Como ler livros | Gedimar Junior

O evangelho da prosperidade que às vezes acreditamos | Tim Challies
03/mar/2025
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Alguns livros devem ser degustados, outros devem ser engolidos, enquanto alguns poucos devem ser mastigados e dirigidos.

– Francis Bacon.

Desde os tempos do Antigo Testamento, a leitura é uma importante ferramenta para a formação do ser humano. No livro de Josué, por exemplo, encontramos Deus falando: “Não deixe de falar as palavras deste Livro da Lei e de meditar nelas de dia e de noite, para que você cumpra fielmente tudo o que nele está escrito. Só então os seus caminhos prosperarão e você será bem-sucedido” (Js 1.8, ênfase nossa). Nesse trecho encontramos o próprio Deus ordenando ao seu servo manter uma rotina de leitura, meditação e exposição do texto da lei. A vida bem-sucedida dependeria de ele obedecer ou não a essa ordem.

Aplicando essa importância ao universo das profissões, pense o seguinte: como poderia um médico decidir o que fazer com o seu paciente sem nenhum embasamento teórico em mente? Seria possível ensinar filosofia sem antes sofrer para aprender o que Platão e Aristóteles escreveram? Portanto, para ser um médico bem-sucedido é preciso ler os livros de medicina, assim como, para ser um professor de filosofia bem-sucedido, é preciso ler os livros de filosofia. Sendo assim, a leitura é fundamental.

Há, dentro do universo da leitura, uma questão que julgo importante: se a leitura é fundamental, como devemos ler? Essa pergunta surgiu após a leitura que fiz de um trecho da obra Vida Intelectual de Sertillanges. No capítulo sobre leitura, ele disse o seguinte: “Saber ler e utilizar suas leituras é, pois, para o homem de estudo, uma necessidade primordial”[1]. Mas o que significa saber ler? Há caminhos para isso? E como podemos saber se estamos lendo da maneira que deveríamos? Este artigo buscará responder essas perguntas e a resposta destas perguntas certamente responderá à primeira.

 

A humildade como a arte do saber

Saber ler envolve ter um espírito de humildade. Sem a humildade ler 100 livros no ano não resultará em mais sabedoria. Os arrogantes não buscam aprender de ninguém a não ser de si mesmo. Eles colocam os seus óculos orgulhosos e encontram tudo no texto, menos o que os autores estão dizendo. Leitores com este perfil são ansiosos em postar os seus livros nas redes sociais sem ao menos ter lido as orelhas. São aqueles que após o término do primeiro capítulo, compartilham as suas críticas nas mídias sociais e tecem juízo de valor sobre aquilo que não sabem por inteiro. Os orgulhosos não leem os livros. Eles usam os livros para alimentar o seu orgulho. É por isso que eles não serão exaltados, pois, já se veem assim, embora a sua exaltação resulte da humilhação de um sofrimento profundo, onde só Deus conseguirá livrá-los.

O espírito humilde não despreza nenhuma ciência ou texto, não se envergonha de aprender com ninguém e mesmo que possua um repertório mais amplo de conhecimento sobre o assunto no qual se propõe a ler, ele não despreza as palavras que estão à sua frente. Esses preceitos, como disse o grande educador Hugo de São Vitor: “desiludem a muitos que querem parecer sábios antes do tempo”[2]. Portanto aquele que sabe ler, escuta e lê, com boa vontade e disposição, todas as coisas.

 

A jornada de como ler livros

Quando refletimos sobre o substantivo “jornada”, é consenso que estamos pensando nos verbos: andar, caminhar, movimentar, percorrer etc. Com outras palavras, jornada envolve uma ação, afinal, não tem como pensar nessa palavra sem ter em mente um telos ou uma imagem de alguém que está usando as suas pernas e o seu tempo em direção a algo. A leitura também possui um objetivo: lemos para aprender, para compartilhar e para crescer. Portanto, nesse sentido, a leitura sempre será ativa. Afinal, não tem como ler com os olhos paralisados. Eles precisarão acompanhar os símbolos a sua frente. Quanto mais caminharmos na leitura, mais a realidade do que lemos fará sentido para nós e o propósito final será cumprido.

Mas toda jornada demanda recurso. Por exemplo, se alguém planeja viajar, logo, precisará decidir qual recurso usará. Será um carro? Um avião? Ou um ônibus? No mundo da leitura, eu gostaria de sugerir três recursos que foram popularizadas pelos autores Mortimer J. Adler e Charles Van Doren em sua obra: Como ler livros[3]. Convido você, após a leitura deste artigo, que adquira e leia este livro, pois, ele é um daqueles livros que não são escritos todo ano.

Os autores oferecem, como primeiro recurso, a leitura elementar. Se eu perguntasse a você: Eu tenho uma Bíblia em português e outra na língua grega. Qual você escolheria? Para te ajudar na resposta, vou agora compartilhar o seu contexto. Você é fluente na língua grega e você sabe que o Novo Testamento foi escrito em grego. Portanto, você não precisa que alguém traduza a Bíblia para você, pois você domina a leitura elementar dela em seu próprio idioma. Com o seu contexto em mente, qual Bíblia você escolheria? Talvez eu nunca saiba a sua resposta.

Perceba que eu disse que uma pessoa fluente no grego domina a leitura elementar do idioma. Pois bem, a leitura elementar é exatamente isso. O leitor que optar por este recurso deverá ter em mãos livros sobre gramáticas ou dicionários. Falo isso, porque o compromisso da leitura elementar é saber o que diz a frase, o parágrafo ou o que a palavra significa. Para dar conta desse propósito, o leitor precisa saber identificar o sujeito, o verbo e o objeto. Da mesma forma, ele precisa ter em mente o significado das palavras. Portanto, a jornada de leitura precisa considerar esse recurso. Todo leitor deve sempre buscar crescer no conhecimento do seu e de outros idiomas. Caso contrário, ele poderá cometer equívocos afirmando, por exemplo, que a palavra “yellow” do vocabulário da língua inglesa significa laranja.

O segundo recurso de leitura é o inspecional. Imagine que você acabou de ganhar um livro sobre Jesus e recebeu um convite para falar sobre ele nas próximas horas. A possiblidade de você negar o convite é grande, não é verdade? (Eu negaria!). Por que você negaria? Um possível argumento é que você não teria propriedade para falar daquilo que não sabe. Aliás, para ler uma obra de 300 páginas, você precisaria de dias e não apenas de horas para finalizar. Mas acontece que você precisa falar sobre ele nas próximas horas. E agora?

A leitura inspecional certamente te ajudará com isso. Esse recurso aconselha que você, com humildade, leia, sem pressa, as orelhas do livro, a contracapa, o prefácio, a apresentação, os endossos e sobretudo o sumário. Veja nos índices remissivos quais são os autores ou assuntos que mais aparecem e observe no índice de passagens bíblicas quais trechos possuem o maior volume de citações. Certamente, com essas informações, você saberá dizer sobre o que o livro fala, embora não consiga expor os principais argumentos, o problema e a tese do livro.

A ideia aqui é analisar o livro superficialmente. Sobrevoe os capítulos e, se possível, leia as primeiras frases dos primeiros quatro parágrafos. Veja também os subtemas presentes em cada capítulo. Após isso, certamente você saberá dizer quais são os assuntos do livro, as principais referências, a sua estrutura e como ele reverberou nos primeiros leitores (o que você pode captar nos endossos).

Por fim, o último[4] recurso é a leitura analítica. Você já participou de uma conversa em que uma pessoa diz gostar de vinho, a outra diz que toma e você quer saber sobre o assunto para avaliar se vale a pena tomar ou não? A primeira pessoa (que fala que gosta) destaca apenas os efeitos experenciais do vinho. Ela diz que gosta do vinho porque ela se sente aceita pelos amigos. Ela também afirma que o vinho gelado é melhor porque você pode tomar como água. Mas ao ser questionada das razões, essa pessoa não consegue distinguir os tipos de vinhos e muito menos a melhor maneira de bebê-lo. Por outro lado, você ouve a outra que afirma tomar vinho. De forma mais calma, este inicia explicando como o vinho é feito, os tipos de vinho, as razões da existência desses tipos e, como bônus, ele te ensina a como degustar o vinho. Diante desta cena, pergunto: em quem você confiaria?

Usando a ilustração em nosso assunto, eu diria que a primeira pessoa não domina nem a leitura elementar. Porém a segunda representa alguém que tem conhecimentos da leitura analítica.

A leitura analítica tem como objetivo responder como o autor trabalhou o tema do livro. Nesse tipo de leitura, o leitor deve se atentar para: o gênero literário do texto (que tipo de texto você está lendo?), o problema da obra e a resolução do problema (o leitor deve ser capaz de o compartilhar em uma frase objetiva). Por fim, ele também precisará captar as ideias principais das partes e como elas se conectam com o assunto principal do livro. Dependendo da obra, esse processo pode levar semanas, meses e até anos.

Caso o leitor esteja diante de um autor estrangeiro, é aconselhável que, além de cumprir as tarefas da leitura analítica, ele ative a leitura elementar (estude o idioma do autor do livro). Certamente, esse foi o recurso usado pela segunda pessoa da conversa sobre o vinho. Embora o desafio pareça pesado, acredite, os melhores livros devem ser lidos assim.

Para concluir, antes de avançarmos, é importante dizer que existem diversos outros recursos de leitura. O que compartilhei aqui foram apenas informações sintetizadas do pensamento de Adler e Doren. Há muito a aprender com esses autores. Eu também diria que os três recursos apresentados devem fazer parte da vida de todo leitor que almeja a vida bem-sucedida. Isto é, quando o leitor tiver pouco tempo, que faça uma leitura inspecional. Quando ele tiver mais tempo, que faça a leitura analítica. Também reforço que ele nunca se esqueça de aplicar a leitura elementar, pois, as regras do idioma alteram com frequência e há diversos novos idiomas para aprender. Feitas essas considerações, passemos para o último problema do artigo que é: como saber se estamos no caminho certo?

 

O testemunho da leitura

Infelizmente, muitos acreditam que o testemunho de uma vida de leitura está ligado a quantidade de livros que possuem. Por exemplo, se você pudesse escolher entre um leitor que tem 5 mil livros na biblioteca e um leitor que tem cem livros, quem você escolheria para seguir no Instagram? Penso que boa parte escolheria o primeiro por uma questão óbvia: nós seres humanos, por natureza, buscamos pelas coisas grandes, e ninguém que quer ser grande buscará seguir quem não é. Ter muitos livros pode ser a imagem perfeita para quem quer ser grande, mas nem sempre ter muitos livros significa ter uma vida bem-sucedida na leitura.

Conheço uma pessoa, por exemplo, que se deixou levar pelos grandes, e passou a comprar todos os livros indicados por eles. Porém, após um tempo, ela sofreu com uma crise existencial tão profunda que seu desejo pela vida da leitura se foi. Diante disso, não seria mais prudente seguir quem tem menos livros? Óbvio que não, penso eu. Tanto ter muitos quanto poucos livros não deve ser o critério da vida bem-sucedida, mas a maneira como lidamos com os livros, este sim, é o selo do sucesso.

Mas como deveríamos lidar com os livros? Segundo C. S Lewis: “Aqueles que leem grandes obras lerão a mesma obra, vinte ou trinta vezes ao longo da sua vida”[5]. Leituras nestes termos, certamente resultarão naquilo que James Sire chamou de: “pensar com o livro”. Ou seja, o testemunho do saber ler envolve pensar sobre a realidade sendo guiado pelas leituras que fazemos. Sobre isso, Sire disse: “Em seu primeiro ímpeto, a leitura direciona o pensamento. Começamos a ler sujeitando-nos ao texto e seus significados primordiais começam a se formar. Quando o texto de uma grande obra ocupa a mente por inteiro, quando o leitor fica absolutamente absorvido pelo que está lendo, o mundo do texto torna-se o mundo do leitor”[6].

Se Sire estiver certo, e penso que sim, o verdadeiro testemunho do leitor não está no mundo externo (na quantidade de livros) mas sim no universo interno, isto é, na mente e no coração do leitor. Sendo assim, o sucesso da leitura não é aquilo que as pessoas conseguem ver. O sucesso da leitura se encontra no efeito que a obra causou no leitor. É por isso, que não existe um leitor genuíno que seja orgulhoso.  Não existe, porque o orgulho não permite que o livro envolva o leitor. Só o humilde conseguirá testemunhar a vida de leitura.

Os três recursos da leitura apresentados na seção anterior fazem todo sentido para perceber se estamos no caminho certo. Isto é, o verdadeiro leitor se preocupará em compreender o que realmente as frases significam. Para isso, ele estudará inglês, francês e português. Da mesma forma, sem ansiedade, ele se envolverá com a obra primeiro pela superfície, percebendo os temas, as referências bibliográficas e a estrutura da obra para, depois, de forma analítica, ler até ser envolvido pelo livro.

Por fim, gostaria de resgatar o que disse Deus ao seu servo Josué: “Não deixe de falar as palavras deste Livro da Lei e de meditar nelas de dia e de noite, para que você cumpra fielmente tudo o que nele está escrito. Só então os seus caminhos prosperarão e você será bem-sucedido”. Isto é, não se envolva com nenhum livro sem antes se envolver com o Evangelho. Pois ele, de fato, é a fonte confiável de transformação. Mas não se envolva com esse livro apenas uma vez ao ano, leia-o todos os dias, afinal, só por meio dele que você terá segurança para julgar os demais textos.


Notas

[1] SERTILLANGES, A.D. A vida intelectual. São Paulo: É Realizações, 2010, p. 139.

[2] VITOR, Hugo de São. A arte de ler. São Paulo: Kírion, p. 145.

[3] ADLER, Mortimer; DOREN, Charles. Como ler livros. São Paulo: É Realizações.

[4] Neste artigo, destaquei apenas três níveis de leitura. Na obra, há um quarto nível.

[5] LEWIS, C. S. Um experimento com a crítica literária. São Paulo: Unesp, 2005, p. 8

[6] SIRE, James. Hábitos da mente. São Paulo: Edições Vida Nova, p. 174.


Gedimar Junior é professor de Teologia e Filosofia no Seminário Betel Brasileiro. Formado em Teologia e Mestre em Hermenêutica pelo Betel Brasileiro. Mestre em Divindade pelo Seminário Martin Bucer e bacharelando em Filosofia pela Academia Atlântico. Atualmente, é editor-chefe da Revista Reflexão Teológica e Missiológica, organizador do projeto de pesquisa: Pensamento e obra de John Webster.

1 Comments

  1. Junior disse:

    Ótimo texto

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