Acabou mais um ano.
Nós sobrevivemos a mais 365 dias de muita dureza e complicação, tanto dentro como fora das igrejas. 2019 foi um ano impiedoso para basicamente todo mundo que entrou nele vivo.
Produzir arte e consumir arte se mostrou um ato de coragem em muitas frentes. E, como de costume, a arte boa sempre está indo atrás de explorar todos os cantos da humanidade. Quase sempre, com histórias honestas e bem pensadas, nós conseguimos encontrar paralelos com a fé, a moralidade, as nossas dúvidas e nossas esperanças.
Então vamos fazer novamente o exercício de olhar para o ano de 2019 no cinema e tentar encontrar esses paralelos. O que o cinema de 2019 teve a dizer sobre nossa luta diária em busca da verdade, sobre nossa humildade perante o universo, sobre nossa conexão com Jesus, com o Divino, com nossa própria parcela na construção do Reino de Deus, ou nas tentativas incessantes que temos, mesmo que não intencionalmente, de atrasar a vinda desse Reino?
Deus foi comigo ao cinema em 2019, não só porque eu acho que Ele gosta de cinema, mas porque Ele vai comigo pra todo lugar.
Já falamos um pouco sobre Ad Astra aqui no Tuporém.
Um épico espacial intimista que funciona mais como uma sessão de terapia do que uma aventura cósmica, muito mais na linha de Gravidade do que de Star Trek. Um astronauta precisa encontrar seu pai nos confins do Sistema Solar porque seu pai pode ter enlouquecido e ter colocado a humanidade toda em risco.
E o astronauta encontra muito mais do que o seu pai. Encontra respostas para perguntas primordiais e profundas da existência humana – respostas que, para uns, podem ser desesperadoras e catastróficas, mas, para outros, podem ser catárticas e salvíficas.
É um filme que quer que pensemos no sentido de “estarmos sozinhos no Universo”, e na nossa relação com esse conceito. O que nos sobra se o Universo estiver vazio de presença, vazio de sentido? O que fazer com nossos anseios e nossa fé? A resposta do filme é claramente inclinada para uma leitura ateia da questão, mas isso jamais deve ser impedimento para o quanto podemos aprender com essas perguntas. Deus nunca deixou de respondê-las, afinal.
Esse foi um dos melhores anos para o cinema brasileiro da década. Não só começou-se a descoberta real do cinema pop, com filmes cativantes como Turma da Mônica – Laços, como o antigo estigma que “o cinema arte brasileiro era inacessível” ficou mais difícil de defender (especialmente no próximo filme da lista).
Com A Vida Invisível, Karim Aïnouz retrata um pedaço do século XX nos subúrbios do Rio de Janeiro, mas focado na vida de duas irmãs. E toda a dor e drama de serem “mulheres e nada mais” num ambiente terrível de opressão.
É um filme que conta uma mensagem antiga, de que à mulher é negado qualquer direito pelo simples motivo de serem mulheres. Filmado com uma elegância ímpar, uma medida de melodrama bem aplicada e uma participação essencial de Fernanda Montenegro, A Vida Invisível lembra como nós criamos a invisibilidade de pedaços inteiros da nossa sociedade e do quanto isso custa aos mais fracos.
Bacurau é um filme enigmático. Rotulá-lo é um esforço inútil porque ele é ao mesmo tempo um faroeste, um sci-fi, uma distopia, uma fábula social, um thiller, uma comédia. Sua história é muito mais simples do que parece: um vilarejo no meio do nada começa a ser atacado por forças externas e os habitantes precisam se proteger.
Mas, no meio desse “Sete Samurais Tupiniquim” existe uma discussão profunda sobre o que é a identidade de um povo e, dependendo do contexto, qual o alcance que conceitos ilusórios como “raça” tem na hora de definir essa identidade. Bacurau faz perguntas tão difíceis ao brasileiro médio que torna-o um filme desconfortável para muita gente.
O mais popular vilão dos quadrinhos ganhou uma nova história de origem e o resultado foi um tanto controverso. Por mais que muitos tenham aplaudido a entrega de Joaquin Phoenix no papel, assim como a trilha sonora e a fotografia, houve um irredutível número de críticos das escolhas do diretor.
Há quem diga que a falta de coerência social e o excesso de “choque pelo choque” deu ao filme uma infantilidade não-intencional, como o adolescente que descobre o niilismo e acha que inventou a roda.
É um filme que almeja descer até às profundezas da alma e da sociedade, mas se perde na hora de dizer algo coerente sobre ambas.
É curioso que nosso interesse sobre um filme que retrata a intimidade da figura religiosa cristã mais poderosa do mundo tenha pouca ligação com as implicações teológicas da figura em si. O filme retrata o embate de visões políticas entre Bento XVI e Francisco, mas o filme quer observar de perto Joseph Ratzinger e Jorge Maria Bergoglio.
A humanidade dos dois é o assunto do filme e, mesmo feito por um (ótimo) diretor que se dizia agnóstico, há muita aplicabilidade teológica nessa aproximação mais “humanista”. Ao explorarem a alma dos personagens ao invés da estrutura do papado, Fernando Meirelles e o roteirista Anthony McCarten conseguem conectar-nos a essas personalidades. Mesmo que muito do filme seja somente inspirado pelo que realmente aconteceu, ao invés de uma adaptação direta, é impossível não se identificar com os sentimentos de culpa e da visceral necessidade de perdão que ambos os personagens apresentam.
E que cena final maravilhosa!
É uma história da Agatha Christie, mas sob um viés desconstrutivo em termos de estrutura.
Também é um dos filmes mais divertidos do ano, onde absolutamente todos os envolvidos parecem estar ali só pela farra. Um assassinato, uma família inteira suspeita, um detetive pouco convencional e uma governanta que não pode mentir são os elementos, jogados num tabuleiro de “Detetive”, que vão desenrolando uma história que a princípio é só sobre “Quem matou a vítima?”, mas é um conto moral disfarçado. É um filme sobre nossa relação com o dinheiro, sobre o valor da verdade e sobre o quanto vale a pena ser bom com os outros.
Um filme extremamente necessário para que 2020 não repita muitas das tragédias de 2019.
Quentin Tarantino entrega seu filme mais contido, mais tecnicamente impecável, mais sutil e nem por isso menos Tarantinesco.
Ele mergulha em nostalgia pura ao contar a história de três pessoas (reais e não reais), culminando na noite dos assassinatos cometidos pelo grupo liderado por Charles Manson. Mas, ao mesmo tempo, ele está lamentando a tragédia, a morte dos inocentes, a santidade do cinema e o tempo que não volta mais.
É um filme espiritual sobre tempo, arte e dublês de ação.
Fé Corrompida saiu em 2018, mas foi visto por muito poucos. É um filme importante e complicado sobre um pastor presbiteriano que não consegue desligar sua ansiedade diante de tragédias, próximas e macrocósmicas, enquanto questiona o perdão de Deus perante a si mesmo e perante a sociedade como um todo.
Ele vai entrar num rodamoinho de loucura e pode ou não encontrar Graça, salvação e morte.
O diretor de Hereditário se distancia um pouco do horror tradicional e usa um tipo paralelo – o chamado folk horror – para contar uma história sobre opressão emocional, libertação e, surpreendentemente, o significado de família.
O filme começa com uma tragédia inimaginável e vai descendo em direção ao surrealismo, sendo liderado pela atuação poderosa de Florence Pugh. O filme fala menos de paganismo e religiões diferentes – e pouco seguras – e mais sobre as prisões que nossos entes queridos criam para nós. Já é o segundo filme de Ari Aster onde um conceito complicado e aterrorizante de família entra em cena para não ser esquecido mais – por bem ou por mal.
Martin Scorsese elabora, com um elenco impecável, seu Eclesiastes.
Um assassino da máfia olha para sua vida inteira e o que vê é vaidade, areia e esqueletos. Um épico de parcimônia, com um olhar curioso para dentro da alma de seu protagonista, especialmente quando ele quer – ou precisa – que o Universo lhe responda. O que fazer quando seu final não traz significado algum para uma vida repleta de perguntas, sangue e arrependimentos?
Scorsese mostra que ainda tem brilhantismo de sobra.
O cineasta sul-coreano Bong Joon-Ho criou parábolas eletrizantes sobre a vida em sociedade, os problemas entre as camadas sociais e o que acontece quando elas entram em choque. Filmes como O Expresso do Amanhã, Okja e O Hospedeiro usam a estética e a linguagem do sci-fi e do pop para falar de coisas complexas e sempre o faz com maestria.
Parasita é talvez seu filme mais “pé no chão”, mas não menos insano, surpreendente ou terrivelmente inteligente por isso. A saga de uma carismática família de vigaristas que se prendem a uma família de ricos ingênuos começa no subsolo e vai subir até alturas imprevisíveis; e as surpresas no meio do caminho são um misto de tragédia e comédia, sem perder a fúria do questionamento de que as coisas são assim, mas, por que elas são assim?
O maior arrasa-quarteirão da história do cinema termina a grande (primeira) saga dos heróis da Marvel no cinema com um final dramático, enorme e que atinge todas as notas certas em termos do que seus personagens têm como função.
O final consegue ser agridoce sem ser melodramático e se resume a um sacrifício único, de alguém cuja gana por proteção era uma de suas fraquezas. O sacrifício final que devolve ao universo inteiro a possibilidade de vida é o final perfeito para o personagem em questão, mas não vou me estender muito. O maior artigo já publicado no Tuporém é todo sobre este filme, então clica aqui e leia!
Lembrando: essa é uma lista BEM incompleta. Não consegui assistir tudo o que eu queria, nem o que eu precisava ter visto. Então responda – o que ficou faltando aqui, e o que você achou do cinema em 2019?
Silas Chosen é roteirista, cineasta, publicitário, ilustrador e é viciado em cinema e histórias. Escreve para sites e programas de rádio sobre cinema, cultura pop e cristianismo desde 2004. Faz parte da 4U Films, ministério de cinema independente. |