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Cosmovisão cristã já se tornou lugar comum em nossos estudos. Vimos, nos últimos anos, muito ser desenvolvido e ensinado sobre a importância de pensarmos cada área do conhecimento à luz da narrativa bíblica e do senhorio de Cristo. Isso também trouxe, com o tempo, várias reflexões críticas e refinamentos ao conceito. Podemos citar, por exemplo:

  • Michael W. Goheen, em Introdução à Cosmovisão Cristã, chamando atenção para a cosmovisão como essencialmente uma narrativa (ou metanarrativa), ao invés de um sistema formal de proposições;
  • Kevin Vanhoozer, em diversas obras (você pode começar com Quadros de uma Exposição Teológica), utilizando o termo “imaginação” para se referir à forma como nos enxergamos como atores dentro de um drama cósmico;
  • James K. A. Smith, também em diversas obras (você pode começar com Você é Aquilo que Ama), chamando atenção para nossa orientação afetiva em direção àquilo que vemos como o Bem, dando origem a hábitos e liturgias que “calibram” o nosso coração;
  • No Brasil, podemos citar Guilherme de Carvalho, chamando atenção para a dimensão afetiva e identitária, que se tornou o cerne das preocupações culturais atuais. A questão da teologia pública hoje não se volta mais para o que é verdade, mas sim, para a questão “quem sou eu?”. Assim, talvez possamos falar mais de uma visão do self (eu), e como esse self se projeta no sistema de vida contemporâneo – ou seja, uma Selbstanchauung, conforme definiu Manuel Castells.
  • Além disso, percebe-se que o conceito de cosmovisão, embora proposto inicialmente no meio intelectual protestante, também entrou em diálogo com outros conceitos parecidos, propostos tanto por autores em outras tradições cristãs – como a ideia de “imaginários sociais” em Charles Taylor, um católico, ou a “perspectiva sacramental e sacerdotal da vida” em Alexander Schmemann, um ortodoxo oriental –, como fora do próprio cristianismo (como o caso de Manuel Castells citado acima).

Minha proposta, nesse texto, não é continuar essas discussões propondo novas compreensões e refinamentos do conceito, mas apontar que esse trabalho já feito por Goheen, Vanhoozer, Smith e Carvalho deveria, agora, dar lugar a algum tipo de reforma ou ampliação curricular em nossos estudos de cosmovisão. Temos um novo passo a dar: pensar, agora, no nosso repertório de exemplos e aplicações tipicamente estudados.

Já faz um bom tempo que percebo a natureza desse repertório básico de exemplos de aplicação oferecido em nossos cursos e estudos sobre cosmovisão: todos eles se voltam apenas para disciplinas teóricas e puramente intelectuais. O próprio Abraham Kuyper, por exemplo, ao se referir ao cristianismo como um sistema de pensamento que se estendia a várias áreas do conhecimento, lidou apenas com três áreas principais: ciência, política e artes. O currículo básico continua, no geral, girando em torno apenas dessas áreas, com algumas incursões tímidas em direção a, talvez, economia ou meios de comunicação. Mas, você já reparou como é difícil encontrar estudos sobre cosmovisão cristã na área da saúde, agropecuária e esportes? Goheen, Vanhoozer, Smith e Carvalho estão nos fazendo sair de um conceito puramente intelectualista de cosmovisão e passar a considerar as suas dimensões prática e afetiva. Será que isso não deveria promover algumas mudanças (ou pelo menos ampliações) de foco – uma virada mais prática, com foco em dimensões materiais e cotidianas da vida humana? Em suma: talvez nós precisemos de um currículo básico e sistemático para explorar as liturgias culturais para as quais James K. A. Smith lançou as bases.

Não quero, é claro, desprezar os progressos que tivemos nas áreas mais teóricas da cosmovisão cristã. Roy Clouser, por exemplo, é genial ao apontar a não-neutralidade religiosa das teorias, em The Myth of Religious Neutrality. No entanto, perceba: o livro está focado apenas em teorias. Ao mostrar, por exemplo, a não-neutralidade religiosa da física ou da matemática, Clouser se volta mais para uma filosofia da matemática do que a sua prática propriamente dita. Isso não é errado, mas não deve ser a única coisa importante a ser feita – caso contrário, teremos aqui uma perigosa noção, apontada por James K. A. Smith, e chamada de mentalismo ou intelectualismo, de que basta pensarmos os fundamentos teóricos da realidade à luz do cristianismo e a nossa prática cristã cotidiana decorrerá automaticamente. Não, nós não somos aquilo que pensamos, mas aquilo que amamos, e as atitudes que decorrem desses amores. Assim (como já apontou Bourdieu), nossas práticas e o ambiente material que as circundam têm uma influência e significado que é irredutível à reflexão teórica.

O mentalismo pode estar escondido em vários lugares e, como aponta Smith, é um resquício Iluminista que, infelizmente, ainda pode se esgueirar em nossas reflexões cristãs. Cito mais exemplos disso, começando pela tecnologia. Nela, encontramos a comum e velha noção de que “a tecnologia é (moralmente) neutra, e que qualquer avaliação moral só se volta para seus usos específicos”. Essa noção é problemática por vários motivos. Don Ihde, em Instrumental Realism, por exemplo, nota como essa noção nos afasta de pensar a tecnologia – se a tecnologia for uma mera aplicação de ciência, nossa atenção se voltará, obviamente, para a ciência, uma vez que nela se encontrará as ideias básicas e importantes que guiarão as tecnologias (ou seja, os usos). Um raciocínio semelhante pode ser feito a todas as outras áreas. Se economia simplesmente decorre de uma visão sobre política, então vamos apenas estudar política. Se saúde decorre de alguma visão sobre biologia e antropologia, então vamos estudar apenas biologia e antropologia. Se arquitetura e decoração de interiores decorrem de alguma visão sobre artes e estética, então vamos estudar apenas artes e estética. O impulso de estudar cosmovisão acaba se direcionando apenas para uma “filosofia das coisas” e seus fundamentos teóricos e intelectuais. Já as próprias “coisas” são interpretadas como fatos dados e brutos, inertes a qualquer tipo de “uso” ou atribuição de conformidade a algum tipo de cosmovisão.

Posso estar errado, mas existe algo que me incomoda no próprio modelo de “estrutura e direção”, proposto por Albert Wolters, e amplamente utilizado nos nossos estudos. Me parece que o modelo apoia o tipo de raciocínio que apontei: o conceito de “estrutura” parece representar a matéria bruta e neutra, e a “direção” nossa imposição de ideias ou “usos” a partir de uma teologia ou filosofia geral das coisas. Não creio que as coisas sejam tão simples. Isso começa do próprio fato de que o modelo de Wolters parece não nos oferecer uma forma segura de diferenciar o que é estrutura e o que é direção, e isso pode gerar bastante discordância entre cristãos. A realidade material, e principalmente os produtos da cultura, apresenta uma mistura muitas vezes inseparável entre estrutura e direção. Lembre-se que os israelitas fiéis não “usaram” um ídolo pagão simplesmente colocando-o no templo, mas o destruíram. Colocar a coisa no “lugar certo” ou “usá-la corretamente” não é algo óbvio. O que é o “uso adequado”, conforme algum tipo de cosmovisão?

Além disso, essa concepção parece supor que os “usos” sempre decorrem de ações premeditadas, resultantes de uma deliberação intelectual rigorosa por meio de princípios e postulados teóricos. O problema com isso é que nós não apenas somos incoerentes com aquilo que sustentamos intelectualmente, mas que, além disso (e ainda mais importante), a prática em si excede qualquer explicação teórica que pode ser dada sobre ela. Uma simples avaliação intelectual das nossas práticas não consegue esgotar o sentido e a importância daquilo que é viver, na prática, uma cosmovisão – e, no caso do cristão, sob o senhorio de Cristo. Isso, é claro, não invalida o trabalho que podemos fazer nas áreas mais teóricas (como, por exemplo, as obras de Vern Poythress sobre matemática, lógica, sociologia, etc.), mas relativiza sua importância. Sempre há o risco de aprendermos a pensar os fundamentos da matemática de forma teológica, mas praticá-la de formas completamente diferentes.

Assim, temos que nos voltar para, como diz o filósofo católico romano Albert Borgmann, o significado moral da cultura material. Existe um trabalho de reflexão mais sério para ser feito com os produtos materiais de nossa cultura: agropecuária, saúde, esportes, tecnologias. Há um importante currículo de estudos de cosmovisão a ser desenvolvido nessas áreas e que, até o momento, têm sido bastante raros. Talvez tenhamos herdado alguma ideia de que o campo intelectual é a grande arena da batalha entre o cristianismo e suas visões rivais, e ignoramos que o mesmo pode acontecer nas áreas mais práticas e materiais de nossas vidas. Essas também precisam ser pensadas!

Já antecipo uma possível crítica: sim, eu reconheço que, ao sugerir que precisamos “pensar” as áreas práticas, o trabalho a que estou chamando também é, de certa forma, intelectual. Mas, ainda assim, é uma lacuna a ser preenchida, um “meio de campo” entre a reflexão intelectual mais teórica e as coisas que vivenciamos no nosso dia a dia. O trabalho intelectual a que estou chamando seria do tipo que nos ajudasse a tomar consciência e sermos intencionais a respeito de nossas práticas e ambientes, moldando nossas disposições e afetos em direção ao senhorio de Cristo.

Posso também prever uma objeção: alguém poderia dizer que o motivo pelo qual não encontramos estudos de cosmovisão nas áreas como saúde, agropecuária e esportes é que essas são áreas mais especializadas, e como não temos muitos cristãos ainda trabalhando com cosmovisão, “não dá tempo” de desenvolver esses estudos, e teríamos que focar em questões “mais fundamentais”. Bem, me desculpe, mas acredito que isso é mentira, e talvez até hipocrisia. Você já se levantou hoje, talvez tenha tomado um remédio, comeu algum alimento e talvez no fim do dia vá jogar um futebol. Mas provavelmente não seja um artista, um cientista e político. Sinceramente, me parece que as áreas mais intelectuais e filosóficas é que são especializadas, e, a não ser que tenhamos uma visão mentalista ou intelectualista, não são tão fundamentais assim. Já os assuntos materiais são extremamente cotidianos, e talvez sejam até mesmo os que causem um impacto maior na igreja e sua reflexão sobre o senhorio de Cristo em todas as áreas da vida humana.

Por fim, penso que existe um outro motivo, talvez de ordem mais prática, que nos afaste desses temas. O fato é que vivemos em um paradigma de mercado onde os elementos da cultura nos são simplesmente dados como produtos ou serviços, os quais consistem apenas em uma “infraestrutura” neutra a partir da qual tomamos nossas decisões e fazemos o uso que julgamos mais adequado. Borgmann, no mesmo artigo citado anteriormente, nota como a própria cultura ocidental parece estar organizada de acordo com essa dicotomia entre estrutura e direção, entre os elementos e seus usos, entre meios e fins (o autor dá o nome a isso de “paradigma de dispositivo). O problema com esse pressuposto é que ele supõe ingenuamente a neutralidade de nossas infraestruturas de produção, e deixa de perceber como elas direcionam a coletividade a rumos bem específicos e definidos, levando a crises já bem reconhecidas por todos nós, como a crise ambiental ou em direitos humanos.

E é aqui que surge a dificuldade: parar para considerar a possibilidade de que não podemos abstrair nossas vidas das infraestruturas de produção e consumo em que vivemos nos levará a indagações sobre até que ponto somos responsáveis (ou cúmplices) em uma grande rede de relacionamentos e cadeias produtivas que estão além do nosso controle. Seria a solução nos retiramos em uma comunidade amish? Ou será que deveríamos boicotar empreendimentos que sabemos que contém práticas moralmente erradas? Mas o que fazer com aqueles que não temos como saber o que fazem? Talvez seja mais fácil abstrair nosso papel e deixar tudo a cargo de alguma mão invisível, mas sabemos que isso não vai funcionar. Em suma: lidar com a cultura material nos colocará em contato com duas questões complicadas e já discutidas na literatura: o Problema das Muitas Mãos e o Problema da Cumplicidade Material (neste último caso, felizmente, temos alguns cristãos desenvolvendo alguma reflexão). Podemos nos sentir impotentes diante dessas realidades, mas temos que encará-las. Há, pelo menos, um elemento positivo nas suas existências: elas ajudam a dissipar qualquer otimismo ou triunfalismo ingênuo visando uma transformação radical da sociedade.

O que aconteceria se tivéssemos manuais de cosmovisão cristã voltados para essas áreas mais cotidianas? Será que não poderíamos pensar em livros introdutórios reunindo reflexões sobre essas áreas? A escassez de material (principalmente em língua portuguesa) é grande. No que resta desse artigo, quero fazer breves comentários e apontar algumas referências que encontrei nos últimos anos sobre alguns desses assuntos. No entanto, muitas vezes ainda são obras grandes e de teor acadêmico, demandando bastante estudo e pesquisa. O ideal mesmo é que esses trabalhos pudessem se tornar estudos mais básicos, e agrupados em algum tipo de currículo ou livro de introdução.

Saúde – como vivemos corporalmente

Infelizmente, a maioria das abordagens cristãs em saúde ou são simplistas e ingenuamente otimistas (“Jesus curava as pessoas, hospitais foram criados por iniciativas cristãs, logo é muito bonito que o cristão sirva o próximo na área da saúde) ou se focam apenas em questões pontuais de bioética (aborto, eutanásia, etc). É difícil encontrar trabalhos que reflitam sobre qual o telos que desejamos com as práticas da saúde e como a narrativa cristã diverge da narrativa moderna nesse ponto. Este texto, publicado no Tuporém, faz uma introdução a essas reflexões, contrastando o sofrimento piedoso na visão cristã com o projeto baconiano de resolver todos os problemas de saúde por meios tecnológicos. O artigo se pauta na obra To Relieve the Human Condition: Bioethics, Technology and the Body, de Gerald McKenny, que eu diria que é seminal nesse assunto. Outras obras recomendadas são God, Medicine and Suffering, de Stanley Hauerwas e Reclaiming the Body: Christians and the Faithful Use of Modern Medicine, de Joel Shuman. Em todos esses estudos, nota-se a importância de resgatarmos uma visão cristã do corpo, de forma a entender no que consiste a excelência corporal que necessitamos (ou seja, a saúde) para glorificar a Deus. Isso deveria nos levar até mesmo a pensar no sentido do senhorio de Cristo sobre nossos exercícios físicos e escolhas nutricionais, numa intersecção com as áreas de esportes e alimentação.

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Alimentação e gastronomia – o que comemos e bebemos

Acredite: já presenciei cristãos falando que os estudos de cosmovisão se aplicariam a praticamente todas as áreas, excetuando-se, talvez, gastronomia. Bem, não precisaria dizer que a pessoa que disse isso, além de ser um intelectualista aos moldes descritos acima, também se alimenta extremamente mal… É uma triste realidade que essa questão seja ignorada por muitos de nós, e que, na verdade, até quando nos propomos a tocar nesses assuntos, alguém até possa nos perguntar se não somos adventistas, e o diálogo se limite apenas a “o que posso e não posso comer, de acordo com a Bíblia?”. Para combater essas visões, sugiro duas coisas bem simples: em primeiro lugar, assista a série de documentários Cooked, de Michael Pollan (ou leia algum de seus livros). Você não precisa concordar, mas deve perceber que existe muito a ser pensado na forma como nossas sociedades ocidentais lidam com comida. Então, leia o pequeno livro A Filosofia Cristã da Alimentação, de Peter Bringe, e perceba a profundidade do tema à luz da fé cristã. Você, então, pode continuar e ler Alimento & Fé – Uma Teologia da Alimentação, de Norman Wirzba, e perceber o tamanho das dimensões teológicas por trás da comida. Eu acho no mínimo curioso que estudos sobre sexualidade sejam vistos como altamente necessários nos meios cristãos, mas estudos sobre comida sejam vistos como passatempos ou coisas praticamente irrelevantes, sendo que tanto o sexo como a comida são tidos como imagens tão poderosas nas Escrituras (Cristo é tanto nosso esposo como nosso pão), e, mesmo em outras culturas, sempre tão relacionados ao senso humano do sagrado. Pensamos na lascívia e ignoramos a gula, sem perceber que o vício da incontinência – o deus-estômago – é o mesmo que opera em ambos.

Agropecuária – o que cultivamos e do que cuidamos

A questão ambiental surge com força nesses assuntos, bem como a questão dos hoje chamados direitos animais. Confesso que meu pouco estudo na área limita meus comentários apenas a perguntas. Até que ponto podemos explorar o mundo criado, tratando-o, para utilizar o conceito de Heidegger, como uma reserva permanente de recursos? Por outro lado, os progressos tecnológicos realmente têm trazido benefícios, como a redução da fome em escala global. Mas qual o preço disso? Será que não existe um sentido próprio na vida vegetal e animal, colocado pelo próprio Deus, que deve ser respeitado? Animais foram criados para serem confinados? É interessante que, particularmente e como cristão, eu creio que podemos concordar com a alegação de muitos ativistas veganos e de direitos animais com relação a maus tratos na criação (pelo menos nesse ponto). Mas seria o “boicote” uma opção válida? Voltamos ao problema da cumplicidade material. Não obstante, se antes falei que as áreas que estamos lidando são extremamente cotidianas, o mesmo não acontece aqui: a maioria de nós hoje vive em regiões urbanizadas e bastante longe das questões de agricultura e pecuária. Isso já normalmente nos afasta de reflexões desse tipo e poderíamos perguntar se já não seria um dos motivos desses problemas que estou trazendo.

Alguns rumos interessantes para uma reflexão cristã sobre o assunto podem ser encontrados na obra de Wendell Berry (por exemplo, The Unsettling of America: Culture & Agriculture), e na excelente tese de doutorado, com base na filosofia reformacional, de Petrus Simons, intitulada Tiling the Good Earth: The Impact of Technicism and Economism on Agriculture. Uma abordagem cristã para as questões ambientais está em The Environment and Christian Ethics, de Michael S. Northcott. Mas tenho certeza de que vários leitores poderiam indicar outras obras.

Arquitetura e urbanismo – onde vivemos

Nossa típica falta de atenção às coisas materiais não inclui apenas o corpo e a comida (e a forma de sua produção), mas também os lugares onde habitamos. Muitos de nós, por exemplo, têm que trabalhar em ambientes fechados, sem janelas, sob luz artificial, e, na verdade, muitas vezes nós nem mesmo nos lembramos ou dedicamos dois minutos para abrir uma janela enquanto estamos absortos em nossas telas e livros. Talvez a facilidade e a fascinação que temos com a promessa tecnológica de “em qualquer hora e lugar” nos tenha levado a desprezar preocupações com o lugar imediato: estamos trancados nos nossos quartos, escritórios e home-offices enquanto a rua lá fora está cheia de concreto sujo e pichado. Pensar nos lugares e ambientes se tornou uma preocupação leviana e cara, um assunto “gourmet”, especialidade apenas do marketing e do turismo. E, afinal, porque pensar em como organizar o nosso espaço físico se a ideia de distância espacial é aquilo que mais desprezamos? Nossos transportes devem levar nós e nossas coisas o mais rápido possível para onde quer que desejemos, e caso não possam, nós simplesmente “convertemos” as coisas em zeros e uns e as transmitimos por fibra ótica. Tudo deve estar ao alcance da mão e dos olhos. É claro que ainda valorizamos o lugar, de certa forma, mas apenas quando eles nos são oferecidos como experiências de consumo por meio do turismo. De resto, a maior parte do espaço urbano hoje pode ser mais entendido como o Marc Augé chama de não-lugares, ou seja, lugares estruturados apenas em função de transportes rápidos para evitar o problema sério que a modernidade tem com a distância espacial.

Tudo isso nos deveria levar a pensar: não existe muito mais sentido para os espaços, lugares e construções que habitamos que simplesmente empecilhos espaciais a serem superados ou experiências de consumo? Como poderíamos projetar lugares que realmente transmitissem nossa narrativa sobre o senhorio de Cristo sobre todas as coisas? Tenho visto que a arquitetura da maioria das igrejas hoje (se é que se pode dizer que há alguma) não tem se preocupado muito com isso, e prefere reproduzir outras narrativas ou liturgias seculares – como diz Smith, a do shopping center ou do auditório de palestras. Não haveria uma teologia cristã do lugar? Leonard Hjalmarson faz essa pergunta e tenta respondê-la em No Home Like Place: A Christian Theology of Place. Craig G. Bartholomew também tem uma obra completíssima contendo uma teologia bíblica do lugar, uma revisão da filosofia ocidental sobre o lugar, e direções práticas para cristãos: Where Mortals Dwell: A Christian View of Place for Today. Por fim, não podemos deixar de citar The Space Between: A Christian Engagement with the Built Environment, de Eric O. Jacobsen.

Lazer, esportes e jogos – como nos divertimos

Temos uma excelente obra em português aqui: Futebol é Bom para o Cristão: Vestindo a Camisa em Honra a Deus, do nosso querido Rev. Emílio Garofalo Neto. Emílio tem trabalhado bastante a questão dos esportes, lazer e entretenimento à luz da cosmovisão cristã, e no seu livro (que, afinal, é um extrato de sua tese de doutorado) você pode encontrar referências valiosíssimas para outros estudos falando sobre teologia e esportes. Podemos imaginar como muitos estudos nessas áreas são vistos com desdém por muitos cristãos (normalmente do tipo mais intelectualista), mas, acredite, há muito trabalho sério que pode ser feito sobre a não-seriedade (é irônico, mas verdadeiro). Veja, por exemplo, a entrevista com Paul Heintzman que apresenta seu livro Leisure and Spirituality: Biblical, Historical, and Contemporary Perspectives, uma introdução bastante completa e abrangente contendo uma teologia bíblica do descanso e lazer e incursões valiosíssimas dentro da área acadêmica que se intitula hoje Leisure Studies (ou Estudos do Lazer). A Bíblia leva o descanso a sério, e nós também deveríamos.

Ligada a essa área está também o campo de estudos que hoje se intitula Game Studies, ou estudos do jogo, a qual muitos atribuem como obra seminal o trabalho de Johan Huizinga, Homo Ludens. Huizinga é genial ao definir o jogo e o elemento lúdico e apontar o seu papel fundamental na formação da cultura. E em épocas onde vemos o crescimento absurdo tanto dos jogos digitais como jogos de tabuleiro, preocupações constantes sobre vícios dos adolescentes e jovens com relação a isso, e até as promessas, usos e grandes desenvolvimentos de metodologias de gamificação (ou ludificação), pensar o jogo à luz da narrativa cristã se torna uma tarefa importantíssima. Aliás, jogos, afinal, são narrativas? Ou seriam dramatizações – e aí nos aproximaríamos das ideias de teodrama em Von Balthasar e Vanhoozer? Começo a fazer essa e outras reflexões em um artigo recentemente publicado no Tuporém, Cinco elementos dos jogos e o que eles nos falam sobre Deus.

Indústria, eletrônica, usinagem, hidráulica – as infraestruturas do dia a dia

Talvez eu esteja demorando para falar sobre tecnologia, mas você deve ter reparado que ela se faz presente em praticamente todos os itens abordados anteriormente. Afinal, é impossível pensar em aspectos materiais da cultura sem pensar em tecnologia, principalmente em nossa sociedade tecnológica de hoje. E aqui precisamos comentar especificamente sobre a indústria e o sistema de produção moderno. Felizmente também temos vários autores cristãos fazendo ótima filosofia da tecnologia para começar a abordar essas questões, como Filosofia da Tecnologia: uma introdução, dos autores reformacionais Maarten J Verkerk, Jan Hoogland, Jan van der Stoep e Marc de Vries. Verkerk, inclusive, tem outra interessante obra sobre organização industrial de uma perspectiva reformacional: Trust and Power on the Shop Floor: An Ethnographical, Ethical, and Philosophical Study on Responsible Behaviour in Industrial Organizations.

É interessante, aqui, refletir sobre o desenvolvimento e papel das tecnologias operando como formas de isolamento, transmissão e conversão de fenômenos como força, energia e informação. Podemos até mesmo traçar uma breve história do desenvolvimento tecnológico a partir do objeto dessas operações: o advento da engenharia mecânica nos trouxe formas de isolar, transmitir e converter forças, em seguida, a eletricidade como a própria abstração da energia (e suas operações de isolamento, transmissão e conversão); e, por fim, as tecnologias de informação, operando sobre as tecnologias elétricas e mecânicas, como forma de isolar, transmitir e converter informação.

Qual o impacto cotidiano disso? Bem, existe uma ampla área de reflexão a ser feita sobre as infraestruturas já tidas como óbvias (ou neutras) em nossa vida urbana: sistemas de transmissão de energia elétrica, sistemas de água e esgoto, e todos os aparatos tecnológicos que lidamos no dia a dia, desde carros a eletrodomésticos. Muitos de nós somos engenheiros e técnicos que passam a vida trabalhando com usinagem, hidráulica e eletrônica. Certamente não podemos desprezar a glória de Deus revelada nessas áreas, bem com os aspectos criacionais, os efeitos da queda e as esperanças da redenção. Só que, aqui, mais uma vez, podemos voltar ao problema da cumplicidade material e das muitas mãos. Como professor de eletrônica digital, costumo até mesmo brincar com meus alunos que estou apenas ensinando eles a darem dinheiro para as grandes empresas fabricantes de microeletrônica. Sem nossa grande infraestrutura produtiva, nossas atividades comuns na área da tecnologia caem totalmente por terra. O que isso deveria significar? Infelizmente, não conheço (ou pelo menos não me lembro) de cristãos tratando desses assuntos especificamente, com exceção de algumas abordagens mais gerais na filosofia da tecnologia.

Tecnologias de comunicação – como nos comunicamos

Faço questão de deixar essa área por último, neste artigo, porque ela é normalmente a que mais recebe atenção, e meu propósito aqui é mostrar o que está sendo ignorado. É, de fato, a primeira que pensamos quando falamos de tecnologia – a ponto, como vimos, de ignorar como a tecnologia também está em operação em todas as outras citadas anteriormente. Estamos falando dos celulares, tablets, gadgets eletrônicos e a internet. Existe bastante coisa a ser dita, mas não quero me alongar aqui. Você já pode encontrar diversos textos sobre isso no Tuporém e excelentes livros já estão começando a ser publicados aqui no Brasil, como Moldando um Mundo Digital: Fé, Cultura e Tecnologia Computacional, de Derek Schuurman (Editora Monergismo) e Sabedoria Digital para a Família, de Andy Crouch (plataforma The Pilgrim). Estamos ainda na expectativa de alguma publicação em português de From the Garden to the City, de John Dyer e Habits of the High-Tech Heart: Living Virtuously in the Information Age, de Quentin Schultze. Por fim, o próprio James K. A. Smith é excelente e bastante perspicaz ao dedicar algumas das páginas (162-173) de Imaginando o Reino para explorar as liturgias do smartphone e das redes sociais. Vale a pena conferir.

Fernando Pasquini Santos é formado em Engenharia de Computação e professor de Engenharia Biomédica na Universidade Federal de Uberlândia. Além do ensino e pesquisa nessas áreas, também se interessa em situar o desenvolvimento e interação com tecnologias à luz da narrativa cristã. Também é presbiteriano, pianista, casado com a Jemima e pai da Suzana.
Você é aquilo que ama. Mas pode ser que você não ame o que pensa que ama.

Nosso coração é moldado fundamentalmente por tudo o que adoramos. Talvez sem perceber, somos ensinados a amar deuses rivais em lugar do verdadeiro Deus para o qual fomos criados. Embora tenhamos a intenção de moldar a cultura, nem sempre temos consciência de quanto a cultura nos molda. Em Você é aquilo que ama, James K. A. Smith nos ajuda a reconhecer o poder formador da cultura e as possibilidades transformadoras das práticas cristãs, redirecionando nosso coração para o que de fato merece nossa adoração.

Smith explica que a adoração é a “estação da imaginação”, capaz de incubar nossos amores e anseios de tal modo que os nossos engajamentos culturais tenham sempre Deus e o reino como referenciais. É por essa razão que a igreja e o culto em uma comunidade local de crentes devem ser o centro da formação e do discipulado cristãos. O autor engaja o leitor fazendo um uso criativo de filmes, obras de literatura e músicas e trata de temas como casamento, família, ministério de jovens, fé e trabalho. Além de tudo, também sugere práticas individuais e comunitárias para moldar a vida cristã.

Publicado por Vida Nova.

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