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A importância do meu tema é óbvia pela simples consideração de que a autoridade bíblica é uma noção vazia, a menos que saibamos como determinar o que a Bíblia significa. Fiquei surpreso ao descobrir quão raros são os tratamentos que os evangélicos têm da relação entre a hermenêutica e a autoridade bíblica. É importante que se faça uma boa reflexão sobre isso, caso contrário estaremos constantemente em desvantagem, pelo menos de duas maneiras.

Primeiro, somos forçados a permanecer (onde sempre estivemos) à margem do atual debate protestante sobre as Sagradas Escrituras. Desde a época do racionalismo no século XVIII, e de Schleiermacher no século XIX, e mais particularmente do trabalho de Kähler, Barth e Bultmann no século XX, essa relação tem sido alvo de preocupações constantes. Segundo, corremos o risco de sermos contrariados em nosso próprio pensamento por simplificações excessivas em mais de um ponto. Tenho certeza de que todos descobrimos como é complexo explicar a mensagem cristã das Escrituras para pessoas cujas mentes já abraçaram simplificações exageradas e conceitos controladores — “se a Bíblia é a Palavra de Deus, por que existem tantas contradições?

Portanto, a simplificação básica que nos ameaça é que não devemos tratar a relação entre autoridade bíblica e hermenêutica como uma relação de mão única, mas como uma via dupla que opera dentro de um sistema de mão única. Veja como isso funciona:

Autoridade bíblica

A autoridade bíblica, é uma construção dogmática complexa composta de quatro elementos. Acompanhe comigo:

A primeira visão é a concepção da inspiração como uma atividade pela qual Deus, em Sua providência guiou toda elocução humana, fez com que certos homens em particular falassem e escrevessem de tal maneira que sua mensagem permanecesse sendo sua verdade no meio deles, estabelecendo normas de fé e prática. Essa é a noção expressa por Paulo em 2Timóteo 3.16, onde ele descreve que ‘toda a Escritura’ theopneustos (literalmente ‘soprado por Deus’) é, ‘útil’ ofelimos, como um padrão de perfeição intelectual e moral para quem quer ser um ‘homem de Deus’.

O segundo é o princípio da canonicidade como sendo, de forma objetiva, o fato, e de forma subjetiva, o reconhecimento da inspiração. Isso decorre da afirmação acima, “toda a Escritura foi dada por Deus para ser a regra útil de fé e prática“. O que se sugere não é que todos os escritos inspirados sejam canônicos, mas que todos os escritos canônicos são inspirados, e que Deus faz com que seu povo os reconheça como tal. Relatos de canonicidade que distorcem ou desconsideram a realidade da inspiração e baseiam as reivindicações das Escrituras em algum outro fundamento que não o fato de que Deus as fala, deturpam tanto a verdadeira construção teológica quanto a experiência real dos cristãos. Isso leva ao nosso próximo ponto.

O terceiro elemento da posição cristã está na afirmação de que as Escrituras se autenticam para os cristãos por meio da obra convincente do Espírito Santo, que nos capacita a reconhecer e nos curvar diante das realidades divinas. É ele quem nos ilumina para reconhecer o homem Jesus como Filho encarnado de Deus e receber os sessenta e seis escritos como a Palavra de Deus escrita por homens e dada para nos tornar ‘sábios para a salvação, pela fé que há em Cristo Jesus‘ (2Tm 3.15). A Igreja dá testemunho, mas o Espírito produz convicção. Foi contra Roma que os cristãos insistiram que é o testemunho do Espírito, não o da Igreja, que autentica o cânon para nós.

O quarto fundamento sustenta que as Escrituras são suficientes para a Igreja, e é lâmpada para os nossos pés e luz para o nosso caminho — isto é, um guia sobre quais passos devemos dar e em que verdade confiar. Não é sugerido que nos diga tudo o que gostaríamos de saber sobre Deus e Seus caminhos. O ponto da afirmação é que, “a Sagrada Escritura contém todas as coisas necessárias para a salvação”, e não precisa ser suplementada por nenhuma outra fonte (razão, experiência, tradição ou outras crenças), mas é em si um organismo completo de verdade declarada para seu propósito.

Hermenêutica

É a teoria da interpretação bíblica. A hermenêutica bíblica é o estudo dos princípios teóricos envolvidos em trazer a esta, e a todas as épocas, a relevância da Bíblia e sua mensagem. A prática cristã ao longo dos séculos refletiu uma visão do processo de interpretação como envolvendo três estágios: exegese, síntese e aplicação.

Exegese significa extrair do texto tudo o que é expresso pelo escritor humano. Esse é o sentido ‘literal’, em nome do qual os reformadores rejeitaram os sentidos alegóricos amados pelos exegetas medievais. Nós o chamamos de sentido ‘natural’, o ‘significado pretendido’ do escritor. O chamado ‘método gramático-histórico’, pelo qual o exegeta procura se colocar no lugar linguístico, cultural, histórico e religioso do escritor, tem sido o método histórico de exegese cristã, seguido com mais ou menos consistência e sucesso desde o tempo dos reformadores. Este processo exegético assume a plena humanidade dos escritos inspirados.

Síntese significa, aqui, o processo de reunir e examinar de forma historicamente integrada os frutos da exegese — um processo que às vezes é chamado de ‘teologia bíblica‘ na sala de aula e, outras vezes, chamado ‘exposição‘ no púlpito. Esse processo sintético assume o caráter orgânico das Escrituras.

A aplicação significa procurar responder à pergunta: ‘Se Deus dissesse e fizesse o que o texto nos diz que ele fez nas circunstâncias registradas, o que ele diria e faria conosco em nossas circunstâncias?‘ Este processo de aplicação assume a consistência de Deus de uma era para outra, e o fato de que ‘Jesus Cristo é o mesmo ontem, hoje e para sempre.’ (Hb 13.8, NVT). Está claro pelo que foi dito que o princípio da autoridade bíblica fundamenta e controla a hermenêutica cristã.

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Inerrância bíblica

Inerrância é uma palavra que tem sido de uso comum desde o século passado, embora a ideia em si remonte à ortodoxia do século XVII, os reformadores e os escolásticos, aos Pais da igreja e, por trás deles, às próprias declarações de nosso Senhor, ‘a Escritura não pode ser quebrada’, ‘a tua palavra é a verdade’ (Jo 10.35; 17.17).

O espaço para esse formato de artigo não nos permite aprofundar algumas discussões, mas, o que importa é que em nossa prática exegética devemos respeitar o princípio da harmonia; em outras palavras, temos que estar de acordo com o nível metodológico de interpretação. Se, por um lado, recebemos como fidedigno tudo o que os escritores neotestamentários afirmam como sendo a verdade de Deus, porém, concordamos em procurar harmonizações com outras formas de exegeses existencialistas, nos recusamos a cortar o laço e categoricamente declaramos que a Bíblia erra. Assim, não importa se afirmo ou não a inerrância das Escrituras, ela estará fadada ao fracasso. O que importa, não é como determinada passagem foi escrita, mas sobre quem essa mensagem representa.

O que estou dizendo pressupõe que o escopo de cada passagem bíblica, seu gênero literário, o alcance e conteúdo das reais afirmações feitas devem ser determinadas pela exegese histórico-gramatical.

Conclusão

Crer na Bíblia é crer em Deus, pois ela revela quem ele é. No entanto, não aceitar essa verdade é se expor ao universo das reflexões que expõe as Escrituras a todo tipo de releitura. Mas, você acredita que a Bíblia é relevante para o homem pós-moderno?

No passado, a hermenêutica era um assunto associado à pregação. Os pregadores eram os intérpretes e os proclamadores da mensagem por excelência. Agostinho, um dos maiores expoentes da história da interpretação, foi o primeiro a escrever um tratado homilético em Da Doutrina Cristã. Com essa premissa em mão fica mais simples compreender o papel do cristão hoje. É impossível chegar ao pleno conhecimento da verdade, se ela não for revelada do alto. Ela foi proclamada, mas Jesus nos exorta dizendo em João 1.10,11: “O Verbo estava no mundo, o mundo não o conheceu. Veio para o que era seu, e os seus não o receberam. Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, a saber, os que creem no seu nome.

A natureza divina-humana das Escrituras exige dos seus intérpretes oração e labor. Em razão da Bíblia manter esse caráter dual em sua composição, ela acarreta dificuldades na esfera espiritual e na esfera natural para a sua compreensão (2Pe 3.16).

É plenamente possível entender a essência da mensagem das Escrituras. A ação iluminadora do Espírito Santo é indispensável para a interpretação e para o entendimento das Sagradas Escrituras. O homem contemporâneo necessita conhecer essa verdade, Jesus é o tema central da mensagem revelada (Rm 10.17). Richard Baxter, um dos puritanos mais conhecidos do século XVII, falando sobre a verdade da Palavra, disse:

“… as verdades de Deus são os próprios instrumentos da santificação de vocês; a qual, não passa do efeito sobre o entendimento e a vontade dessas verdades pelo Espírito Santo. As verdades são o selo e a alma de vocês a cera; a santidade é a impressão feita. Se vocês receberem apenas algumas verdades, terão apenas uma impressão parcial… Se vocês as receberem de modo desordenado, a imagem que produzirão nas almas de vocês será igualmente desordenada, como se os membros de seus corpos fossem unidos de modo monstruoso.[1]

Uma hermenêutica que esteja submetida à mensagem essencial das Escrituras será uma grande ferramenta nas mãos de servos de Cristo e, por intermédio da iluminação do Espírito Santo, trará luz ao coração do homem (Jo 1.12).


[1] BAXTER, Richard. Directions for Weak Distempered Christians: in: The Practical Works of Richard Baxter, (Grand Rapids: Baker Book House, 1981), p. 677.

Ricardo Reis é casado com Ester Reis e pai de 2 filhos: Sthefany Reis e Isaac Reis. Pastor Batista Independente e Secretário do STBIPAR; Bacharel em Teologia pela (FBB, BA); Bacharel em Direito pela ISCA Faculdades, SP; Licenciado em História pela UNIASSELVI, SC. Licenciado em Filosofia pela (FBB, BA); Pós-graduado em Linguística e Literatura pela Universidade Cândido Mendes, RJ; Pós-graduado em Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa, UNIASSELVI, SC; Pós-Graduado em Metodologia de Ensino de História, UNIASSELVI, SC; Pós-Graduado em Direito Constitucional Aplicado, pela Faculdade LEGALE, SP. Mestre em Teologia com ênfase em Exposição Bíblica do Novo Testamento, pelo SBPV, SP; Mestrando em Teologia Profissional ênfase Bíblia, FABAPAR, PR.
A hermenêutica bíblica concentra-se nos vários princípios que devem permanecer firmes na mente do leitor e diante de seus olhos no momento em que estuda as Escrituras. Uma correta hermenêutica nos auxiliará a examinar o texto bíblico, buscando compreendê-lo e aplicá-lo de forma correta e adequada à vida cristã, seja em que âmbito for.

Este volume do Curso Vida Nova de Teologia Básica, Hermenêutica, fornece respostas a perguntas como estas:

- Como a Bíblia foi interpretada desde os primeiros séculos da era cristã até os dias de hoje?
- Quais são os primeiros conceitos e fundamentos que devem nortear todo o processo interpretativo das Escrituras Sagradas?
- Quais são os princípios gerais da hermenêutica que servem de base para o trabalho com os textos?
- Quais são os desafios da aplicação prática das Escrituras?

Publicado por Vida Nova.

1 Comments

  1. NILTON VIEIRA DE OLIVEIRA disse:

    Que possamos ser iluminados dia a dia pela Palavra do Senhor Jesus Cristo!

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