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Jordan Peterson (Foto: Jesse Dittmar/FTWP)

O psicólogo canadense Jordan Peterson tem se tornado uma figura mundialmente conhecida e influente. Grande parte da sua ascensão se deve, é verdade, às mídias sociais – fenômeno que, cá entre nós, traz uma nova face ao conceito de público e pode gerar em algumas horas estrelas globais (obviamente entendidas aqui não como aquela emissora de TV carioca que produz soap operas). Antes de figurar nos principais programas de debates na América do Norte e na Europa, Peterson ganhou notoriedade – em um vídeo no Youtube – ao discutir com um grupo de alunos no campus da Universidade de Toronto, no qual um deles, um estudante transgênero, o acusava de ter se recusado a tratá-lo por um pronome escolhido pelo próprio aluno. Na altercação, Jordan Peterson (JP, a partir de agora) faz uma defesa da liberdade de expressão e é defendido e ovacionado por parte dos estudantes ali presentes. Mais recentemente, em 2018, ele protagonizou uma das entrevistas mais assistidas na internet em escala mundial. Ao canal britânico Channel 4, JP foi entrevistado pela jornalista feminista Cathy Newman. Assista e tire suas conclusões, mas aos iniciados eu diria que foi uma festa em termos de memes, come backs, like a boss and turn down for whats – peço escusas pela língua estranha.

Ademais, o seu livro “12 Regras para a vida: um antídoto para o caos”  já vendeu mais de três milhões de cópias, e é sobre essa obra que me debrucei nos últimos meses a fim de compreender melhor o pensamento de JP e desenvolver uma leitura cristã usando categorias robustas de reflexão. Essa reflexão é parte de uma série de palestras que iniciei aqui no L’Abri da Inglaterra (a primeira pode ser ouvida aqui). Alguns fatores me levaram a querer encarar essa empreitada, dentre os quais eu destacaria o elevado número de estudantes aqui no L’Abri que leram ou estão lendo Jordan Peterson, uma certa tendência de não cristãos desenvolverem uma abertura ao cristianismo depois de o lerem e de cristãos passarem por um processo de desconstrução depois de um engajamento com JP, e, finalmente, a impressão que tenho de uma confusão de categorias daqueles que entram em contato  com a obra do psicólogo canadense.

Para tanto, neste artigo introdutório, eu não me deterei ainda nas regras desenvolvidas no livro, as quais escancaram as raízes do pensamento de JP, mas antes farei o seguinte percurso: iniciarei propondo o uso de três conceitos/ideias, muito empregados na tradição da qual faço parte, notadamente nas obras de Kuyper, Dooyeweerd e Schaeffer, com vistas a ler 12 Regras a partir de uma visão cristã. São eles: Graça Comum, Motivo-Base e Cobeligerância. Eles servirão de referência para a leitura da obra de Peterson, e me arriscaria a dizer que podem ser usados para boa parte de nosso engajamento com artefatos culturais. Em seguida, apresentarei, de forma sucinta, cinco fontes bibliográficas que exercem forte influência sobre JP, sem as quais não há como entender sua obra, dedicando uma atenção especial à sua visão da Bíblia.

Mas, ainda antes de iniciarmos esse percurso, preciso dizer que a minha impressão é de que, definitivamente, Jordan Peterson não é um pensador ordinário. Ainda que as plataformas que o tenham catapultado sejam passíveis de vários questionamentos e o tenham levado a uma imensa popularidade, ele não é um simples guru, cujo propósito principal é vender um conjunto de técnicas para sermos felizes. Eu sei que o título da obra aqui discutida talvez sugira algo assim. Mas se o leitor for atento em sua leitura de 12 Regras para a vida, encontrará águas mais profundas, para parafrasear o cantor gospel irlandês radicado no Brasil. Tendo dito isso, não estou afirmando, de modo algum, que concordo com o conteúdo do livro ipsis litteris, mas é preciso que se reconheça a densidade da obra de JP, ainda que 12 Regras seja a versão popular da sua produção acadêmica, expresso em seu livro Mapas do significado. Além disso, me arrisco a dizer que não me surpreenderia se em 20 ou 30 anos a obra de Peterson ainda estiver sendo lida e debatida.

Um filósofo da experiência humana

Quando sou perguntado sobre o porquê de Peterson fazer tanto sucesso, tendo a responder que se ele não é mais um guru no mercado, ele se tornou, sem sombra de dúvida, um mentor para muitos, não somente através de seus livros, mas principalmente através de seu canal no YouTube, onde reflete sobre questões do dia a dia a seus concorridos estudos bíblicos. Ele consegue integrar de forma atrativa os grandes temas da vida, reflexão filosófica densa com tópicos cotidianos e práticos. Essa característica, no meu ponto de vista, é o que faz a leitura de 12 Regras, por exemplo, tão fluída e agradável. Ele conduz o leitor pela mão com maestria, começando com um simples exemplo de como é difícil nos motivarmos para uma tarefa trivial como lavar a louça, para em seguida nos conduzir nas águas nebulosas dos regimes totalitários e ideologias opressivas. (Sempre me perguntei sobre a relação entre esses dois fenômenos). Parece-me que parte dessa habilidade vem de sua experiência como psicólogo clínico, o que provê a ele uma rica fonte de casos e exemplos de situações reais. Nesse sentido, JP não é um filósofo numa torre de marfim, mas um filósofo da experiência humana.

Leia também  As características e condições da laicidade colaborativa | Thiago Vieira e Jean Regina

Três conceitos para ler a obra de Peterson

Graça comum

O primeiro conceito que gostaria de trazer para essa discussão é o de Graça comum, empregado por vários teólogos dentro da tradição reformada, mas especialmente presente nas obras de Herman Bavinck (1854-1921) e Abraham Kuyper (1837-1920). Sem nos delongarmos nos meandros e nas especificidades desse conceito nos dois autores, podemos dizer de modo geral que a ideia de Graça comum implicaria em: a) uma forma de Deus frear o desenvolvimento do mal, via a permissão de que mesmo não cristãos possam produzir boas coisas para o bem da criação; b) o reconhecimento de que todo ser humano é imago Dei, e, ainda que de forma distorcida, reflete algo da bondade e beleza do criador, tendo a capacidade de produzir artefatos que refletem a realidade criada. Em suma então, não cristãos produzem artefatos culturais, por exemplo, como análises psicológicas que podem refletir verdade e os propósitos do Criador para sua criação. Sei que para muitos essa ideia  parece muito clara, mas não tenho tanta certeza em relação ao universo cristão, de um modo geral, no Brasil.

Portanto, de forma bem básica, a ideia de Graça Comum nos encoraja a uma abertura intelectual para além dos muros eclesiásticos e nos incentiva a mantermos nossa reflexão na ponta dos cascos sem temer qualquer produção intelectual. Novamente, penso ser importante enfatizar isso, dado o nosso contexto dualista, que para além de conseguir integrar todas as coisas debaixo do senhorio de Cristo, se resume a confiar em taxações cristão/ não-cristão, e que, muitas vezes, em nome de Deus, engole muita porcaria por aí, por estar com as defesas lá em baixo. Por isso é importante reafirmar: sim, podemos aprender algo lendo e interagindo com a obra de Jordan Peterson.

Cobeligerância

A origem etimológica do termo remete a um aspecto bélico, luta, guerra. Ser cobeligerante é ser parceiro de trincheira, lutar a mesma luta, guerrear a mesma guerra. No final dos anos 1970 e início dos 1980, no auge da assim chamada guerra cultural, Francis Schaeffer (1912-1984) empregou o termo cobeligerância para expressar a ideia de que nas batalhas nos campos culturais, muitas vezes os cristãos estarão entrincheirados com parceiros que possuem um alvo em comum, mas que não necessariamente compartilham dos mesmos valores. Daniel Strange definiu essa ideia assim: “Um cobeligerante é uma pessoa com a qual eu não concordo em uma variedade de assuntos vitais, mas que, por qualquer razão própria dela, está do mesmo lado em uma luta por algum tópico específico de justiça pública.”[1] Por isso, cabe a pergunta aqui: Em que medida JP pode ser um cobeligerante com os cristãos no campo da produção acadêmica e na cultura de um modo geral? Note bem que, com vistas a identificar alguém ou algum movimento como cobeligerante, é fundamental que também identifiquemos quais são os assuntos vitais com os quais discordamos. Bom, esse é o básico de qualquer perspectiva que tenha o mínimo de discernimento. Mais adiante, no artigo subsequente, vou explorar algumas possibilidades da obra de Peterson nesse sentido.

Motivo-Base Religioso

O terceiro conceito, desenvolvido pelo filósofo holandês Herman Dooyeweerd (1894-1977)[2], vai direto ao ponto nevrálgico de qualquer sistema de pensamento. Seguindo a tradição agostiniana e reformada, Dooyeweerd desenvolve a ideia de que nenhuma perspectiva é religiosamente neutra em si, mas antes precisa estar ancorada e direcionada a um absoluto, o que ele chamou de ideia de origem (arche). Fazendo um paralelo cuidadoso, é o que Paul Tilich chamou de o Incondicionado ou Roy Clouser de Preocupação última, o fundamento sobre o qual todo o resto depende. Para o pensador holandês, a partir de uma visão cristã, esse motivo-base religioso pode estar centrado no Criador ou na criação, em Deus ou nos ídolos. Em encontrando esse centro religioso, encontramos a pedra angular de qualquer perspectiva, ainda que ela arrogue a si mesma o título de neutra e/ou secular. Dessa forma, precisamos nos perguntar qual é o motivo-base religioso que é fundamento para a obra de Peterson? Bom, pretendo expô-lo na medida em que avanço na exposição de suas regras para a vida.

Mas, antes disso, prometi ainda escrever sobre as principais fontes bibliográficas que exercem forte influência sobre o pensamento do psicólogo canadense. Deixaremos isso para o próximo texto.

_______________

[1] http://www.jubilee-centre.org/co-belligerence-and-common-grace-can-the-enemy-of-my-enemy-be-my-friend-by-daniel-strange/#_ftn4

[2] Quem quiser saber mais sobre a obra de Dooyeweerd, escrevi uma introdução ao seu pensamento no livro Reformai a Vossa Mente: A filosofia cristã de Herman Dooyeweerd. (Ed. Monergismo).

Josué K. Reichow é mestre em Teologia pela Faculdades EST (2014), concentrando seus estudos em Teologia e História, com interface entre teologia e filosofia. É especialista em História da Filosofia pela UNISINOS (2013). É bacharel em Ciências Sociais, com ênfase em Sociologia pela UFPEL (2010). É obreiro no L’Abri Inglaterra com sua esposa Lili e autor do livro "Reformai a vossa mente: a filosofia cristã de Herman Dooyeweerd”.

Veja também os demais artigos da série:

9 Comments

  1. jonaatas Pereira disse:

    Muito bom!

  2. ISRAEL RAMOS disse:

    Interessante, ansioso para próximo artigo.

  3. Compatilhei. Os próximos textos poderão ser vistos aqui também?

  4. Yuri disse:

    Muito bom!

  5. Erialdo teles disse:

    Muito bom! Se faz necessário que tenhamos análises como está. Espetando o restante.

  6. Thaís disse:

    Já quero ler o próximo artigo!!

  7. Aldo disse:

    Caro Josué, obrigado pela ibstrução. Que o Senhor abençoe seu ministério!

  8. Asael Cosentino disse:

    Ola Joseu, muito bom texto, mas fiquei interessado mesmo no L’abri.
    Por favor, conte mais sobre esse projeto (algo mais, pq ja entrei no site e li tudo rsss).
    muito obrigado

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