Voltando no tempo: o grande pergaminho de Isaías | Kim Phillips

Três sinais do verdadeiro cristão | Kevin DeYoung
27/jan/2025
Três sinais do verdadeiro cristão | Kevin DeYoung
27/jan/2025

Photographs by Ardon Bar Hama, author of original document is unknown, Public domain, via Wikimedia Commons

Kim Phillips discorre sobre o Grande Rolo de Isaías, a mais antiga cópia que temos do texto hebraico completo de Isaías e um dos mais importantes Manuscritos do Mar Morto. Ele explica o significado de sua descoberta em 1947 e o que ele nos diz sobre a precisão dos escribas que copiaram manuscritos ao longo dos anos.

Falem seu discurso, eu lhes peço, como eu o pronunciei para vocês, sem atropelar as palavras. – Hamlet

As línguas mudam

Qualquer um que tente ler Shakespeare percebe que as línguas mudam com o tempo. Palavras que antes eram comuns caem em desuso e são substituídas por outras. A maneira de construir as frases muda com o passar do tempo. A ortografia muda. A pronúncia muda. Sinto muito, Hamlet.

Tudo isso vale para a língua hebraica tanto quanto para qualquer outra. Curiosamente, esse fato é um excelente ponto de partida para este artigo de Artefato em Foco sobre o Grande Rolo de Isaías.

Em 1947, teve lugar um dos mais importantes achados manuscritos da história: a descoberta dos primeiros Manuscritos do Mar Morto. Em uma caverna no deserto da Judeia, pastores beduínos encontraram potes de barro contendo sete rolos de pergaminho. Um desses pergaminhos era uma cópia quase completa do Livro de Isaías. Atualmente, ele é conhecido por seu rótulo técnico 1QIsaa ou por seu nome mais descritivo: “O Grande Rolo de Isaías”. O pergaminho está guardado no Santuário do Livro, em Jerusalém.

Usando uma combinação de datação por radiocarbono e análise de caligrafia, os estudiosos conseguiram datar o Grande Rolo de Isaías por volta de 125 a.C. Isso significa que o Grande Rolo de Isaías é a nossa cópia mais antiga do texto hebraico completo de Isaías — por uma diferença de cerca de 1000 anos! Só por volta do ano 900 d.C. é que temos outros manuscritos hebraicos contendo o livro de Isaías (a chamada versão massorética do texto hebraico).

A primeira reação dos estudiosos ao examinarem o Grande Rolo de Isaías foi de espanto com a semelhança do texto com o de Isaías encontrado nos manuscritos hebraicos medievais. O texto do Livro de Isaías foi preservado com notável fidelidade desde os séculos antes de Cristo até a Idade Média.

No entanto, após uma inspeção mais detalhada, chegou-se a uma conclusão ainda mais notável: o texto de Isaías, como o lemos nos códices hebraicos medievais, é, de fato, mais antigo — às vezes muito mais antigo — do que o texto de Isaías encontrado no Grande Rolo de Isaías. Isso requer alguma explicação, e precisamos começar nos colocando no lugar dos escribas que copiaram o Grande Rolo de Isaías.

O que um escriba deve fazer?

Isaías entregou muitas de suas profecias em torno do ano crítico de 701 a.C., mas os escribas por trás do Grande Rolo de Isaías trabalharam quase 600 anos mais tarde. Esses escribas teriam falado um hebraico muito diferente, se comparado ao de Isaías — sem mencionar o fato de que provavelmente também falavam aramaico e grego. Certas palavras ditas pelo profeta Isaías teriam soado muito estranhas para esses escribas. Algumas delas eles podem nem ter reconhecido. Muitas grafias teriam parecido estranhas para eles, da mesma forma que muitas grafias de Shakespeare nos parecem estranhas.

Em circunstâncias como essas, os escribas têm duas opções: ou tentam permanecer fiéis ao texto e ao vocabulário como foram originalmente falados, ou optam por atualizar o linguajar e a ortografia para tornar o texto mais compreensível para um leitor contemporâneo. Normalmente, a situação é ainda mais complicada. Mesmo procurando manter as características arcaicas de um texto, o escriba pode inadvertidamente escorregar e atualizar subconscientemente o idioma em algumas partes. Por outro lado, um escriba que se sinta livre para atualizar o idioma e a ortografia ainda pode sentir a responsabilidade de manter alguns aspectos do estilo antiquado.

As duas tendências, de “atualização” e de “preservação”, são claramente vistas no Grande Rolo de Isaías, e isso é extremamente significativo. Vejamos alguns exemplos.

Qual é o “r” da questão?

Vamos começar com um nome de lugar. Na antiguidade, o nome Damasco era escrito de duas maneiras principais: com um “r”: דרמשק (drmsq) ou sem um “r”: דמשק (dmsq).

A ortografia sem o “r” é a mais antiga. Em documentos acadianos, egípcios, hebraicos e aramaicos que datam de cerca de 1500 a.C. a 500 a.C., o nome do lugar é sempre escrito “dmsq”. Somente em documentos posteriores o nome começa a ser escrito com um “r”. Por exemplo, no livro de Crônicas, um dos mais recentes livros bíblicos, o nome começa a ser soletrado דרמשק (“drmsq”). No hebraico rabínico dos primeiros séculos cristãos, o nome é quase sempre escrito com um “r”.

No Grande Rolo de Isaías, o nome do lugar “Damasco” é sistematicamente escrito דרמשק (“drmsq”). Isso não é nenhuma grande surpresa: em 700 a.C., o profeta Isaías teria chamado o lugar de “dmsq” (sem “r”). No entanto, 600 anos depois, os escribas que copiaram o Grande Rolo de Isaías chamavam o lugar de “drmsq” e por isso copiaram o nome acrescentando um “r”.

 

                         Isaías 7:8 no Grande Rolo de Isaías: “A capital da Síria é Darmasco, e o cabeça de Darmasco…”

Muito mais surpreendente é o fato de que, no Texto Massorético medieval de Isaías, o nome do lugar “Damasco” é sistematicamente escrito דמשק (“dmsq”) — a forma antiga do nome, sem “r”, como o próprio Isaías costumava pronunciá-lo! Isso é bem impressionante: a forma mais antiga do nome do lugar é preservada no Texto Massorético de cerca de 900 d.C., enquanto a forma mais recente do nome do lugar é usada no Grande Rolo de Isaías, de 125 a.C.

 

Isaías 7:8 no Códice de Alepo (aproximadamente 930 d.C.). Não há “r” em Damasco!

Lançando luz sobre o texto

Vamos dar outro exemplo, desta vez envolvendo a atualização de palavras obscuras. Em Isaías 13:10, o Texto Massorético dizלא יהלו אוֹרם  (“sua luz não brilhará”, lo yahellu oram). A palavra que aqui significa “brilhar” (יהלו, yahellu) é bastante rara no hebraico bíblico e aparece apenas quatro vezes na Bíblia Hebraica. Do acadiano e do árabe, bem como do contexto nas ocorrências bíblicas, fica claro que a palavra significa “brilhar”. A palavra muito mais comum no hebraico bíblico para “brilhar” éהאיר  (he’ir), que sobrevive no hebraico pós-bíblico e no hebraico mishnáico e rabínico.

 

Isaías 13:10 no Códice de Alepo

Quando o escriba do Grande Rolo de Isaías chegou a Isaías 13:10, ele sabia pelo contexto que o verbo só podia significar “brilhar”, mas em vez de copiar a forma antiquada יהלו (yahellu ), ele a substituiu pela forma mais comum e mais fácil de entender יאירו (ya’iru).

 

Isaías 13:10 no Grande Rolo de Isaías

Repetindo, então, o Texto Massorético de cerca de 900 d.C. contém o linguajar mais antigo, mais próximo do original, embora por volta de 125 a.C. esse modo de se expressar tivesse se tornado arcaico e difícil de entender.

O terceiro exemplo é ainda mais alucinante.

Uma descoberta arrasadora

No Texto Massorético medieval de Isaías 51:9, lê-se: “Tu és aquele que despedaçou Raabe” (המחצבת רהב). A palavra usada para “despedaçou” aqui é bastante inesperada: ח-צ-ב (h-ts-b). Esse verbo é geralmente usado no sentido de talhar madeira ou pedra. Além disso, parece e soa muito semelhante a outro verbo que significa “quebrar”, מ-ח-צ (m-h-ts). Por esse motivo, muitos estudiosos sugeriram que o Texto Massorético tem um erro nesse ponto e deve ser corrigido para המוחצת (hamohetset). Isso é possível, claro. Erros de cópia acontecem.

Quando o Grande Rolo de Isaías foi encontrado, o texto em Isaías 51:9 usava המוחצת (hamohetset), o verbo mais comum para “despedaçar”! Muitos estudiosos, portanto, tomaram isso como a bala de prata que provava que o Texto Massorético estava realmente errado nesse ponto e precisava de correção.

A palavra המוחצת de Isaías 51:9 no Grande Rolo de Isaías

No entanto, nunca devemos contar com o ovo textual que a galinha ainda não botou. No final da década de 1920 e início da década de 1930, milhares de tábuas de argila foram encontradas em um lugar chamado Ugarite, na Síria. Elas continham centenas de textos em uma língua muito próxima do hebraico bíblico, datando de cerca de 1200 a.C. Quando os estudiosos leram esses textos, viram que havia o verbo ח-צ-ב (h-ts-b) sendo usado em um contexto de combate muito semelhante ao de Isaías!

Em outras palavras, parece que nos dias de Isaías era bastante legítimo usar o verbo ח-צ-ב (h-ts-b) para significar “despedaçar” em um contexto de batalha, além de seu significado (mais comum?) de talhar pedra ou madeira. Séculos depois, porém, quando os escribas copiaram o Grande Rolo de Isaías, esse verbo não fazia mais sentido no contexto e, portanto, foi substituído pelo verbo mais familiar e de aparência semelhante מ-ח-צ (m-h-ts). Mais uma vez, portanto, o Texto Massorético hebraico medieval conseguiu preservar uma forma do texto de Isaías muito mais antiga e original do que a forma encontrada no Grande Rolo de Isaías.

A forma המחצבת, usando o verbo h-ts-b, em Isaías 51:9 no Códice de Alepo.

A letra sublinhada no lado direito da imagem indica que não há outra forma do verbo como essa na Bíblia Hebraica.

Com certeza!

O que isso tudo significa? E se, durante o reinado asmoniano, algum novato tivesse saído por aí adicionando a letra “r” ao nome Damasco e atualizando a linguagem antiga?

De fato, quando pensamos sobre isso, as ramificações são impressionantes. O fato de o Texto Massorético frequentemente preservar formas linguísticas mais antigas — às vezes muito mais antigas — do que a versão “atualizada” de 125 a.C. significa que, no período do Segundo Templo (de cerca de 500 a.C. em diante), deve ter havido alguns escribas extraordinariamente conservadores que consideraram sua missão preservar o texto bíblico sem atualizá-lo. Eles escreveram escrupulosamente “Damasco” em vez de “Darmasco”, e copiaram meticulosamente המחצבת (hamachtzevet), embora também possam ter se perguntado se o texto deveria ser lido המחצת (hamohetzet). Nesses e em milhares de outros casos, eles se recusaram a atualizar, modificar ou “arrumar” o texto. Consequentemente, quando os escribas do século 2 a.C. se sentaram e leram essa versão de Isaías, já parecia veeeeeelha para eles — como quando lemos Shakespeare!

Essa forma do texto — a versão altamente antiquada, não atualizada — é a forma que finalmente chegou até nós como o Texto Massorético. Em sua bondade, o Senhor nos deu, no Texto Massorético do século 10 d.C., uma versão que é linguisticamente muito mais antiga que a do Grande Rolo de Isaías de 125 a.C. Graças a esses escribas conservadores, hoje podemos “falar o discurso de Isaías… como ele o pronunciou para nós”. Visto que, em última análise, esse é o discurso do Senhor para nós, não apenas o de Isaías, isso é uma coisa indescritivelmente maravilhosa!


Notas

Imagem do cabeçalho: Tyndale House Communications

Manuscritos do Mar Morto de Dennis Jarvis via Flickr, CC BY-SA 2.0

Cavernas de Qumran via Canva.

 

Imagens do Grande Rolo de Isaías: Ardon Bar Hama, via Wikimedia Commons, Domínio Público

Imagens do Códice de Alepo: fotografias de fac-símile de Tyndale House

 

Kim Phillips é pesquisador do Institute for Hebrew Bible Manuscript Research
Texto original: Scrolling Back in Time: The Great Isaiah Scroll Tyndale House Cambridge. Traduzido e publicado no site Cruciforme com permissão.

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