As engrenagens que movem nosso mundo não são só invisíveis. Elas normalmente têm nomes bem complicados. Quase ninguém do convívio normal das pessoas é um especialista em todas as capacidades econômicas, que se complicaram ao longo da evolução do capitalismo. Já era um pouco difícil explicar o que é o valor do dinheiro quando o lastro era em ouro (pelo menos para mim. Eu sou de humanas). Agora então, onde dados virtuais entram na jogada, você precisa de bastante atenção e de uma longa aula para entender os porquês de uma crise econômica, de quem é a culpa, quais as soluções.
Em 2010, o autor Michael Lewis lançou seu livro “The Big Short – Inside the Doomsday Machine”, “A Jogada do Século” no Brasil. Nele, explica os pormenores da terrível crise econômica de 2008 que abalou as estruturas da economia norte-americana e, por consequência, do mundo todo. Mas o fez através de histórias um tanto inesperadas. São histórias das poucas pessoas que viram o apocalipse chegando, e acharam uma maneira de fazer o que qualquer capitalista nato faria na situação: ganhar dinheiro.
Em 2015, o diretor de comédias absurdas e escrachadas, Adam McKay, lançou a adaptação cinematográfica do livro, onde cruza quatro das trajetórias explicadas no livro num tom de comédia louca e um ritmo alucinante. E aqui ele mostra que consegue ser um gênio.
A primeira das grandes sacadas é que McKay entende que ninguém é especialista em economia. Parte da mensagem do filme, aliás, é que se houvesse mais especialistas (ou se eles fossem menos burros e gananciosos), a crise não aconteceria. Então, os personagens conversam com a câmera diversas vezes, para explicar o que raios são todas essas siglas, termos e maracutaias executadas por eles próprios. Às vezes, um convidado especial aparece só para fazer uma metáfora bem calculada e divertida. O resultado é, ao mesmo tempo, engraçadíssimo e útil. Você sai do filme cheio de conhecimento, e cheio de raiva.
Raiva a mesma que muitos dos personagens do filme apresentam. Eles são economistas, eles estão tentando ganhar dinheiro com uma crise perigosa e sem precedentes, mas eles não são “Tios Patinhas”. Eles não são gananciosos caricatos. Eles são pessoas com pontos de vista morais bastante contundentes e em nenhum momento o filme tem medo de falar sobre a falta de ética das práticas predatórias de Wall Street. Até porque a irresponsabilidade dos economistas foi tanta, o dano foi tão enorme, que ninguém chamaria o filme de moralista por falar o que todo mundo pensa: “Precisava ir com tanta fome ao pote de dinheiro que vocês lançaram o mundo num cataclisma econômico que, da noite pro dia, tirou a casa de 5 milhões de pessoas e o emprego de 10 milhões, só nos EUA?”
Em um determinado momento, o personagem de Brad Pitt, economista veterano que está ajudando dois novatos a tirar um pedaço desse bolo de lucro da crise, vê que eles comemoram a existência da crise e o aumento de seus bônus monetários com uma dancinha. E, sem perder tempo, ele diz “Parem de dançar. Vocês estão ganhando dinheiro, mas isso não pode nunca ser considerado uma vitória. Cada ponto percentual de desemprego custa cerca de 40.000 vidas humanas. Simples assim.” O filme, sem perder o ritmo, a ironia ou o timing cômico, vai se tornando um conto tenebroso sobre como um pouco de gente com muito poder pode arruinar a vida de milhões de pessoas que não têm absolutamente nada a ver com isso. E, falar disso com um fundo cômico, não tem a intenção de atenuar o golpe. Muitas vezes, você ri simplesmente do absurdo. É como quando alguém conta uma piada tão extrema, onde a graça não está na piada em si, mas no fato de que ela existe. Você ri de nervoso. Ri imaginando: “que tipo de mente desprovida de freios seria capaz de inventar algo assim?”.
E aí os dados chegam e o narrador do filme te conta que ninguém inventou nada. É tudo real. Muita gente mentiu, muita gente subornou, muita gente roubou, muita gente ludibriou para conseguir aquele que é o objetivo da maioria das pessoas que você conhece. Até, talvez, o seu: “mais dinheiro”.
E até essa questão do “mais dinheiro” é diretamente abordada. Num momento, o personagem do excelente Steve Carell pergunta para uma das facilitadoras da corrupção toda: “Caramba, ganhem menos! Não dava para ganhar menos dinheiro? O que é menos um iate quando você já tem 3?” E a maneira como a resposta desvia da pergunta enquanto anula a mesma é desanimadora: “Se eu não facilito, na esquina deste quarteirão tem outra pessoa que facilitaria”. Em outro momento, ao ouvir quais os métodos ilegais de outros corruptores, pergunta aos seus colegas: “Por que eles estão confessando o que fazem?”. A resposta, novamente, faria você lembrar de gente que você conhece: “Eles não estão confessando. Estão se gabando”.
Todos os personagens se veem dentro de um pesadelo em determinado momento. Logo antes da economia toda cair no precipício, antes de saberem que o governo faria uma manobra desonesta, usando dinheiro público para salvar os culpados de tudo, eles olham para o abismo. Alguns até tentam avisar parentes e são ignorados porque seus parentes continuam confiando plenamente na economia e no conforto. Isso acontece bastante durante o filme: alguém ignora os avisos porque “aquilo que funcionou sempre, funcionará sempre”. Como eles podem duvidar dos homens honestos, homens de família, homens de bem, que sempre sustentaram o mundo ocidental nos ombros do sucesso?
O mundo estaria em uma situação muito diferente se a sabedoria tradicional entendesse que não dá mais para tentar espremer um camelo pelo buraco de uma agulha. Infelizmente, só quando temos uma crise gerada por gente ao mesmo tempo estúpida e rica, e quando essa crise chega perto de nós, é que percebemos que essa agulha espeta.
Silas Chosen é roteirista, cineasta, publicitário, ilustrador e é viciado em cinema e histórias. Escreve para sites e programas de rádio sobre cinema, cultura pop e cristianismo desde 2004. Faz parte da 4U Films, ministério de cinema independente. |