A Chegada – Precisamos conversar. Simplesmente conversar. | Silas Chosen

Por que o Antigo Testamento é importante para os dias de hoje? | Walter C. Kaiser Jr.
10/jan/2017
Edições Vida Nova 2017: O que esperar? | Jonathan Silveira
13/jan/2017
Por que o Antigo Testamento é importante para os dias de hoje? | Walter C. Kaiser Jr.
10/jan/2017
Edições Vida Nova 2017: O que esperar? | Jonathan Silveira
13/jan/2017

*Spoilers de A Chegada*

A ficção científica não é exatamente um gênero clássico. A narrativa clássica (clássica mesmo) aborda dois gêneros: a comédia e o drama. Os outros gêneros que estamos acostumados a ver em literatura e cinema são definições que apontam para as emoções que causam (terror, thriller, suspense, comédia) ou o ambiente e cenário no qual ocorrem (faroeste, fantasia, space opera). As definições clássicas não são métricas usadas até hoje, pois são muito restritivas. Como ignorar a aventura, o romance, o épico? Sem falar de subgêneros, como o Noir, o Whoddunit, ou a Ficção Social. O sci-fi é um dos gêneros mais importantes de todos, e normalmente ele é do tipo “cenário”, já que se chama de ficção científica qualquer coisa passada no futuro ou que envolva avanços tecnológicos, presença alienígena, viagens espaciais. Mesmo assim, a obra precisa seguir algumas regras para realmente entrar na classificação de sci-fi.

A ficção precisa ser científica. A ciência, os avanços científicos, o conhecimento em si, precisa estar na trama, pelo menos como pano de fundo. É por isso que Jornada Nas Estrelas é um sci-fi e Star Wars, não. Em Jornada Nas Estrelas, os avanços tecnológicos da raça humana criaram um novo paradigma social e o público segue as aventuras de personagens nesse cenário, entrando em embates filosóficos ou conflitos de puro “bandido vs mocinho” que, na maioria das vezes, são propostos por causa da situação de “futuro avançado” da história. Star Wars é uma space opera, uma fantasia onde a tecnologia ou a ciência em si importam muito pouco, e os conflitos são muito mais políticos, românticos, maniqueístas, entre outros. Você consegue transpor Star Wars, tomadas as devidas proporções, para outro cenário ou época. Blade Runner, Jornada nas Estrelas, Matrix e 2001 – Uma Odisseia no Espaço, não.

Se uma história é “somente” ficção científica, o que acontece raramente, ela provavelmente é muito chata. Ela ganha muito se for um “drama sci-fi” (como Não Me Abandone Jamais), uma “aventura sci-fi”, (o próprio Jornada nas Estrelas), um “noir sci-fi” (Minority Report) ou até um “horror sci-fi” (Alien, o Oitavo Passageiro). O conflito proposto pelo fundamento científico precisa eclodir em algo mais relacionável do que fórmulas ou extrapolações futuristas. Precisa falar de algo íntimo dos nossos corações para criar em nós algum elo.

Quando consegue fazer isso com qualidade, quando consegue criar uma ponte entre o inalcançável da ciência, da periferia do que conhecemos e nós, o sci-fi transcende a tudo e a todos. Consegue falar de coisas tão imensas, inexplicáveis e imensuráveis quanto livros sagrados também fazem, especialmente porque tanto o sci-fi quanto o sagrado conecta o universo a quem somos. O tempo e o espaço como extensões do nosso ser. Como li num artigo escrito por Bret McCracken, o sci-fi pode se tornar uma liturgia para o pensamento secular. Uma espécie de hino de louvor dentro da catedral da ciência.

Em 2016 estreou nos cinemas brasileiros A Chegada, do diretor franco-canadense Dennis Villeneuve. A trama é relativamente simples, daquelas que você vai pensar ser reprise. Naves alienígenas gigantescas aparecem ao redor do mundo em lugares aparentemente randômicos. Os governos do mundo todo se mobilizam para descobrir o que são, de onde vêm, quem está dentro delas e o que querem. Mesmo tendo acesso aos seus tripulantes, a comunicação não é muito efetiva. O governo americano, representado pelo militar interpretado por Forest Withaker e pelo agente da CIA interpretado por Michael Stuhlbarg, contata a linguista Louise Banks, papel de Amy Adams, na esperança que ela encontre uma solução para se comunicar com os extraterrestres. E rápido, já que o mundo entrou em colapso. O evento todo fez explodir os níveis de tensão política e armamentista entre os governos do mundo. Ao mesmo tempo, acompanhamos flashbacks da linguista, que parece ter perdido uma filha para o câncer há algum tempo.

A premissa dá o tom da ficção científica clássica, além do drama e da tensão. A Dra. Banks precisa resolver um problema intelectual, usando nada além de lógica, conhecimento, tentativa e erro. E precisa fazer isso rápido, pois a qualquer momento um governo menos paciente do mundo pode começar uma guerra interplanetária. Ou ainda atacar algum outro país do mundo, só para colocar as mãos numa dessas naves. As assustadoras criaturas em si não têm nenhuma semelhança com seres humanos e a “voz” deles mais parece o barulho de uma montanha raspando em outra. Talvez esses alienígenas nem entendam o que são seres humanos. Talvez nem entendam o que é tempo e espaço do mesmo jeito que nós humanos.

Escrita alienígena em forma de círculo

O primeiro triunfo vem quando a Dra. Banks consegue fazê-los escrever. É uma escrita estranha, formada pelo que parece ser mais um círculo aleatório de tinta do que qualquer outra coisa, mas é bem melhor do que silêncio. E muito aos poucos a linguista e as criaturas vão se entendendo. E quanto mais a linguista entende, mais sua mente sofre efeitos colaterais bem interessantes.

A Chegada é mais um daqueles filmes que consegue ser lançado num momento tão perfeito para o seu tema central que até parece planejado, quando ignoramos o fato de que provavelmente é um filme que está sendo planejado e produzido há pelo menos dois ou três anos. Aqui, a falta de comunicação, ora por medo, ora por ganância, cria um conflito em escala global que poderia muito bem aniquilar a todos, e nada mais era do que uma tempestade em copo d’água. Os alienígenas querem oferecer um presente para a humanidade. E tanto a nossa inabilidade de julgar quanto a nossa inabilidade de compartilhar bota tudo a perder. A cena em que todos os governos do mundo decidem romper a comunicação uns com os outros, sob protestos daqueles que sabem do que estão falando, é mais do que emblemática. É o cenário que estamos vivendo no dia a dia.

Leia também  Stranger Things - Amigos não mentem | Silas Chosen

As catástrofes políticas do ano de 2016, aliadas à tensão e polarização social, são sintomas de um problema muito mais intrínseco e, na verdade, mais simples do que parece. Como, num mundo onde a comunicação é massificada e você tem acesso a pessoas do mundo todo no conforto do seu celular, as pessoas conseguem criar barreiras de comunicação tão intransponíveis? Quando todo mundo tem medo do futuro, quer esse medo seja fundamentado em verdades ou não, fica óbvio. E é nesse ponto onde o filme consegue fazer o mais difícil e mais necessário para uma ficção científica. Coloca a ciência, o fantástico, o emocional, o global, o pessoal, o conflituoso e o dramático no mesmo lugar. Dentro do mesmo círculo.

Em suma, o presente dos alienígenas é a habilidade de “ver o futuro”. Para eles próprios, a percepção do tempo não é linear, é circular, de maneira que passado, presente e futuro se misturam no que pode ser chamado de “memória”. A Dra. Banks adquire essa habilidade assim que começa a aprender a linguagem dos alienígenas. Esse princípio existe no mundo real, é a hipótese de Sapir-Whorf, que em uma de suas vertentes teoriza sobre como é a linguagem que determina como a mente e a percepção funcionam, e não o contrário. Fazendo sua linguagem funcionar de determinada maneira, segundo a teoria, seu cérebro vai começar a interpretar o mundo à sua volta de outra forma. E o “pulo” do filme é que isso se estende ao tempo e ao espaço.

Não demora muito para percebermos que os flashbacks da Dra. Banks não são o passado, mas sim o futuro. Mais do que isso, ela começa a retirar informações de seu futuro próximo para conseguir resolver problemas atuais (e, estando no futuro, retira informações de seu passado com facilidade, já que o tempo não é mais uma linha e sim um círculo). A habilidade de se comunicar (tanto na língua alienígena quanto em chinês) faz com que a Dra. Banks, literalmente, salve o nosso planeta. Ela então descobre que o que o futuro reserva para ela é amor, vida, beleza, dor e morte. E decide seguir em direção a esse futuro.

Não querendo discutir aqui as questões mais clássicas de livre-arbítrio cósmico envolvido em viagens no tempo ou no calvinismo (Podemos mudar o futuro/destino? Quanto de nossas vidas é pré-determinado?), o importante aqui é a atitude da Dra. Banks. Não é que o conhecimento do futuro lhe remova o medo, é o contrário na verdade. Mas ela decide seguir em frente com ele, por causa da beleza e do amor que está nele, mesmo que seja por pouco tempo.

Termos medo do futuro, e mesmo assim pisarmos firme em direção a ele pode salvar nosso mundo. Em Cartas de Um Diabo a Seu Aprendiz, C. S. Lewis imagina como o diabo se diverte colocando o futuro como se fosse nosso carrasco, um lugar escuro onde a morte espreita. No final, a morte espreita a tudo e a todos e isso não deveria nos empurrar para a guerra ou a separação. No filme, a fatalidade e a impetuosidade das gigantescas naves negras, a bizarrice dos ETs, o ambiente enevoado onde habitam, tudo aponta para a indefinição do que é o futuro. E é atravessando a névoa que iremos transcender o tempo. Iremos transcender a nós mesmos.

A Chegada é um filme sem elos fracos, do design de produção às atuações, passando pela assombrosa trilha sonora e pela direção criativa de Villeneuve, que dá mais um passo (depois de Os Suspeitos e Sicario) na direção de se tornar um ícone do cinema. Mas é o que as entrelinhas do filme dizem, quase em forma de coral, o que o torna tão excelente e talvez tão eterno.

O louvor de A Chegada não é direcionado à ciência, é direcionado à nossa compaixão. À nossa necessidade de se comunicar, por si só um ato de transcendência. É um hino que conta sobre como não podemos ver o futuro, mas podemos mudar a maneira de olhar para ele. E dando alguns passos para trás, sobre como podemos perceber a pequeneza de um ser humano e o gigantismo do cosmos, do tempo e do espaço.

Nós podemos escolher, ou pelo menos acredito que possamos, se vamos fazer história unindo ou destruindo.

Só o tempo dirá.

Silas Chosen é roteirista, cineasta, publicitário, ilustrador e é viciado em cinema e histórias. Escreve para sites e programas de rádio sobre cinema, cultura pop e cristianismo desde 2004. Faz parte da 4U Films, ministério de cinema independente.

Deixe uma resposta