Cristianismo na Universidade: Uma resenha | Thiago Oliveira
18/nov/2019Cosmovisões materiais: por que precisamos ir além das disciplinas teóricas | Fernando Pasquini Santos
09/dez/2019(Spoilers dos filmes em questão)
Histórias são os transportes mais efetivos para as ideias.
Quer seja um ensinamento moral, quer seja um conceito filosófico, quer seja puro entretenimento. Aquilo que vai garantir que seu conceito chegue lá, onde quer que precise chegar. Ao vermos personagens tomando decisões, incorporando seus porquês e enfrentando os terremotos emocionais de suas tramas, tanto as filosofias de vida desses personagens como as de seus criadores atravessam a tela e nos atingem no cérebro ou no coração. Os contadores de histórias usam sua mídia para nos falar de suas inspirações, de seus desejos, de suas dúvidas, mas também dos seus medos.
Inúmeros contos abordam aquilo que seus inventores acreditam, mas muitos precisam focar também naquilo que eles não acreditam. Fazem uma construção narrativa baseada em um “espaço negativo”, explorando o que encaram como “o vazio” para se aprofundar ainda mais num abismo, ou encontrar alguma coisa lá dentro.
E há dois filmes que chegaram às telonas em 2019 que chamaram a atenção pelas formas diametralmente opostas com as quais abordam esse mesmo assunto: a plena certeza de que não há nada no que acreditar. O curioso é que são filmes que têm absolutamente mais nada em comum.
O mais popular, exaustivamente analisado e financeiramente impactante deles é Coringa. Ao invés de fazer um filme que siga fórmulas mágicas de sucesso nas adaptações de quadrinhos, o diretor Todd Phillips, egresso da trilogia Se Beber Não Case, não só muda radicalmente o tom de sua cinematografia, mas também o que sempre vemos em todos os filmes baseados em gibi. Não mais uma aventura colorida, mas sim um thriller psicológico que tira suas principais referências dos longas formadores de cineastas como Martin Scorcese. Não é que tem muito de Taxi Driver e O Rei da Comédia em Coringa, é que Coringa é quase um reboot desses filmes, trocando Nova York por Gotham City.
O outro filme é uma ficção científica intimista, uma aventura espacial muito mais na linha de Gravidade e Lunar do que na de Star Wars ou até mesmo Perdido em Marte. Ad Astra é dirigido por James Gray, cineasta que sempre está interessado em falar da humanidade e das lacunas existenciais que andam junto de seus personagens, sejam eles policiais, exploradores ou astronautas. E é um filme que, apesar de estrelar Brad Pitt – o qual, junto com sua participação em Era Uma Vez em Hollywood, teve um dos melhores anos de sua carreira –, não conseguiu uma fração do frisson que teve o filme do palhaço.
Em Coringa, Joaquin Phoenix interpreta um comediante frustrado chamado Arthur Fleck. Ele é um ex-paciente psiquiátrico que tenta caminhar por uma vida complicada e cheia de buracos. Não são só os seus problemas psicológicos, mas também sua mãe doente, a solidão intensa e a sociedade à sua volta entrando em colapso completo. Seus remédios acabam por conta de falta de fundos sociais, seu emprego acaba por falta de noção completa dele próprio. A hora certa e o lugar certo, aliados a uma psicopatia que pode ou não estar ali acabam num triplo homicídio. E isso coloca o protagonista num caminho sem volta de caos e perturbação, e a cidade inteira vai junto.
Ad Astra conta a história do astronauta Roy McBride, condecorado veterano de missões espaciais que recebe a demanda mais surpreendente e estranha de todas: ir até Marte e enviar uma mensagem para Netuno. Seu pai, Clifford McBride, papel de Tommy Lee Jones, havia liderado uma missão até os confins do Sistema Solar, décadas antes, atrás de sinais de vida inteligente para além de Plutão. Era dado como morto até que surtos de energia começaram a ameaçar a vida humana no sistema inteiro, e os superiores de Roy suspeitam que Clifford não só está vivo, mas enlouqueceu e está causando os fenômenos. E o que era para ser somente uma viagem até o vizinho vira uma epopeia cautelosa que vai levar o protagonista até Netuno, enfrentando perigos surpreendentes e revelações extraordinárias.
Os dois filmes não poderiam partir de ideias e conceitos mais diferentes. Porém, mesmo percorrendo caminhos também distintos e usando linguagens inconfundíveis entre si, ambos estão apontados para um lugar em comum no que diz respeito a sua cosmovisão. No entanto, é um lugar comum no nome e pouco mais.
Quer seja com a câmera, quer seja com a edição, quer seja com o comentário social e, é claro, também através do verbo de seu “herói”, o Coringa de Todd Phillips está preocupadíssimo em transmitir uma só mensagem ao público: “Eu não acredito em nada”. Além do bom e velho “ser feliz”, qualquer outro objetivo do protagonista é um tanto vago, dado que ele parece somente reagir às situações, uma depois da outra. Perto do final, ele toma a decisão de se matar, levando um desafeto junto, por pura vingança. Ao ser questionado sobre os eventos em escala macro que, inadvertidamente, ajudou a botar em ação, Arthur Fleck recita o mantra de não ter crença em nada. A ironia final é que ele se torna o líder por aclamação de um movimento que, embora tenha raízes em sentimentos muito justos de uma população sofredora, desencadeia para uma onda de crimes violentos e absolutamente nada além disso. Um movimento que coloca um líder sem objetivo, sem foco e sem intenção alguma sobre os ombros. “Não acreditar em nada” leva não só a um monte de ações contraditórias, leva a um comentário social que também não significa nada.
Ad Astra, do seu jeito, também é um filme sobre “não acreditar em nada”, mas é muito mais interessado em colocar seu personagem numa jornada, tanto épica quanto interna, de descobrimento do que pode significar o nada. Seu pai abandonou o filho, a família, o planeta e a humanidade para responder uma pergunta clara: estamos ou não sozinhos? É uma pergunta que parte de alguém que acredita, sim, em algo. Vários personagens expressam suas fés, rezando e acenando para um poder maior que pode ou não estar lá. Quando Roy McBride encontra seu pai, velho e desgrenhado, separado verticalmente do filho numa Capela Sistina futurista, descobre que não existe nada lá fora. Os humanos estão sozinhos. Gritam em direção ao vazio e não captam resposta alguma. A dor do choque de encontrar-se com um abismo eterno enlouqueceu Clifford, que aqui faz o papel de um deus deprimido, uma figura paterna que sinaliza ao seu filho que não se pode mais olhar para fora em busca de respostas, pertencimento ou até mesmo de compaixão. A humanidade vai ruir e o espaço vai responder com o silêncio.
Porém, enquanto Coringa é um filme que pensa ter feito um grande comentário sobre o estado das coisas (ou pensa ter feito uma grande piada existencialista – qualquer uma das duas pode ser verdade), Ad Astra ainda traz Roy Clifford de volta à terra. E a primeira coisa que ele vê ao aterrissar é uma mão humana. Roy redescobre a humanidade, reconecta-se com aqueles à sua volta, e reergue sua vida.
Coringa quer que o vazio seja seu assunto, seu objetivo. E não há nada de errado com isso, até o ponto em que o discurso do filme se vangloria de não estar dizendo nada. Aponte para um vazio moral e existencial, mas, pelas barbas do profeta, faça alguma coisa com isso. O vazio em si é o mesmo para todos os que estão desiludidos, desamparados, abandonados. Apontar a câmera para o nada já não é novidade desde o Século XIX. Desde o Eclesiastes. Usar personagens de quadrinhos só pinta a mensagem com um sarcasmo extra que não tem utilidade artística alguma.
Porém, mesmo no meio do vazio existencial que Roy McBride encontra nos confins do Sistema Solar, ao retornar ele é lembrado de que, não importa muito o porquê, mas ele existe. E os outros existem. E a solidão é real, mas deixá-la nunca deixa de ser uma possibilidade. Ad Astra dá o passo além de transformar seu niilismo num humanismo. Como disse Isaac Asimov uma vez, ao ser questionado sobre seu ateísmo, “prefiro dizer que sou humanista porque quero falar do que eu acredito, e não do que eu não acredito”.
Dizer que os cristãos estão livres de qualquer tipo de dúvida ou pensamento que esses dois filmes abordam é besteira. É só ler o tal do Eclesiastes para saber que gente de fé, inspirada por Deus, também olha para o abismo e, às vezes, só consegue enxergar o abismo retornando o olhar. Nós sabemos que não estamos sozinhos, mas isso nem sempre é o que sentimos. E isso é completamente normal. Filmes como Ad Astra e Coringa podem ser parceiros nessa caminhada, ajudando a iluminar caminhos e ruas sem saída. Estamos numa constante briga entre o que cremos e o que não cremos. Mesmo que não contenham todas as respostas, as maneiras com as quais a arte faz perguntas podem nos inspirar a fazer nossas próprias perguntas. E é aí que começamos a sair do lugar, olhar em volta e perceber que estamos em constante diálogo com Deus.
Porém, há filmes e filmes, perguntas e perguntas. Coringa vai atrás de responder que nada significa nada, e o caos é a única resposta legítima a um mundo cheio de dúvidas, mesmo sem ninguém ter feito pergunta alguma. Ad Astra usa sua câmera, sua sessão de terapia espacial com Brad Pitt, seu design de som e seu roteiro para incentivar a busca de respostas.
E quem procura acha.
Silas Chosen é roteirista, cineasta, publicitário, ilustrador e é viciado em cinema e histórias. Escreve para sites e programas de rádio sobre cinema, cultura pop e cristianismo desde 2004. Faz parte da 4U Films, ministério de cinema independente. |