Recentemente, publicamos um comentário de caso no AMA Journal of Ethics intitulado “O que os médicos e os capelães devem fazer quando um paciente acredita que Deus quer que ele sofra?”, que nos fez pensar em sofrimento, medicina e nossas próprias convicções como cristãos. Como recém-formados na faculdade de medicina, descobrimos que é importante conversar sobre isso não apenas com nossos colegas médicos, mas também com nossos amigos e pastores, tanto para que aprendamos sobre o sofrimento em seu trabalho quanto para oferecer uma perspectiva interna sobre a medicina moderna – um empreendimento que vemos como uma força particularmente poderosa e confiável, e que raramente é abordada no púlpito. Se aqueles que trabalham com medicina realmente agem como os “novos sacerdotes” da modernidade, esperamos que pastores, padres e outros irmãos entrem nessas conversas nas intersecções entre teologia, medicina e cultura, trabalhando com elas e questionando-as.
Testemunhar uma pessoa em sofrimento é uma experiência comum entre os médicos. Às vezes o sofrimento é bastante ordinário (uma tosse ou um pequeno corte). Outras vezes, é intratável, excruciante e sem sentido – a espinha dorsal repleta de tumores, o câncer pediátrico, o abuso infantil. As pessoas em profissões de saúde são um tanto estranhas, pois sentem um desejo peculiar (os antigos diriam “chamado”) para se mover em direção a tais dores na esperança de uma cura.
Ajudar aqueles que estão sofrendo tem um senso de nobreza que é difícil de descrever. Há uma profunda e imediata retidão nisso – uma sensação de bondade, realização profissional e euforia vicária que pode servir de combustível para longas noites na biblioteca, enfermaria ou sala de operações. Não surpreende, portanto, que muitos cristãos busquem uma vocação na medicina como uma forma de seguir a Cristo. Que melhor maneira de agir como as mãos de Cristo do que servir os doentes e em sofrimento – trabalhar como curadores diante dos poderes e patologias que ameaçam a integridade do corpo?
No entanto, deveríamos dar uma pausa no desejo de buscar qualquer bem de forma excessiva. O teólogo anglicano Rowan Williams recentemente chamou isso de “a toxicidade da bondade“. Aristóteles consideraria isso um “vício”, enquanto Paulo rotularia como idolatria. Independentemente da terminologia, o desejo de buscar um objetivo aparentemente bom ou eliminar um fato ruim, quando desimpedido e descontrolado, pode produzir um dano paradoxal. Tomando emprestada uma metáfora de nossos estudos em química, quando nos esforçamos para dissolver problemas em uma solução, muitas vezes um novo problema rapidamente se precipita.
Dadas as admoestações de Williams, Aristóteles e Paulo, nos perguntamos com o que essa precipitação se parece em nossa era, na qual as poderosas soluções da medicina para o sofrimento tornaram-se culturalmente tão enraizadas que raramente são examinadas (quanto menos contestadas) pelas instituições médicas ou pela igreja. Afinal, deveríamos mesmo questionar um objetivo (eliminar o sofrimento) que goza de aceitação quase universal, uma rara área de consenso em uma cultura cada vez mais fragmentada?
Acreditamos que sim – pois, sem esse exame, estamos propensos a ignorar as maneiras pelas quais as tentativas da medicina moderna de aliviar o sofrimento podem, paradoxalmente, gerar mais sofrimento. Além disso, podemos ignorar as maneiras pelas quais os trabalhadores e pacientes de saúde cristãos são chamados a práticas distintas em face do sofrimento – práticas que só fazem sentido à luz da vida, morte e ressurreição de um Salvador que não procurou evitar e nem exaltar o sofrimento, mas transformá-lo.
Nossa obsessão cultural pelo alívio do sofrimento não é recente nem acidental. O teólogo e eticista católico Gerald McKenney escreve em seu livro To Relieve the Human Condition: Bioethics, Technology and the Body [Aliviar a Condição Humana: Bioética, Tecnologia e do Corpo] que Sir Francis Bacon (filósofo e cientista do século XVI) foi o primeiro a defender explicitamente o alívio do sofrimento da humanidade tanto como um objetivo explícito e um imperativo moral. Bacon defendia um “utopismo tecnológico”, uma filosofia que não via qualquer doença ou enfermidade (pelo menos em princípio) como incurável. Embora o sofrimento e a morte fossem aceitos como elementos “dados” da condição humana antes de Bacon, o novo “Projeto Baconiano” defendia uma visão do ser humano que rejeitava essas contingências antropológicas e via a humanidade como um agente que utilizaria sua engenhosidade e recursos para superar ou “aliviar” sua condição.
É importante ressaltar que a visão de Bacon foi incorporada dentro de uma tradição que colocou limites sobre ela – ou seja, o cristianismo. Os cristãos na época de Bacon ligaram a meta de aliviar o sofrimento humano à compreensão mais ampla da vida e da morte encontrada nos credos e na tradição cristã. Uma preocupação com o sofredor e com o doente era mantida com o pano de fundo de em pulverem reverteris – “para o pó retornarás”. Mas, nos séculos que se seguiram a Bacon, a sociedade ocidental manteve o imperativo moral de aliviar o sofrimento ao mesmo tempo em que perdia qualquer tradição ou linguagem moral comum que especificasse ou instigasse a moderação nesse objetivo.
A herança baconiana da medicina moderna é um mito tecnológico que rejeita “os limites da cura” e “a mortalidade do corpo”, buscando apenas manter a vida e aliviar o sofrimento, mas para um telos que ela não pode definir, e muitas vezes às custas da própria vida que ela procura proteger e do sofrimento que ela procura eliminar.
A análise de McKenny em To Relieve the Human Condition foi publicada há duas décadas. Devemos perguntar como, então, o Projeto Baconiano se manifesta agora em 2018, e quais são as conseqüências dessa ética que defende um alívio desenfreado do sofrimento. Não precisamos procurar muito além dos problemas mais urgentes e reconhecidos que a medicina enfrenta hoje.
A crise opióide, embora complexa e multifacetada em sua origem, serve como um exemplo concreto dos perigos de uma eliminação ilimitada do sofrimento. À medida que os narcóticos ganharam força como um tratamento supostamente seguro e eficaz para qualquer tipo de dor, tanto os pacientes quanto os médicos viram o sofrimento físico como um problema a ser erradicado, em vez de uma parte desagradável, mas inflexível, de certas condições. A pressão sobre os médicos para aliviar o sofrimento levou ironicamente a uma epidemia de sofrimento.
A conversa sobre suicídio assistido por médico (PAS, physician-assisted suicide) também é assombrada pelo legado de Bacon. Enquanto nossos Estados consideram leis que permitiriam seu uso generalizado, os proponentes de tal legislação frequentemente apelam para uma linguagem de alívio do sofrimento (e não a busca pela saúde), esquecendo, talvez, “da indignidade da ‘morte com dignidade‘”. O alívio do sofrimento é elevado como o bem mais superior, até mesmo superior ao da própria vida (e, no caso do PAS, muitas vezes à custa da própria vida que ele procura honrar).
Ou considere a recente legislação envolvendo a tecnologia de triagem pré-natal para fins de detecção e subsequente aborto de crianças com deficiências. Grande parte da justificativa para a proteção dos direitos dos pais à informação obtida com essa triagem se concentra no sofrimento que uma criança com uma deficiência, como a Síndrome de Down, supostamente traria – tanto para o feto quanto para sua família. Assim, a benevolência é invocada como justificativa de proteção contra o presumido sofrimento do feto. Mas tal proteção é conseguida através da destruição – uma evidência da afirmação inquietante do teólogo e bioeticista Stanley Hauerwas de que cada vez mais procuramos eliminar o sofrimento eliminando o sofredor. T. S. Eliot escreveu: “A humanidade não pode suportar muita realidade”, e nega-a como se pudesse, pois nossa finitude, doença e a morte que todos nós, em última instância, enfrentamos, força o contato com as realidades corporais. Não surpreende que o Projeto Baconiano não tenha cumprido suas promessas de “aliviar e beneficiar plenamente a condição do homem”, dado o fato de que o sofrimento é um componente fundamental e inerradicável de nossa realidade física. O alívio absoluto do sofrimento não é apenas prejudicial em sua busca, mas praticamente impossível – inevitavelmente estimulando a desilusão quando o sofrimento ou a morte chegam para nós ou para os outros.
Dados os perigos que um desejo doentio de eliminar o sofrimento oferece, como seria uma resposta piedosa ao sofrimento físico e à limitação corporal da parte daqueles que seguem a Cristo?
Martinho Lutero demonstrou que a vida cristã é fundamentalmente agradecimento e arrependimento. Meister Eckhart disse algo semelhante – isto é, se você vai orar algo, ore “Obrigado”. Talvez o primeiro passo seja a gratidão pela nossa anatomia e pela realidade física, áspera, às vezes desajeitada, na qual nos encontramos como criaturas feitas à imagem de Deus e operando dentro de um mundo físico decaído.Também poderíamos agradecer pela medicina em si, e pela sua maravilha, por aqueles que a praticam e pela saúde de nossos próprios corpos e dos corpos de nossos vizinhos.
Uma segunda resposta fiel é o (talvez surpreendente) apelo ao arrependimento. Em “A Theology of Illness [Uma teologia da enfermidade]“, o teólogo ortodoxo Jean-Claude Larchet argumenta que a medicina moderna, em seu poder e obsessão por aliviar o sofrimento, transformou o médico em uma “nova classe sacerdotal”, efetivamente selando uma idolatria permanente da saúde nos corações de cristãos e não-cristãos. Na mesma linha, o teólogo e eticista Stanley Hauerwas escreveu que a medicina é uma “instituição pseudo-salvífica”, mantida pelos médicos como “novos sacerdotes”. Os pacientes compreensivelmente depositam fortes esperanças em médicos e instituições de saúde, particularmente quando se encontram em estados vulneráveis de doença e sofrimento. Ao mesmo tempo, frases comuns como “Aquele cirurgião salvou minha vida” carregam um tom estranhamente salvador. Podemos adorar em um prédio da igreja, mas muitas vezes confessamos no altar da saúde, recebendo remédios por meio de trocas que podem ser estranhamente sacramentais. Transplantes e transfusões assumem um novo significado como “corpo e sangue” literais.
Em meio a essa tentação, devemos nos lembrar da seriedade do fato de que, como escreve Larchet, “a saúde do corpo nesse mundo só pode ser precária e efêmera”. Servimos a um Senhor ressuscitado corporalmente e cujo próprio corpo suportou sofrimento, sendo quebrado por nós, e que ensinou que, como o eticista Allen Verhey coloca, a vida é um bem, mas não o bem maior, e que a morte é um mal, mas não o maior mal. Devemos, portanto, arrepender-nos de colocar esperança indevida na saúde e voltar-nos para Cristo, lembrando constantemente a nós mesmos e a nossos irmãos em Cristo de que nossa alegria última não está em nossa capacidade de evitar o sofrimento, mas em aprender a adorar bem na doença ou em saúde.
Um terceiro passo é um compromisso com a presença. A presença diante do sofrimento é um dos esforços mais moralmente exigentes em que qualquer pessoa pode se envolver, exigindo muita paciência, tempo e imaginação. Esse é provavelmente um dos motivos pelos quais cuidadores e médicos enfrentam o esgotamento em números tão altos. “Estar lá com os outros” e “sofrer com eles” são trabalhos longos e difíceis, particularmente em face de uma cultura que cada vez mais procura evitar o sofrimento ou terceirizar a tarefa da “presença” por meio de mídias sociais. Como Kate Bowler escreveu recentemente em Everything Happens For a Reason: And Other Lies I’ve Loved [Tudo Acontece Por uma Razão: E Outras Mentiras que Eu Amei], ela é grata pela presença de uma comunidade menonita em sua educação porque “eles insistem que o sofrimento nunca seja passado sozinho”. Ou como o filme de 2007 A Garota Ideal coloca: “Viemos para nos sentar. É isso que as pessoas fazem quando a tragédia acontece. Elas vêm e se sentam.
Vale a pena perguntar se estamos, de fato, sentados com nossos vizinhos sofredores. Sofrer juntos, particularmente quando o sofrimento não tem uma finalidade clara, esperança ou propósito, é fundamental para a história cristã, desde a sessão de amigos em silêncio e com pano de saco no livro de Jó até a maneira como Cristo esperou e chorou antes de ressuscitar Lázaro.
E com o choro de Cristo em mente, uma quarta e última resposta é recuperar o lamento. Existe um perigo inerente à crítica do objetivo baconiano da medicina moderna que tende a uma hipercorreção em algo como engrandecer o sofrimento e a buscar o sofrimento. Esta é uma distinção crucial: os mártires cristãos não buscaram o sofrimento, mas suportaram-no e receberam-no. Às vezes, a coisa mais piedosa que um cristão pode fazer quando está com dor é chorar.
Os Salmos fornecem uma estrutura importante para como isso pode ser feito: uma expressão honesta de nossas dores e queixas mais profundas, com o conhecimento de que tais gritos são ouvidos por um Deus que não “quebrará uma cana trilhada” (Isaías 42.3). Se a “lamentação” é a prática de se enfurecer interiormente na câmara de eco do eu, então lamentar é trazer nossos sentimentos honestos e sinceros perante o Senhor e em comunidade – não importa quão fracas, murchas e tímidas nossa confiança e esperança sejam naqueles momentos. O lamento se recusa a dar ao sofrimento a dignidade de explicações claras e teóricas, ao mesmo tempo em que se recusa a desviar o olhar dele. Ele significa que, quando encontramos nós mesmos ou nossos vizinhos no “tremedal de lama” do Salmo 40 ou no “leito molhado de lágrimas” do Salmo 6 (imagens que são menos metáforas do que a realidade para muitos doentes), nós clamamos, confiantes de que nosso criador, mantenedor e o redentor conhece nosso sofrimento e permanece firme.
Em um mundo no qual é cada vez mais fácil, em resposta à dor, recorrer ao solipsismo, ao truísmo, ao desespero ou à negação, o lamento nos permite exibir o sofrimento que é honesto, fundamentado na fé, com o conhecimento de que as promessas duradouras do Senhor são verdadeiras, e que sua palavra não retornará vazia, mesmo naqueles casos dolorosos em que “as trevas são meu único amigo” (Salmo 88), “meus ossos ardem como em fornalha” (Salmo 102) e “nosso homem exterior se corrompa” (2Coríntios 4.16).
É duvidoso que a medicina sozinha possa oferecer os recursos morais necessários para que seus praticantes e pacientes cultivem a aceitação da finitude da existência corporal, se arrependam de uma idolatria insidiosa da saúde, reconheçam a importância da mera presença diante do sofrimento e recuperem a prática do lamento. Portanto, se há alguma esperança de inspirarmos uma melhor resposta ao sofrimento, talvez isso se dê por meio de pacientes piedosos, alicerçados em hábitos e práticas piedosas, que possam servir de exemplo para aqueles que participam de seus cuidados. Como o teólogo moral William E. May escreveu certa vez: “O pesado fardo do heroísmo na medicina não recai sobre o médico, mas sobre o paciente e a família do paciente“. Para aqueles que seguem a Cristo, tal heroísmo é uma evidência do rei sobrecarregado a quem devemos nossa última esperança diante do sofrimento.
Traduzido por Fernando Pasquini Santos e revisado por Jonathan Silveira.
Texto original: Faithful Suffering and Medicine After “The Baconian Project”. Mere Orthodoxy.
John Brewer Eberly Jr., MD, é recém-formado na faculdade de medicina e bolsista da Theology, Medicine, and Culture Fellowship em Duke, que oferece “formação teológica para aqueles comprometidos com a saúde, doença e incapacidade à luz das boas novas de Jesus Cristo”. É assistente de pesquisa da Rede de Unidades de Medicina Materna-Fetal da UNC Chapel Hill. |
Ben Frush, MD, é recém-formado na faculdade de medicina e bolsista da Theology, Medicine, and Culture Fellowship em Duke, que oferece “formação teológica para aqueles comprometidos com a saúde, doença e incapacidade à luz das boas novas de Jesus Cristo”. É residente do primeiro ano em Medicina Interna e Pediatria na Vanderbilt University. |
1 Comments
Que artigo maravilhoso ! Mudou minha perspectiva sobre o sofrimento!!! Glória a Deus!!!