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22/ago/2024Deve-se reconhecer que essa abordagem mais ou menos tradicional do cânon pode dar uma impressão falsa, a saber, de que a igreja levou um tempo excessivamente longo para reconhecer a autoridade dos documentos que constituem o Novo Testamento. Isso é completamente falso. O debate sobre o cânon é sobre uma lista fechada de livros imbuídos de autoridade. Os livros em si já estavam necessariamente circulando muito antes, a maioria deles reconhecida como imbuída de autoridade por toda a igreja, e todos eles eram aceitos em grandes segmentos da igreja.[1]
Desde o princípio, houve uma mensagem imbuída de autoridade. Já no início de sua pregação, Jesus apresentou-se como autoridade em pé de igualdade com as Escrituras do Antigo Testamento, em certo sentido cumprindo-as (Mt 5.17-48, esp. v. 21ss.). A revelação das boas-novas, o evangelho do Filho amado de Deus, esteve tão intimamente ligada à vida, ao ministério, à morte e à ressurreição de Jesus que os relatos dessas “boa-novas” vieram a ser denominados Evangelhos. Essas boas-novas foram transmitidas pelos apóstolos: em Atos 2, Lucas, insiste em que os crentes que constituíam a primeira igreja se dedicavam ao ensino dos apóstolos. Já em 2 Coríntios 3.14, Paulo escreve que os judeus leem as Escrituras da antiga aliança.[2] Subentendia-se que uma nova aliança havia raiado, a nova aliança predita por Jeremias (esp. 31.31-34; cf. Hb 8) e anunciada por Jesus nas palavras de instituição na noite em que foi traído (“este cálice é a nova[3] aliança no meu sangue”). Implicitamente as Escrituras da nova aliança não estão muito distantes. A Carta aos Hebreus começa contrastando o período prévio de revelação com aquilo que havia ocorrido “nestes últimos dias”, nos quais Deus se revelou por meio de seu Filho (Hb 1.1-3). O centro e a fonte de toda revelação da nova aliança, reconhecida como imbuída de autoridade, em última instância, repousa no Filho. Os apóstolos, no sentido mais restrito do termo,[4] eram considerados aqueles que mediaram essa revelação para o restante da igreja; mas, exatamente pelo fato de que essa revelação estava vinculada ao Jesus que apareceu na história real, um fechamento implícito foi incorporado nessa afirmação. Não poderia haver uma sequência interminável de “revelações” sobre Jesus, uma vez que essas revelações estavam se distanciando do Jesus que se apresentou na história real e que foi confessado pelas primeiras testemunhas oculares e pelos apóstolos.
Dessa forma, desde o início, houve a ideia de autoridade extraordinária e de fechamento implícito. O reconhecimento extracanônico dessa dupla afirmação já ocorria à época de Inácio. Quando questionado por alguns homens (presumivelmente judeus) que se recusam a crer em qualquer coisa do evangelho que não se encontre em “nossos registros antigos” (o Antigo Testamento?), Inácio respondeu: “Mas de minha parte os meus registros são Jesus Cristo, para mim os registros sagrados são a cruz, a morte e a ressurreição dele e a fé que vem por intermédio dele” (Phil. 8.2). Possivelmente a gênese do cânon do Novo Testamento encontra-se no apelo a “evangelho” e “apóstolo”,[5] em última instância, com o próprio Jesus Cristo por trás de ambos.
Se, então, investigarmos a questão de quando e como os vários livros do Novo Testamento foram interpretados como testemunhas do evangelho imbuídas de autoridade, em vez de investigarmos quando e como o cânon foi fechado, somos forçados a remontar não às listas fechadas preparadas pelos pais da igreja, que tendem a ser posteriores, mas ao uso dos livros do Novo Testamento (em comparação com outras fontes) nos primeiros pais. Descobrimos então que até mesmo a maioria dos antilegomena são amplamente citados. Hebreus, por exemplo, é citado extensamente em 1Clemente (provavelmente 90-110 d.C.); Tiago é atestado em 1Clemente e O Pastor, de Hermas (meados do séc. 2). Aliás, mesmo no âmbito do Novo Testamento, um texto do Antigo Testamento e uma citação do Evangelho podem estar lado a lado e serem introduzidos pela expressão “a Escritura diz” (1Tm 5.18). Mesmo que essa citação não seja de um Evangelho escrito, o trecho pelo menos comprova que um ensino do Senhor Jesus desfruta o mesmo grau de autoridade das Escrituras do Antigo Testamento. Em 2Pedro 3.16, as cartas de Paulo são reconhecidas como Escrituras.
Por fim, é necessário assinalar quatro perspectivas contemporâneas a respeito da importância do cânon.
- Alguns (e.g., Koester) têm sustentado que a noção de um cânon deve ser abolida. Dizem que não há diferenças qualitativas entre os livros do Novo Testamento e outros textos cristãos antigos; todas as fontes que lancem luz sobre o movimento cristão antigo devem ser tratadas de igual maneira, de forma que, digamos, Tiago, não deve ser tratado como uma fonte que merece mais respeito ou que tenha mais autoridade do que, digamos, Clemente de Roma. Fica claro que essa teoria só se torna viável caso se rejeite não somente a noção de um cânon como uma lista fechada de livros imbuídos de autoridade, mas também a noção de Escrituras. Essa teoria também é reforçada pela prontidão em abandonar rapidamente a herança estabelecida da igreja e, especialmente, de perspectivas críticas que consideram diversos livros canônicos como escritos tardios e pseudônimos, concluídos depois de várias outras fontes cristãs antigas que chegaram até nós.
- No momento, há um debate complexo sobre um possível “cânon dentro do cânon”. Todos tendemos a nos apoiar mais em algumas partes do cânon do que em outras — da mesma forma que Lutero e Calvino destacaram mais Romanos e Gálatas do que, digamos, 1Pedro ou Apocalipse. Então, por que não aceitar a realidade dos fatos e reconhecer que grupos diferentes têm a liberdade, talvez até mesmo a obrigação, de definir certas partes do cânon como definitivos para eles? Uma forma mais atenuada dessa teoria propõe que devemos pensar no cânon como uma espiral, na qual os elementos exteriores (Tiago, 2Pedro) vão paulatinamente abrindo espaço para o núcleo básico, o âmago do cristianismo autêntico (João, Romanos).[6] Certamente, no entanto, as noções de Escritura e de cânon proíbem essas abordagens. É verdade que pregadores podem acentuar mais uma parte do que outra, julgando-a ter uma relevância imediata maior aos contextos em que vivem do que outras. Algumas partes do Novo Testamento podem exercer continuamente uma maior influência porque são mais longas e abrangentes. Mas permitir que escolhas pastorais pragmáticas e detalhes da composição impliquem a obrigação de tornar relativo o cânon é negar que exista um cânon que deve permanecer como o teste de nossas escolhas pastorais.
- Às vezes, a teologia católica romana tradicional tem falado a respeito do papel da igreja na formação ou no estabelecimento do cânon, e isso, por sua vez, tem dado origem a um ponto de vista sobre a autoridade da igreja bem diferente do encontrado no protestantismo. Este situa o depósito do evangelho nas Escrituras; o catolicismo conservador situa o depósito da fé na igreja, do qual as Escrituras são apenas um dos componentes. Alguns dos debates resultantes desses pontos de vista estão se dissipando na atualidade, pois tanto o protestantismo quanto o catolicismo romano se encontram numa situação de imensa mutação. Mas alguns dos problemas ligados à posição protestante são em grande parte diminuídos caso a distinção aqui defendida entre Escritura e cânon seja cuidadosamente mantida. O papel da igreja não é estabelecer quais livros constituem Escrituras. Antes, os livros bíblicos impõem-se por si sós mediante amplo uso e autoridade, e o papel da igreja é reconhecer que somente certos livros — não outros — exigem a lealdade e a obediência da igreja, e isso tem o resultado de constituir um cânon, uma lista fechada de Escrituras imbuídas de autoridade.
- Tem havido considerável interesse na denominada crítica do cânon. Embora esse ramo de estudo apresente muitas formas,[7] sua pressuposição central é que, não importando quais fontes e pressões tenham estado presentes na elaboração das Escrituras conforme as conhecemos, o texto na forma em que se encontra representa a maneira de a igreja lidar com suas próprias tradições, inclusive as interpretações peculiares estabelecidas por conexões intrabíblicas, e estas devem ser aceitas como normativas para a igreja. Há muitas coisas proveitosas nesse movimento. Ele representa um esforço de ler a Bíblia como um todo e de ler livros bíblicos como produtos acabados. Na prática, contudo, alguns defensores da crítica do cânon tendem a defender verdades abstratas que podem ser inferidas do texto como um todo, mas rejeitam numerosas afirmações bíblicas que têm referentes históricos. Essa inconsistência cria a impressão negativa de certo tipo de fideísmo imaturo: aceitar o cânon em situações em que ele não pode ser testado e reservar o direito de julgá-lo em situações em que pode ser testado. Essa forma de fideísmo torna a crítica do cânon, como é frequentemente praticada (pelo menos em alguns círculos), intrinsecamente instável.
Em suma, o fato de que Deus é um Deus que se revela, fala e é fiel à aliança, que se revelou de modo supremo num personagem histórico, Jesus, o Messias, estabelece a necessidade do cânon e, implicitamente, o seu fechamento. A noção de cânon proíbe todas as tentativas conscientes de escolher apenas uma parte do cânon como o padrão que orienta a igreja cristã: isso seria o equivalente a descanonizar o cânon, uma contradição de termos. Uma vez que o cânon é constituído de livros cuja autoridade, em última instância, brota da graciosa autorrevelação de Deus, é mais adequado falar em reconhecer o cânon do que em estabelecê-lo. E a teologia canônica não pode ao mesmo tempo ser correta e estar divorciada de questões difíceis que vinculam a revelação de Deus à história concreta.
Notas
[1]Theo Donner, “Some thoughts on the history of the New Testament canon”, Themelios 7/3 (1983): 23-7.
[2] Provavelmente a referência é à Torá, não ao Antigo Testamento como um todo; veja o v. 15.
[3] O termo “nova” está em Lucas e Paulo (1Co 11.23-26), mas é omitido por Mateus e Marcos
[4] Veja D. A. Carson, Showing the Spirit (Grand Rapids: Baker, 1987), p. 88-91 [publicado em português por Vida Nova sob o título A manifestação do Espírito: a contemporaneidade dos dons à luz de 1Coríntios 12—14].
[5] Veja Donald Robinson, Faith’s framework: the structure of New Testament theology (Sutherland, nsw: Albatross, 1985).
[6] Essa é a posição de C. K. Barrett, “The centre of the New Testament and the canon”, in: Die Mitte des Neuen Testaments: Einheit und Vielfalt neutestamentlicher Theologie, Fs. Eduard Schweizer, orgs., Ulrich Luz; Hans Weder (Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1983), p. 5-21.
[7] E.g., Childs; James A. Sanders, From sacred story to sacred text (Philadelphia: Fortress, 1987).
Trecho extraído e adaptado da obra “Introdução ao Novo Testamento“, dos autores D. A. Carson & Douglas Moo, publicado por Vida Nova: São Paulo, 2024, p. 926-932. Publicado no site Cruciforme com permissão.
D. A. Carson (PhD, University of Cambridge) é professor pesquisador de Novo Testamento na Trinity Evangelical Divinity School, em Deerfield, Illinois. É autor de A manifestação do Espírito, Cristo e cultura, A verdade, Os perigos da interpretação bíblica e Jesus, o Filho de Deus, organizador do Comentário do uso do Antigo Testamento no Novo Testamento e As Escrituras dão testemunho de mim e coautor de Introdução ao Novo Testamento e Dicionário bíblico Vida Nova, publicados por Vida Nova. Carson é um dos fundadores da The Gospel Coalition [Coligação pelo Evangelho] e professor convidado em ambientes acadêmicos e eclesiásticos no mundo todo. |
Douglas Moo é Ph.D., Universidade de St. Andrews) foi professor de Novo Testamento no Trinity Evangelical Divinity School, além de diretordo programa de doutorado em Filosofia e Estudos Teológicos. Atualmente é professor da cátedra Kenneth T. Wessner de Estudos Bíblicos no Wheaton College Graduate School. É autor de Tiago: introdução e comentário e Romanos: comentário exegético, publicados por Vida Nova. |
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