Stranger Things – Amigos não mentem | Silas Chosen

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Há muito a se dizer sobre Stranger Things.

Não é sempre que uma obra de Sci-Fi pura cai tão perfeitamente no gosto de… bem, praticamente de sua timeline inteira do Facebook – ainda que ninguém chegue na série pelo seu aspecto de ficção científica. O que todos estão compartilhando, muitas vezes com o CapsLock ligado, tem mais a ver com a nostalgia do que até mesmo com a qualidade final da série.

Em quase todos os aspectos, a série acerta na mosca sua emulação do que cineastas chamam de “Amblin Feel”, ou o “Sentimento Amblin”. Em 1981, Steven Spielberg, midas do cinema, e o casal de produtores Kathleen Kennedy e Frank Marshall fundaram a Amblin Entertainment, produtora batizada com o nome do primeiro curta-metragem comercial que Spielberg havia dirigido. Através dela, eles produziram filmes como E.T. – O Extraterrestre, Os Goonies, Gremlins, De Volta Para o Futuro, O Enigma da Pirâmide, entre vários outros, funcionando muitas vezes como um “Selo Spielberg de Qualidade” para os filmes que Spielberg dirige ou produz. Outra forma de falar sobre o “Sentimento Amblin” é “Cinema Americano dos Anos 80”. Outra forma é dizer “Filmes da Sessão da Tarde”. Outra é “pura nostalgia”.

Numa pequena cidade do interior dos Estados Unidos, um garoto desaparece em meio a mistério. Seus fiéis e inseparáveis amigos decidem encontrá-lo, ao mesmo tempo que sua mãe se desespera para achar alguma evidência de seu paradeiro. Juntam-se a eles o xerife da cidade, um homem durão com bom coração, uma moça que está descobrindo os amores da vida, o irmão desajustado do garoto e uma menina com habilidades inexplicáveis que está tentando fugir do governo.

Humberto Eco disse em sua crítica do filme Casablanca que “Dois clichês nos fazem dar risada, cem clichês nos comovem”. E é mais ou menos assim que os roteiristas, diretores e criadores de Stranger Things, os irmãos Matt e Ross Duffer, atingem sua audiência ali, bem entre as costelas. Depois que você sobrevive ao frisson supérfluo do monte de gente que acha que “fazer referências a coisas legais” é sinônimo de qualidade, você chega numa série que realmente faz muitas referências a muitas coisas que são muito legais. Mas a série não usa isso como muletas e de fato cria personagens interessantes, com conflitos reais, mesmo que sejam personagens e conflitos que estamos “cansados de ver”, mas que estamos também com saudades de ver.

O nome mais famoso do elenco, Winona Ryder, interpreta uma mãe que vai descendo ao porão da loucura a cada evento inexplicável que bate à sua porta, tudo partindo do drama que é perder seu filho. O papel é na medida exata para a atriz, que parece muito à vontade interpretando uma personagem deslocada, inquieta, capaz de ser incoerente, mas cuja força motriz é o amor pelo filho. O trio de garotos que passa dezenas de horas nos finais de semana jogando RPG, se comunicam por rádio amador, tem interesse por ciência e sofrem bullying constantemente (os Nerds originais) agora se veem não só sem um membro importante de seu grupo – uma daquelas faltas que desestruturam a ordem das coisas –, mas também acompanhados por uma garota. E o fato de a garota ter habilidades sobrenaturais ou ter o cabelo raspado nem é o que incomoda: o mais desconcertante é o fato de ela ser uma garota, e os desdobramentos disso encaixam na boa e velha história de coming of age. Onze, a garota com superpoderes, está experimentando os primeiros passos de uma genuína amizade em sua vida; assim como a outra jovem garota, mais velha, que está aprendendo a diferenciar amor, sexo e amizade, enquanto lida com problemas na raiz de sua família.

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Um resumo meio desonesto de tudo isso: Stranger Things é simples. É extraordinariamente simples. Até mesmo o conceito ligeiramente rocambolesco de ficção científica que a série apresenta é meio simples. E você já viu antes.

A série funciona como uma viagem no tempo a uma época mais simples, sem deixar de mostrar o porquê da necessidade de olharmos para essa época mais simples. Ao mesmo tempo em que o governo é o grande vilão – mais por negligência e pragmatismo do que por puramente “maldade” –, um dos elementos mais gritantes da modernidade do texto da série, nós somos levados a entender algumas mecânicas morais que pertencem àquela época, em especial com o grupo de crianças que protagonizam a aventura. O esquema “Delórean Voador” da série não está só na estética, na temática e nas referências (Referências estas que, ao contrário de um infinito número de obras, não estão ali SOMENTE pela nostalgia, funcionando também como elementos importantes da narrativa. Observe as indiretas sutis e as nem tão sutis ao filme Tubarão). Quando Onze entra para o grupo de crianças, conhece um sistema de valores que é desconhecido para ela e praticamente para qualquer um que só assistiu o cinema dos últimos vinte anos. Esses valores resumem-se a “Amigos não mentem”. Isto é, por falta de palavra melhor, simples, direto, verdadeiro, quintessencial. E simples.

Nostalgia é um comércio que usa a saudade como moeda de troca. E quem, ao ligar a televisão hoje em dia e ver as notícias sem entender como chegamos a esse ponto, não sente saudades de uma época mais simples? Uma época em que verdades eram realmente verdades? A própria série nos conta que existem estruturas à nossa volta nas quais não podemos confiar e existem estruturas nas quais podemos. A fé nos amigos, a união da família – por mais pitoresca e quebrada que ela seja – um amor infantil que deixa marcas eternas, um beijo roubado que significa um monte de coisas que uma criança chama de “complicado” e, por causa disto, talvez só pudessem ser expressadas dessa forma.

Stranger Things não reinventa a roda. Não é a melhor série da galáxia, não é a revelação do ano. Mas é uma série muito boa. Entretém bastante, surpreende um pouco. Ela é mais uma demonstração do alto poder de agradabilidade da Netflix e é uma série que não mente para você. Muito provavelmente porque quer que você seja amigo dela.

E amigos não mentem. Não nesse mundo, e nem em nenhum outro.

Silas Chosen é roteirista, cineasta, publicitário, ilustrador e é viciado em cinema e histórias. Escreve para sites e programas de rádio sobre cinema, cultura pop e cristianismo desde 2004. Faz parte da 4U Films, ministério de cinema independente.

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