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Alexandre Bida, Public domain, via Wikimedia Commons

“Porque muitos enganadores já saíram pelo mundo, os quais não declaram que Jesus Cristo veio em corpo”.

— 2 João 7

 

Seguir a verdade, andar nela ou praticá-la requer não apenas conhecer a verdade do evangelho, mas também reconhecê-la como verdade. Especificamente, os discípulos devem admitir “que Jesus Cristo veio” (2 João 7). Confessar é uma das formas primordiais.

“Confessar” [homologeō] a vinda de Cristo é mais do que proferir palavras ou repetir certas falas. Também não é simplesmente uma questão de afirmar o conteúdo daquilo em que se crê. Confessar é reconhecer, um ato da fala que envolve compromisso.[1] Nos atos de fala que envolvem compromisso, o falante não se refere simplesmente a um estado de coisas; ele assume determinada postura em relação a esse estado de coisas. Na expressão de Wendell Berry, o falante está preparado para sustentar suas palavras (i.e., tomar posição).[2]

A exemplo de outros atos de fala que envolvem compromisso, confessar compromete o falante, de modo que ele adota certa postura em relação ao assunto. Quando confesso com os santos do mundo todo que “creio em Deus Pai todo-poderoso, Criador do céu e da terra”, estou fazendo mais do que afirmar um fato. Estou declarando meus compromissos supremos, minha identidade mais profunda. Declarações de fé “juntam tanto o conteúdo (o que é confessado) quanto a força ou condição com a qual se confessa”.[3] As declarações de fé combinam alegações de verdade (que John Searle chama de “assertivas”) com a promessa implícita de ação fiel (“comissivas”).[4]

A verdade específica que diz respeito ao discipulado é o reconhecimento de que “Jesus Cristo veio em corpo” (2Jo 7). Confessar a vinda de Cristo em corpo é um ato da fala que envolve compromisso e vale tanto como asserção (i.e., uma declaração sobre o que é) quanto como comprometimento com um curso futuro de ação (i.e., viver à luz do que é). A Segunda Epístola de João trata desse duplo caráter ou confissão, a razão pela qual enfatizamos a verdade e o amor. Confessar a vinda de Cristo em corpo é declarar o envolvimento no drama da redenção não como espectador, mas como seguidor ativo de Jesus.

A vinda de Cristo em corpo está no próprio âmago do teodrama[5], confirmado pela Bíblia em toda parte. Confessar a vinda (tempo presente) de Cristo é lembrar o que era, o que é e antecipar o que “há deve vir” (Ap 1.4). Porque Jesus é aquele cuja vinda foi prometida (Gn 3.15), aquele que se fez carne (Jo 1.14) e que virá novamente (At 1.11). Confessar Cristo como “aquele que vem” é, portanto, reconhecer a centralidade da encarnação, o significado permanente do Deus-homem: “o mesmo ontem, hoje e eternamente” (Hb 13.8).

“Porque muitos enganadores já saíram pelo mundo, os quais não declaram Jesus Cristo veio em corpo” (2Jo 7). A Segunda Epístola de João não existiria se não fosse pela presença e pela atividade dos falsos mestres. Talvez na expressão “saíram pelo mundo” possamos até nos lembrar da Grande Comissão de Jesus registrada no final mais longo de Marcos: “Ide por todo o mundo, e pregai o evangelho a toda criatura” (Mc 16.15). Falsos mestres também têm uma missão. Em 2João eles são chamados “enganadores” e “anticristos”. É uma linguagem inflamada, mas podemos ver melhor o que está em jogo quando nos damos conta de que as anticonfissões também envolvem compromisso. Os que se recusam a admitir a vinda de Cristo, os que o negam, também declaram com isso seu compromisso supremo e sua identidade mais profunda. Contemplar esse homem não é nenhuma atividade passiva. No fim das contas, não há espectadores passivos: “Quem não está comigo, está contra mim” (Mt 12.30).

Muitos leitores talvez achem exageradas expressões como “enganadores” e “anticristos”. Seria este, talvez, um caso em que a doutrina é levada a sério demais? Não, não se trata disso, porque tanto a identidade de Deus quanto o evangelho estão em jogo na confissão da vinda de Cristo. Os que negam que Cristo veio em corpo negam o que está em Cristo. Eles negam, em primeiro lugar, a realidade do Mediador que estende uma ponte sobre o abismo entre Deus e o ser humano pecador; e, em segundo lugar, negam a derrubada da parede de separação de inimizade entre judeus e gregos. Negar que Cristo veio em corpo (Fp 2.6,7) é deixar de reconhecer a natureza autocomunicante de Deus (i.e., que Deus se estendeu para chegar até nós). Negar que Cristo veio em corpo é negar simplesmente a realidade do amor de Deus ou, em outras palavras, é a negação da realidade de Deus, uma vez que “Deus é amor” (1Jo 4.8).[6] Perder a verdade da encarnação, portanto, é perder o significado do teodrama, da verdade a respeito do amor de Deus e, em última análise, do entendimento que se tem da realidade.

O fato é que há duas maneiras de negar o amor de Deus. A maneira teórica consiste em não reconhecer que Cristo veio em corpo. Contudo, também é possível afirmar teoricamente a ideia negando-a ao mesmo tempo na prática. Nós a negamos na prática quando não vivemos à sua luz, quando passamos ao largo de sua verdade. Essa é a contradição na encenação do evangelho. Por isso João exorta seus leitores: “Tende cuidado” (2Jo 8). Prestar atenção ao que fazemos — atentar não apenas para que nossos atos correspondam às nossas palavras, mas também que nossa vida esteja em sintonia com a realidade do que está em Cristo — é ser ator e plateia ao mesmo tempo. A questão, mais uma vez, é que a plateia de 2João participa do amor e da verdade de Deus “ser para nós” (e de nosso “ser um para o outro”) somente quando põe em prática sua confissão de que Cristo veio efetivamente em corpo.

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Nem sempre a confissão precisa ser verbal. Os evangelhos registram um exemplo marcante de reconhecimento que envolve compromisso com a vinda de Cristo em corpo no caso da mulher que unge Jesus com óleo, ato que diz muita coisa sobre a identidade de Jesus e sobre a identidade da mulher (Mt 26.6-13; Mc 14.3-9; Jo 12.1-8; cf. Lc 7.36-50). Há duas características particularmente notáveis nesse ato estranho. Em primeiro lugar, ele ocorre em um momento fundamental do drama e é, sem dúvida, o catalisador da traição de Judas, uma vez que este fez objeção ao desperdício (o preço do óleo era equivalente a um ano de salário): “Por que este bálsamo não foi vendido por trezentos denários, e o dinheiro, dado aos pobres?” (Jo 12.5). A segunda característica notável é a grande diferença na resposta de Jesus: “Por que incomodais esta mulher? Ela praticou uma boa [kalon] ação para comigo” (Mt 26.10).

Para Calvino, o ato da mulher foi “uma encenação extraordinária”,[7] e foi mesmo. Reconhecemos nele um ato adequado de devoção que, indiretamente, comunicava quem era Jesus. O próprio Jesus viu nisso algo bastante apropriado, interpretando-o como uma preparação antecipada do seu corpo para o sepultamento, garantindo assim que a unção fosse considerada um ato carregado de ironia dramática. Sob essa luz, podemos dizer que a crítica de Judas à mulher já o traía como um dos anticristos a respeito dos quais 2João nos adverte.[8] O ato da mulher foi totalmente apropriado, e seu senso de oportunidade, impecável. Contudo, ao se recusar a reconhecer o acerto do ato da mulher, Judas não reconhece quem é Jesus.

“Ela praticou uma boa ação.” Jesus diz que o ato da mulher seria contado “em sua memória” onde e sempre que o evangelho fosse pregado (Mt 26.13; Mc 14.9). Calvino diz que povos de todas as nações “aplaudirão este ato”.[9] Isso é extraordinário! Certamente esta é uma cena menor representada por uma figurante. O que, afinal de contas, poderia suscitar uma resposta tão entusiasmada? Apenas isto: com sua atitude, a mulher confessa acertadamente a vinda de Jesus Cristo. É por isso que essa é uma participação verdadeira, boa, bela e adequada na realidade do amor de Deus encarnado. A mulher, de forma simbólica e amorosa, encena a verdade do evangelho e, consequentemente, serve de paradigma para o modo como a plateia dos que creem deve responder à vinda do Cristo onde quer que seja.


Notas

[1] Veja o excelente estudo de Richard Briggs, Words in action: speech act theory and biblical interpretation (Edinburgh/New York: T. & T. Clark, 2001), esp. caps. 5-6. Briggs baseia-se na obra seminal de Donald D. Evans, The logic of self-involvement: a philosophical study of everyday language with special reference to the Christian use of language about God as creator (London: SCM, 1963).

[2] Wendell Berry, “Standing by words”, in: Standing by words: essays (Berkeley: Counterpoint, 1983), p. 24-63.

[3] Briggs, Words in action, p. 192-3.

[4] Para uma classificação dos atos de fala, veja de John R. Searle, “A taxonomy of illocutionary acts”, in: Expression and meaning: studies in the theory of speech acts (Cambridge: Cambridge University Press, 1979), p. 58-75.

[5] O teodrama é a tentativa da fé de comunicar entendimento pela descoberta e, em seguida, participar do que o Deus trino e uno — Pai, Filho e Espírito — está fazendo em Cristo e por meio dele para a salvação do mundo. In: Encenando a doutrina. P. 39. [Nota do editor]

[6] Veja também a discussão em 1João 4.1—5.12.

[7] John Calvin [João Calvino], Commentary on a harmony of the Evangelists (Edinburgh: Calvin Translation Society, 1866), 3:188.

[8] Os demais discípulos são meros espectadores passivos. Não são condenados nem elogiados. Pelo contrário, nas palavras de Calvino: “Cristo reprova docilmente os discípulos […] por não cultivarem em medida suficiente perspectivas honrosas do seu reino futuro” (ibid., p. 191).

[9] Ibid.


Trecho extraído e adaptado da obra:  Encenando o drama da doutrina do autor Kevin J. Vanhoozer, publicado por Edições Vida Nova: São Paulo, 2016, p. 64-68. Publicado no site Cruciforme com permissão.

658-autor_defaultKevin Vanhoozer é professor de Teologia Sistemática na Trinity Evangelical Divinity School. Também atuou durante oito anos como professor sênior de Teologia na Faculty of Divinity da University of Edinburgh. É autor de O drama da doutrina, Encenando o drama da doutrina, O pastor como teólogo público e A Trindade, as Escrituras e a função do teólogo, publicados por Vida Nova. É também autor de Teologia primeira (Shedd Publicações).
Nesta obra, o aclamado estudioso Kevin Vanhoozer apresenta um modo de pensar teologia cristã que parte de sua obra desbravadora, O drama da doutrina, e nos conduz ao próximo passo. Vanhoozer defende que a teologia não é um simples conjunto de crenças cognitivas, mas também envolve discurso e ação na mesma medida. O autor usa o teatro como modelo para explicar de que maneiras a doutrina modela a compreensão cristã e gera discípulos.

A igreja, propõe Vanhoozer, é o teatro preeminente em que o evangelho é “encenado”, tendo a doutrina a dirigir essa encenação. As doutrinas não são apenas verdades para ser armazenadas, arquivadas e empilhadas, mas indicações e direções a ser seguidas, praticadas e encenadas. Ao “encenar” a doutrina, os cristãos são moldados e transformados desse modo em discípulos ativos de Jesus Cristo. Vanhoozer passa então a examinar o estado da igreja no mundo de hoje e analisa como os discípulos podem fazer ou encenar a doutrina.

 

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