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Por que a esperança secular no progresso, antes tão poderosa e uma força tão atuante em nossa cultura, fracassou? Havia duas falhas de projeto na ideia ocidental de progresso que a levaram à derrocada. Chamarei a primeira de problema da natureza humana, e à outra de problema do esquecimento derradeiro.

O primeiro é o problema da natureza humana. Para os progressistas ocidentais, à medida que o conhecimento crescesse, a vida melhoraria. Contudo, isso pressupunha que o ser humano usaria o conhecimento de modo adequado, para o bem de todos. A esperança secular do futuro supunha que os avanços no conhecimento jamais seriam usados para aumentar o poder e a riqueza de um grupo ou de uma nação à custa dos demais. Havia o pressuposto de generosidade básica da natureza humana. H. G. Wells foi o principal avatar dessa premissa. Ele reconheceu que na Primeira Guerra Mundial os frutos do método científico foram usados para prejudicar outros. Que solução ele propôs? Um método científico mais rigoroso. Ele supunha que a violência da Primeira Guerra Mundial se deveu apenas a um comportamento irracional, uma falta de pensamento claro e racional e que o uso cada vez maior da razão e da educação resolveriam o problema. Não admira que a Segunda Guerra Mundial o tenha “alquebrado o espírito”, uma vez que a ideia que se tinha dos alemães é que eram cultural e cientificamente avançados, criadores da universidade voltada para a pesquisa moderna e, no entanto, recorreram ao seu conhecimento superior para destruir.

Uma maneira de revelar o equívoco da argumentação secular consiste em olhar para os horrores de Auschwitz e indagar “por que isso aconteceu?” Por que os nazistas fizeram o que fizeram?

Para H. G. Wells (pelo menos em 1922), os nazistas não seguiram o método científico e os ditames da razão humana. Essa resposta, porém, de que foram vítimas do pensamento irracional banaliza o mal do que aconteceu. Uma variação dessa mesma perspectiva básica é a de natureza marxista. Karl Marx acreditava que fôssemos produto de forças sociais, da estrutura de poder e que as pessoas se entregavam ao crime devido à injustiça sistêmica que as levava a agir daquela forma. Marx acreditava que o crime e a pobreza acabariam quando todos fossem igualmente donos dos meios de produção econômicos.[1] Insistimos, porém, que atribuir o genocídio em massa de Auschwitz a pessoas vitimadas por forças sociais é minimizar o mal ocorrido. De fato, é perder uma categoria para o mal humano.

Uma segunda resposta possível é que os nazistas eram simplesmente mais malignos do que as demais pessoas. Eram moralmente inferiores aos outros. Nós seríamos bons e decentes demais para fazer coisa parecida. Eles estão, portanto, abaixo de nós, são subumanos. No entanto, logo que tais palavras são pronunciadas, nós nos damos conta de que foi exatamente dessa maneira que os nazistas justificaram o massacre dos judeus. Eles os desumanizaram mentalmente, viam neles seres inferiores, um grupo perverso de pessoas e com isso legitimavam a violência imposta a eles. Tão logo dizemos que os criminosos de Auschwitz são moralmente inferiores a nós, começamos o mesmo processo de desumanização que os levou a excluir, a marginalizar e a destruir os judeus.

A única resposta viável a essa pergunta é esta: Auschwitz aconteceu por causa de alguma coisa profundamente errada com a natureza humana. Existe alguma coisa errada e deformada dentro de nós. Somos propensos ao egoísmo e capazes de enormes crueldades. Lord David Cecil resumiu esse defeito trágico quando disse depois da Segunda Guerra Mundial: “O jargão da filosofia do progresso nos ensinou a pensar que o estado selvagem e primitivo do homem ficou para trás […] Contudo, a barbárie não ficou no passado; ela está dentro de nós”.[2]

Uma versão em forma de romance desse veredito aparece no livro de William Golding, publicado depois da Segunda Guerra Mundial, O senhor das moscas (1954). Trata-se da história de um grupo de estudantes britânicos que ficam retidos em uma ilha desabitada. Romances anteriores como A ilha de Coral (1957), que ainda se norteava pelas premissas otimistas da esperança secular, contava a história de um naufrágio em que alguns jovens se salvam e criam uma espécie de paraíso idílico longe das influências maléficas da sociedade. Golding, que alude explicitamente à Ilha de Coral em seu romance, pinta um quadro totalmente distinto. Os jovens em sua história descambam para o tribalismo e a violência, matam-se e caçam uns aos outros. O romance era uma refutação à visão de Jean-Jacques Rousseau, que por muitos anos predominou no Ocidente, segundo a qual somos puros e bons; é a sociedade que nos corrompe, ensinando-nos a exploração. Não, diz Golding, o mal que vemos na sociedade é produto do que já se encontra em nossa natureza. Se começarmos uma nova sociedade do zero, traremos mesmo assim a corrupção dentro de nós.

C. E. M. Joad era socialista, ateu, professor de filosofia e convidado frequente de Brain Trust, programa de rádio da BBC que foi ao ar durante a guerra. Ele se converteu a Cristo depois da Segunda Guerra Mundial. Em seu livro, Recuperando a fé, o autor descreve como ele e seus colegas explicavam o mal no comportamento humano recorrendo a Marx ou a Freud. A crueldade humana era um “desajuste” psicológico e sociológico. Em seus círculos intelectuais, evitavam-se diligentemente palavras como “mal, pecaminoso e perverso” e se recorria, em vez disso, a descrições como “comportamento desajustado” ou “instinto agressivo”. O ser humano poderia ser reabilitado e afastado do comportamento egoísta e cruel se mudássemos simplesmente suas circunstâncias. Em pleno acordo com Rousseau ou Marx, Joad acreditava que se pegássemos um homem e o “colocássemos em um ambiente sadio […] fazendo com que se sentisse importante, mas não importante demais, evitando-se oprimi-lo ou limitá-lo, evitando cuidadosamente de inculcar nele sentimentos de culpa ou de inferioridade, ele se tornará […] um adulto sadio, alegre, eficaz, equilibrado e intrépido”.[3]

Joad diz que essa perspectiva, “tão presente no pensamento moderno”, não foi capaz de preparar ninguém para a Segunda Guerra Mundial. A visão moderna da maldade humana que ele “adotara impensadamente quando jovem” talvez fosse plausível nos “primeiros catorze anos deste século em que […] a condição da humanidade parecia estar melhorando”, mas agora essa visão da bondade, da razão e do progresso humanos havia “se tornado completamente implausível em razão dos eventos dos últimos quarenta anos”.[4] Ele se dera conta de que a ciência não havia melhorado o ser humano; melhorara apenas sua capacidade de conseguir o que desejava. “A ciência […] não é um fim; é um meio para a promoção dos desejos do homem”.[5]

Por fim, Joad faz uma observação pessoal:

Foi por termos rejeitado a doutrina do pecado original que nós, à esquerda, sempre nos decepcionamos; nos decepcionamos com a recusa das pessoas de agirem pela razão […] com o fracasso do advento do verdadeiro socialismo, com o comportamento das nações e dos políticos […] e, sobretudo, com o fato recorrente da guerra.[6]

Em suma, a ideia secular de progresso partia do pressuposto de que as barreiras ao progresso que tinha a raça humana estavam fora de nós, por isso só precisávamos de um bom conhecimento tecnológico, de educação e de políticas sociais para controlar o mundo natural e vencer as doenças, a fome, a guerra, a pobreza, o racismo e a depressão. Contudo, a história tem nos mostrado que o aumento do conhecimento pode ser usado de maneiras terríveis para piorar nossa situação, porque a maior barreira ao progresso, na verdade, está dentro de nós.

Há um segundo problema muito sério com a ideia secular de progresso. A ideia cristã original de progresso histórico era que a história estava se movendo não apenas para um fim, mas para uma coisa boa além da história. O mundo renovado por Deus será a culminação e a realização de todas as melhores aspirações e esperanças humanas ao longo da história. Contudo, a ideia secular de progresso não acredita em nada além deste mundo material. Isso significa não apenas que quando morremos como indivíduos não vamos para lugar nenhum, mas também que a civilização humana desaparecerá no futuro sem deixar vestígios. Em outras palavras, a esperança secular diz respeito a um progresso decididamente temporário. Ele pressupõe que o destino de fato da história humana é o esquecimento completo.

C. S. Lewis escreveu em 1948 um breve ensaio, “Vivendo em uma era atômica”, quando pairava no horizonte a possibilidade de uma guerra nuclear. Ele disse que muita gente tinha medo de que a bomba atômica pudesse “destruir totalmente a civilização”. Sua resposta foi: “Quais eram suas perspectivas sobre o futuro derradeiro da civilização antes da bomba atômica? Em que você achava que todo esse esforço da humanidade acabaria resultando no fim das contas? A verdadeira resposta é conhecida de quase todos os que têm algum conhecimento de ciência […] A história toda vai acabar em nada”.[7] Ele acrescentou: “Se a natureza for tudo o que existe, isto é, se não há Deus e nenhuma vida de um tipo bem diferente em algum lugar fora da natureza”, disso se segue que a civilização humana acabará morrendo com a morte do sol, e desse modo a humanidade nada mais terá sido do que “uma cintilação acidental […] infinitesimamente diminuta em relação aos oceanos de tempo morto que a precede e continua depois dela […] e não haverá nem mesmo alguém que se lembre dela”.[8]

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Brian Greene, em seu livro Until the end of time: mind, matter, and our search for meaning in an evolving universe [Até o fim dos tempos: mente, matéria e nossa busca por sentido em um universo em evolução], tem a mesma mensagem. O autor, diferentemente de Lewis, é um homem secular, porém, sua mensagem é a mesma. Como é possível viver uma vida com sentido se sabemos que a vida humana é um vislumbre fugaz na história do universo e que nada que façamos aqui, de bom ou de ruim, não fará diferença alguma no final? Greene se lembra de Alvy Singer, de nove anos de idade, do filme Noivo neurótico, noiva nervosa, que ao se dar conta de que o universo entrará em colapso e toda a civilização humana será destruída, decide que não há razão alguma para fazer o dever de casa. É claro que a ideia é fazer o público rir nessa parte do filme, mas Greene não deixa barato assim para nós. Para ele, não há do que rir aqui. Greene argumenta que se você soubesse que ia morrer amanhã, não há dúvida de que fazer o dever de casa não teria sentido algum. E se soubéssemos que o mundo estava a ponto de ser incinerado, isso faria com que tudo o que consideramos importante, arte, política, formar uma família, perdesse o sentido e fosse vão. Em seguida, Greene diz que “se a morte imediata da humanidade torna a vida sem sentido, o mesmo será verdade ainda que o fim esteja muito distante”.[9] Tentamos nos consolar com a “transcendência simbólica”, a ideia de que aquilo que fazemos perdura em nossas obras ou na vida dos nossos filhos. Contudo, a realidade é que, no fim, quer vivamos uma vida de bondades ou de crueldades, isso não fará diferença alguma no final. Saber do esquecimento final, ainda que de modo contido, penetra em nós e nos rouba o sentido da vida. Se Foucault estiver certo, a vida se move bruscamente de uma dissociação à outra, ela não melhora nunca, até que termina com nosso sistema solar, ou antes disso, com algum desastre climático ou nuclear. De fato, a história “[é] contada por idiotas, cheia de fúria e muita barulheira, que nada significa”.[10]

O que Greene e Lewis estão querendo dizer é que se este mundo material é tudo o que há, no fim das contas todos os nossos amores, pessoas e realizações nada significarão. Lewis, porém, diferentemente de Greene, quer nos fazer chegar a essa conclusão para que a questionemos. Ele diz:

Você não pode mais desfrutar seriamente da música se sabe e se lembra, que o ar de importância que ela ostenta é pura ilusão, que você gosta dela só porque seu sistema nervoso está condicionado irracionalmente a gostar dela. Você ainda poderá, em um sentido menos exigente, “divertir-se” […] [mas] será forçado a sentir a desarmonia desesperadora entre suas emoções e o universo em que realmente vive.[11]

Quando Lewis fala de desarmonia entre nossas emoções e a perspectiva que temos do universo, ele quer nos fazer ver que a visão de mundo secular não é, na verdade, algo a que, bem lá no fundo, alguém possa se apegar. Ele nos lembra de que, se tudo dentro de nós tem uma causa material, então, o amor e até mesmo nossas convicções morais não passam de fato de um produto de forças biológicas que nos ajudaram a sobreviver. Contudo, será que alguém realmente crê nisso? Na verdade, alguém pode crer nisso? Lewis prossegue: “Não podemos, exceto no sentido animal mais básico, amar uma mulher se soubermos (e nos lembrarmos o tempo todo disso) que a beleza que há em sua pessoa e seu caráter constituem um padrão momentâneo e acidental produzido pela colisão de átomos e […] pelo comportamento dos seus genes”.

O que Lewis está dizendo é que, na prática, ninguém pode viver consistentemente com a crença de que somos apenas matéria e que nosso final derradeiro é o esquecimento. Assim não há quem tenha esperança.

A menos que…

A menos que haja um Deus que tenha prometido guiar a história não a um fim, mas a um novo começo, a um mundo em que a morte e o mal serão por fim completamente destruídos e a paz e a justiça reinarão supremos, é para isso que aponta a ressurreição.

____________________

[1] Para um exemplo dessa perspectiva, veja o discurso do advogado socialista Clarence Darrow aos prisioneiros da prisão de Cook County: “Crime and Criminals: address to the prisoners in the Chicago Jail” (discurso, 1902), Bureau of Public Secrets, disponível em: www.bopsecrets.org/CF/darrow.htm, acesso em: 23 ago. 2021.

[2] Citado por Dorothy Sayers, Creed or chaos? (New York: Harcourt, 1949), p. 39

[3] C. E. M. Joad, The recovery of belief (London: Faber and Faber, 1952), p. 61.

[4] Ibidem, p. 63.

[5] Ibidem, p. 74.

[6] Ibidem, p. 82.

[7] C. S. Lewis, “On living in an atomic age”, in: Present Concerns (London: Fount Paperbacks, 1986), p. 74.

[8] Ibidem, p. 74-5.

[9] Brian Greene, Until the end of time: mind, matter, and our search for meaning in an evolving universe (New York: Alfred A. Knopf, 2020), p. 321.

[10] William Shakespeare, Macbeth, ato 5, c. 5.

[11] C. S. Lewis, “On living in an atomic age”, in: Present Concerns (London: Fount Paperbacks, 1986), p. 76.

Trecho extraído da obra “Esperança em tempos de medo: a ressurreição e o significado da Páscoa“, de Timothy Keller, publicada por Vida Nova: São Paulo, 2022, pp. 272-278. Traduzido por A. G. Mendes. Publicado no site Tuporém com permissão.

Timothy Keller nasceu e cresceu na Pensilvânia, com formação acadêmica na Bucknell University, no Gordon-Conwell Theological Seminary e no Westminster Theological Seminary. Ele é pastor da Redeemer Presbyterian Church, em Manhattan. Já esteve na lista de best-sellers do New York Times e escreveu vários livros, entre eles A fé na era do ceticismo, Igreja centrada, A cruz do Rei, Encontros com Jesus, Ego transformado, Justiça generosa, entre outros, todos publicados por Vida Nova.
Os relatos da ressurreição de Jesus nos Evangelhos são a chave para a esperança de que todos precisamos para enfrentar o desespero da vida cotidiana.

Esperança em tempos de medo analisa o sentido transformador da ressurreição de Jesus. A Páscoa lembra ao mundo que Jesus ressuscitou fisicamente dos mortos e que podemos nascer de novo e ressuscitar espiritualmente. Isso porque a ressurreição de Cristo traz agora, para a nossa vida, o poder futuro de Deus que um dia haverá de curar e renovar o mundo inteiro. A esperança do cristão é real e inabalável. Não se trata de uma expectativa ingênua e utópica do paraíso hoje, mas de uma esperança para a vida e a sociedade da qual podemos participar na plenitude do paraíso por vir.

A ressurreição pode mudar todos os aspectos da nossa vida emocional, nossos relacionamentos, nossa busca de justiça e nossas atitudes em relação à história e à própria morte.

Publicado por Vida Nova.

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