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Em um pobre e violento bairro de Nova York, ironicamente chamado de “Cozinha do Inferno” (Hell’s Kitchen), vive um homem que, devido a um acidente com produtos radioativos que sofrera em sua infância, já não mais possui sua visão. Todavia, o que parecia uma lamentável tragédia, na realidade o concedeu habilidades especiais. Através do aumento exponencial de cada um dos seus sentidos remanescentes, Matthew Murdock ganhou habilidades que passaram a permitir que ele percebesse a realidade de uma forma única. Com seus sentidos ampliados, visando fazer jus aos princípios legados por seu falecido pai, Murdock resolveu fazer a diferença em sua vizinhança e promover a justiça. Esta é, então, a conhecida origem do herói Demolidor, o homem sem medo. Em uma das sagas do herói, publicada aqui no Brasil com o título “A queda de Murdock”[1] o leitor é conduzido por uma história intrigante e devastadora que retrata um dos maiores desafios já enfrentados pelo herói. A narrativa contém camadas que possibilitam as mais diversas interpretações, principalmente pelo forte teor crítico social que Miller costumeiramente carrega em suas obras.
No universo dos quadrinhos as estruturas geralmente seguem um desenvolvimento típico, onde os problemas gradativamente dão lugar ao épico desfecho da trama. Em “A queda de Murdock” o roteiro abandona as convenções e entrega um drama sombrio e profundamente calcado na realidade, não tanto pelas circunstâncias, mas pela forma com a qual o protagonista lida com o sofrimento. Basicamente, após ter sua identidade secreta revelada por sua ex-namorada, Matt Murdock passa a sofrer as consequências de um cruel golpe aplicado pelo seu arqui-inimigo, o deplorável Rei do Crime.
Desde a infância Matthew Murdock fornece exemplificações de diversos aspectos da providência divina. Embora tenha sido vítima de um terrível acidente e perdido sua visão, novas e extraordinárias habilidades permitiram que o jovem Murdock se desenvolvesse e, então, alcançasse uma percepção que o tornara capaz de “enxergar” com todos os seus outros sentidos. Porém, em “A queda de Murdock” sua sensibilidade não se demonstrou suficiente para transpor os desafios a ele impostos. O Rei do Crime, que literalmente chefia todas as atividades criminosas da Nova York fictícia do universo Marvel, arquiteta uma cadeia de eventos que acabam por despir por completo seu grande rival, o destemido Demolidor/Murdock. Sem emprego, renda, teto e amigos, Matthew passa por boa parte da trama se refugiando em sua única fonte de consolo e esperança, a presença de uma freira que desde sua infância se apresentava a ele como a encarnação da fé. O mal que Matt sofrera na infância redundou em bem e justiça, através das suas atividades heroicas como Demolidor. Matthew Murdock lutou contra a escuridão na qual dia após dia sucumbia a comunidade ao seu redor.
A emblemática figura da freira, que acompanha integralmente os passos de Matt dos momentos que ele experimenta no hospital, após o acidente sofrido na infância, aos penosos dias nas mãos da vilania inescrupulosa do Rei do Crime, serve ao perspicaz roteiro de Miller como um lembrete constante da insuficiência do destemido herói. Enquanto o Rei do Crime age imerso em arrogância, como se o poder a sua disposição fosse suficiente para controlar todas as tramas da realidade que o cercam, Matthew Murdock, o Demolidor, é constantemente lembrado que existe um ser que permanece atuando eficazmente na condução de cada fase da sua vida, da sua comunidade, e o do universo[2].
Matthew Murdock e Jó
É possível enxergar um paralelo entre o sofrimento do herói Demolidor, e o sofrimento de Jó. Ambos se percebem destituídos dos bens que antes lhes eram tão fortúnios, enfrentam um sofrimento intenso e acabam por questionar o propósito de todas as devastadoras aflições. Jó termina reconhecendo que Deus é aquele que “pode fazer todas as coisas; nenhum dos [seus] planos pode ser frustrado” (Jó 42:2). Demolidor, por sua vez, termina reconhecendo ser tão ordinário quanto qualquer outro e merecedor de cada um dos infortúnios por ele sofridos. A questão patente em tais similaridades consiste no fato de que é perfeitamente possível enxergar em “A queda de Murdock” a presença divina, muitas vezes encarnada na personificação da fé através da emblemática personagem da freira governando a vida do herói por caminhos que projetam nele uma nova percepção. Desde o início, através de detalhes que pulsam aos olhos mais atentos, é possível perceber que, à medida que os conflitos crescem frente ao protagonista, notório se torna o fato de que Murdock avança em concluir que não cabe a ele desejar que, como diz Agostinho, “todas essas coisas não existissem”[3].
O papel da providência divina
Um grande desafio da doutrina da providência se encontra na incapacidade humana de justificar determinadas circunstâncias, ou até mesmo compreendê-las enquanto governadas por Deus. A fé ilumina o caminho e alimenta a razão para a desafiadora experiência de existir. É simples quando o propósito para a dor se apresenta no fim da história como um belo desfecho fabuloso. O que impõe agrura à experiência é quando a dor não encontra sua justa causa no tempo até então experimentado. Matthew Murdock, em um clímax de aflição, chega a experienciar seus sentidos que, outrora lhe serviam enquanto dádivas, como uma maldição que lhe pesa enquanto intensifica cada uma das suas dores, e pragueja lamentos como “a quem o destino deu o dom de ouvir, cheirar e tatear melhor do que ninguém… [hoje lhe permite] apreciar melhor o horror de estar vivo”[4].
Para os desafios identificados com a providência, não há uma escapatória que atribua poder ao acaso. John Owen (1850-1855) chega a afirmar que Deus está no controle até mesmo quando “o ferro de um machado se solta do cabo, voa e mata alguém”. E é justamente por isso que, Owen prossegue: “entender como Deus age (…) está além da capacidade de seres mortais[5]”. Mas como poderia então haver tamanho conforto em bradar afirmações tão desafiadoras como as de Owen? Apenas através da fé, pois a providência de Deus tem como uma das suas principais finalidades assegurar a salvação daqueles que creem e se submetem ao senhorio de Cristo[6]. Por isso, por mais terrível que sejam a manifestação de catástrofes, acidentes e as mais perturbadoras faces da morte, há consolo na convicção de que Deus é quem “nos alimenta como o mais fiel chefe de família”[7]. Por isso, maior do que cada golpe sofrido, Matthew Murdock enfrenta o desafio de se lembrar como é a caminhada possibilitada pela fé.
Após sofrer o golpe final aplicado pelo Rei do Crime, Murdock experimenta a morte do seu espírito de valentia e autossuficiência. Então, ao ser resgatado pela emblemática freira, reencontrando a fé que anos atrás o ensinou a caminhar com novos passos, Murdock recupera o vigor para mais uma vez voltar ao combate. Destemido pela crença que alicerça seus princípios, o Demolidor agora já não se deixa conduzir pelo medo, pelo terror de experimentar o sofrimento, mas caminha confiante pois, sua queda que antes parecia o fim, dá lugar a ascensão garantida pela fé que o restaurou, curando-o externamente e remodelando a sua percepção. O mais notável é perceber que cada etapa da queda e ascensão de Murdock são guiadas por fatores externos, pelas formas da providência. Sua namorada o entrega e lhe imputa a condenação nas mãos do seu mais odioso inimigo, ao passo que seus amigos todos se afastam e o impelem a se recolher em solidão. Mas, simultaneamente, um repórter investiga todos os acontecimentos que arrasam a vida de Murdock e avança para revelar toda a verdade. No fim, a grande batalha final que, geralmente serve para destacar os méritos do protagonista, fica a cargo do icônico Capitão América.
Murdock herda a queda por meio da sua namorada que, por um vício, troca a identidade secreta do grande Demolidor para alimentar sua compulsão. Sendo que, na sequência da história, ele é salvo pela mesma freira que lhe garantiu cuidado na infância logo após seu acidente, e encontra consolo na figura do mito heroico que lhe concede a oportunidade de descansar e desfrutar a paz. Todos os caminhos o levam a afirmar no fim que, apesar da sua formidável atuação enquanto herói, o que basta saber sobre ele é sua humanidade, seu empenho em prosseguir. No final, Murdock compreende que suas virtudes são dons a ele conferidos e então passa a perceber novamente o lugar que lhe é devido.
Crescimento nos caminhos da providência
Matthew Murdock fora capaz de se desenvolver mesmo em meio aos mais terríveis desafios e, da mesma forma, é possível que o cristão encontre alimento para crescimento nos caminhos, muitas vezes incompreensíveis, da providência divina. Para isso, se faz necessário um exercício de percepção. Agostinho descreveu tal exercício quando relatou em suas confissões a experiência do seu primeiro contemplar a Deus:
E, quando te conheci pela primeira vez, tu me levantaste para que visse que o que via era, e que eu, o vidente, ainda não era. E golpeaste com força, irradiando em mim, a debilidade do meu olhar (…) e reconheci que educaste o homem pela sua iniquidade e fizeste minha alma se desfazer como uma teia de aranha[8].
Para Agostinho, a experiência contemplativa serviu como âncora na qual firmou sua esperança, e também como um deslumbrante sinal que atesta a soberania do único que é descrito como Aquele que É[9]. Cabe a todo cristão a busca por este mesmo movimento, e como um dos resultados, se encontrará também a certeza de que, como diz Tish Harrison Warren, “Deus está trabalhando em nós e através de nós enquanto experimentamos os ritmos do cotidiano”[10].
Existe para a compreensão humana um desafio de experimentar as doces expressões da providência, contudo há saída nos alicerces da fé. Até mesmo dirigindo o olhar para uma história em quadrinhos é possível perceber diretrizes para a lida com as duras controvérsias provadas na experiência humana. É possível ler que o o personagem Matthew Murdock renasceu após a dádiva da fé e encontrou contentamento no cotidiano, pois as expressões fantásticas da sua hipersensibilidade o conduziu a perceber que, mais importante que seus atos heroicos como o Demolidor, é o desenvolvimento dos afetos, na obra expresso em seus relacionamentos cotidianos. Da mesma forma, o cristão deve buscar ter seu olhar moldado pela realidade da existência presente do ser de Deus. A fé não se trata de um mero salto no escuro, mas se alicerça nos motivos auxiliares da esperança cristã, neste caso, a certeza da existência e presença de Deus, que é aquele que nos ampara e provê. Conforme argumenta Francis Schaeffer:
A fé do cristianismo histórico não é sinônima de salto de fé, pelo simples fato de que ele [Deus] não está em silêncio, e eu sou convidado a fazer perguntas adequadas e suficientes, não apenas relativas a detalhes (…). Sou convidado a fazer perguntas adequadas e suficientes e depois acreditar nele e curvar-me metafisicamente diante dele, ao ter a certeza que existo, porque ele fez o homem, e curvar-me diante dele, como alguém que sabe que precisa desesperadamente da sua providência.[11]
Talvez seja um tanto desafiador pensar em termos de contentamento e espera em meio aos mais perturbadores percalços que a vida pode vir a apresentar, mas é vital que o cristão exercite repousar sua memória no que fora conquistado. Desse modo, a memória despertará o gosto da vitória passada no calvário e, magistralmente, guiará a visão para as maravilhas projetadas no futuro. Tal como em toda bela história, é comum que o fim repleto de boas resoluções seja aguardado, e experimentá-lo é deveras gratificante para o leitor. Por isso, para que seja possível provar o sabor de uma vida que pulsa com alegria que vem de um coração que sabe que no fim dos dias repousa um belo final feliz, é preciso pedir que Deus permita ser conhecido tal como nos conhece, pois, deste modo, como diz Agostinho, será possível perceber que “o resto da vida é tão menos deplorável quanto mais o deploramos, e tanto mais deplorável quanto menos o deploramos.”[12]
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[1] MILLER, F. A queda de Murdock. 1ª. ed. São Paulo: Panini Comics, 1985.
[2] FERREIRA, F; MYATT, A. Teologia Sistemática: uma análise histórica, bíblica e apologética para o contexto atual. 1ª ed. São Paulo: Vida Nova, 2007.
[3] AGOSTINHO, S. Confissões. 1ª. ed. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2017, p. 187.
[4] MILLER, F. A queda de Murdock. 1ª. ed. São Paulo: Panini Comics, 1985, p. 35.
[5] Apud BEEKE, J; JONES, M. Teologia Puritana. 1ª ed. São Paulo: Vida Nova, 2016, p. 253.
[6] FERREIRA, F; MYATT, A. Teologia Sistemática: uma análise histórica, bíblica e apologética para o contexto atual. 1ª ed. São Paulo: Vida Nova, 2007.
[7] CALVINO, J. A instituição da religião cristã – Tomo 1. 1ª. ed. São Paulo: Unesp, 2008, p. 192.
[8] AGOSTINHO, S. Confissões. 1ª. ed. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2017, p. 185.
[9] Ibidem.
[10] WARREN, T. Liturgia do ordinário. 1ª. ed. Brasília: The Pilgrim, 2019, p. 163.
[11] SCHAEFFER, F. O Deus que se revela. 3ª ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2017, p. 138.
[12] AGOSTINHO, S. Confissões. 1ª. ed. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2017, p. 254.
Marcelo Pantoja é aluno do Seminário Martin Bucer e graduando em Ciências Econômicas pela Universidade Federal de Ouro Preto. Apaixonado por cinema, quadrinhos e literatura ficcional. Escreveu alguns ensaios para o Site Folkdaworld. Serve como seminarista na Igreja Batista Histórica, em Conselheiro Lafaiete - MG. |
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