, e eles lhe obedecem. Peixes enchem as redes atendendo à sua ordem; água se torna vinho; um pão em suas mãos alimenta milhares de pessoas. Como Jesus não emprega meios tecnológicos para manifestar seu domínio sobre a criação, podemos deixar de perceber a amplitude de seu domínio. Podemos ficar maravilhados com as conquistas técnicas do homem sobre o mar e sobre o ar, mas ninguém é capaz de andar sobre a água como Jesus andou, muito menos ascender ao trono do Pai.
Jesus também realiza a ordem dada a Adão para encher a terra. Paulo usa os termos encher e dominar para retratar o senhorio atual de Jesus Cristo (Ef 1.20-23; 4.10). Jesus não vem simplesmente para resgatar o homem das profundezes de sua perda. Ele vem realizar para nós o chamado de nossa humanidade. Seu é o domínio perfeito e derradeiro do homem sobre o cosmo. Ele, o segundo Adão, pode dizer: “Aqui estou, e os filhos que Deus me deu” (Hb 2.13; Is 8.18).
Uma grande multidão que ninguém pode contar, de todas as tribos e todos os povos, está reunida em nome de Jesus. Aquele que enche todas as coisas com o seu poder reuniu a plenitude de Israel e a plenitude das nações no dia de sua glória (Rm 11.12,25; Ap 7.9). Sua realização do chamado de Adão não torna o nosso serviço inútil. Pelo contrário, somente porque ele cumpriu o chamado do homem, o nosso trabalho pode ser significativo, pois nossa comunhão é com ele. Sua vitória é a nossa esperança. Com humildade, não arrogância, recebemos do Senhor vitorioso um chamado renovado para fazer sua vontade a este mundo.
Trecho extraído e adaptado da obra “Encontrando Cristo no Antigo Testamento“, do autor Edmund Clowney, publicado por Vida Nova: São Paulo, 2023, p. 39-43. Publicado no site Cruciforme com permissão.
Edmund Clowney (1917-2005) foi professor emérito de Teologia Prática no Westminster Theological Seminary, na Filadélfia, onde serviu durante mais de trinta anos, dezesseis dos quais como reitor. Clowney foi pastor ordenado pela Igreja Presbiteriana Ortodoxa e autor de vários livros, entre eles, How Jesus Transforms the Ten Commandments, concluído pouco antes de sua morte, em 2005, e Pregando Cristo em toda a Escritura, publicado por Vida Nova. Foi casado com Jean Granger Wright com quem teve cinco filhos. |