João Calvino é considerado um dos mais importantes teólogos da história da igreja. Somente outros três homens tiveram impacto parecido: Agostinho de Hipona, Tomás de Aquino e Martinho Lutero. Mas, em termos de genialidade, profundidade e extensão, os dois personagens mais influentes são Agostinho e Calvino. As formulações teológicas de ambos foram de longo alcance, com implicações para todas as esferas do pensamento, indo até mesmo além da influência sobre uma determinada denominação cristã.
Da mesma forma que católicos e protestantes são devedores a Agostinho, a influência de Calvino se estende a anglicanos, presbiterianos, congregacionais e batistas. Na Prússia, os luteranos foram impactados pela influência de seus escritos. Mais recentemente, pentecostais e carismáticos também descobriram suas valiosas obras. Aliás, Calvino amava os escritos de Agostinho e se percebia em continuidade com a herança do bispo de Hipona. Ele citou Agostinho mais do que qualquer outro escritor antigo nas Institutas. Sempre que ele queria estabelecer a antiguidade ou a importância de uma doutrina, citava Agostinho, especialmente porque ele era uma autoridade com a qual Calvino e seus interlocutores católicos concordavam. Mas uma área de diferença importante é que Calvino tinha fluência em grego e hebraico, enquanto Agostinho era fraco em grego e desconhecia o hebraico.
Além disso, quando Calvino surgiu no cenário europeu, o movimento de Reforma estava dividido e sob intensa pressão do catolicismo. Mas, antes de sua morte, a fé reformada se solidificou e se tornou um movimento internacional, alcançando, a partir da Suíça, a França, norte da Itália, centro da Alemanha, Holanda, Inglaterra, Escócia, Espanha, Hungria, Polônia e até o Brasil — para onde Calvino enviou os primeiros missionários a chegarem às Américas, em 1555, para tentar implantar a France Antarctique no Rio de Janeiro. Em resumo, a importância de Calvino foi tamanha para a fé cristã e para o Ocidente que é reconhecida mesmo em círculos seculares.
Calvino foi um gigante por várias razões: por enfatizar a autoridade e prioridade das Escrituras (sola Scriptura), por solidificar o método histórico- gramatical de interpretação bíblica, por se preocupar com a estrutura da igreja visível, caracterizada pela pregação da Palavra de Deus e correta administração dos sacramentos do batismo e da ceia, pela transformação ocorrida em Genebra, que se tornou o modelo de uma república cristã para toda Europa, e, principalmente, por sua imensa contribuição literária. Esta engloba comentários bíblicos sobre quase todo o Novo Testamento e grande parte do Antigo Testamento, milhares de sermões, tratados polêmicos, cartas e escritos litúrgicos e catequéticos. Mas sua grande obra foi as Institutas da religião cristã, que seria “uma chave e entrada que a todos os filhos de Deus outorgue acesso a correta e cabal compreensão da Santa Escritura”[1]. A primeira edição surgiu em Basiléia, no ano de 1536, e tinha 6 capítulos. Era publicada em formato pequeno, de modo que cabia facilmente nos amplos bolsos que se usavam antigamente, e podia circular dissimuladamente pela França católica. Em nove meses se esgotou esta edição, que, por estar em latim, era acessível a leitores de diversas nacionalidades. Então, Calvino continuou preparando edições sucessivas das Institutas, que foi crescendo segundo iam passando os anos.[2] A edição latina passou por algumas ampliações, revisões e reorganizações, em 1536, 1539, 1543, 1545 (sem alteração), 1550, 1553 e 1554 (ambas sem alterações), até atingir sua forma definitiva, publicada em Genebra, em 1559. Essa edição foi reimpressa duas vezes em 1561. À tradução francesa de 1541 — que não foi simplesmente uma tradução da edição latina de 1539, tendo muito material da edição de 1536 —, seguiu-se outras: 1545, 1551, 1553 e 1554 (ambas sem alterações), 1557, e a definitiva, de 1560.[3]
Assim sendo, é uma alegria apresentar ao público de fala portuguesa a importantíssima obra Análise das Institutas da religião cristã de João Calvino, de Ford Lewis Battles. Usei este valioso livro pela primeira vez em 1996, para acompanhar meus primeiros estudos das Institutas. Foi um auxílio imprescindível ao qual continuei recorrendo continuamente em meus estudos da importante obra de Calvino. Espero, agora, que mais estudantes da obra maior do reformador francês se beneficiem desse excelente guia, “um esboço analítico detalhado do texto das Institutas conforme Calvino o redigiu”, que “pode tanto ser um mapa da estrada para a jornada quanto um útil instrumento para revisão”, como escreveu Battles. E, como ele escreveu, o que ficará evidente na medida em que o estudante disciplinado e motivado for avançando em seus estudos das Institutas, empregando esse guia, é que “a teologia de Calvino habita o mundo real e o encara frontalmente”. E, ao estimular o leitor a estudar as Institutas, ele afirma: “Em primeiro lugar, você deve querer ler o livro; em segundo lugar, você deve partir do início; em terceiro lugar, você deve persistir, por mais demorado que lhe seja, até chegar à última página. […] Em quarto lugar, não lamente que uma questão pareça ficar sem resposta, ou que uma ponta solta pareça não estar amarrada: ela será respondida; ela será amarrada. Seja paciente. […] Em quinto lugar, conforme você lê, não pense apenas na época de Calvino […], mas pense também na sua própria época”. Portanto, leitor, ad fontes!
[1] Prefácio à edição francesa de 1541 e subsequentes, nessa língua”, em As Institutas ou Tratado da religião cristã, edição latina de 1559 (São Paulo: Cultura Cristã, 2006), vol. 1, p. 45.
[2] Para uma biografia da obra mais importante e influente da Reforma, cf. F. Bruce Gordon, John Calvin’s ‘Institutes of the Christian religion’: a biography (Princeton: Princeton University Press, 2016). Esse livro explora as origens, o estilo e as características principais das Institutas, examinando suas raízes teológicas e históricas e mostrando como essa obra se desenvolveu em suas várias edições para se tornar uma ampla síntese da teologia reformada, extremamente influente até os dias atuais.
[3] As principais edições disponíveis em português são: As institutas da religião cristã, primeira edição de 1539 (São José dos Campos: Fiel, 2018); As institutas ou Tratado da religião cristã, edição francesa de 1541 (São Paulo: Cultura Cristã, 2006), 4 vol.; As institutas ou Tratado da religião cristã, edição latina de 1559, 4 vol.
Trecho extraído e adaptado da obra “Análise das Institutas da Religião Cristã de João Calvino“, de Ford Lewis Battles, publicado por Edições Vida Nova: São Paulo, 2022, p. 7-8; 12-14. Publicado no site Cruciforme com permissão.
Franklin Ferreira é doutor em Divindade pelo Puritan Reformed Theological Seminary, mestre em Teologia pelo Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil e bacharel em Teologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. É reitor e professor de Teologia Sistemática e História da Igreja no Seminário Martin Bucer, em São José dos Campos, SP, e consultor acadêmico de Edições Vida Nova. Escreveu vários livros, entre eles: Avivamento para a igreja, Contra a idolatria do Estado, A igreja cristã na história, Pilares da fé, Por amor de Sião, Teologia sistemática (em coautoria com Alan Myatt) e Teologia sistemática (Curso Vida Nova de Teologia Básica), publicados por Vida Nova. |