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Satanás é derrotado, de Gustave Doré

A influência dolorosa do Maligno continua a ser sentida no mundo inteiro. Os horrores da guerra, da pobreza, da discriminação e da exploração financeira são evidentes em toda parte. Os cristãos não parecem ser imunes às instigações de Satanás para que pratiquem o mal. Muitos não resistem. Relatos de adultério, conduta financeira indevida, hipocrisia, divisão e afins são bastante típicos da igreja moderna. Muitos conselheiros pastorais relatam inúmeros casos de cristãos que lutam com dificuldade contra o envolvimento demoníaco direto em sua vida.

Satanás como inimigo derrotado, porém ativo

As experiências de vida deixam claro para nós que Satanás e suas forças persistem com grande energia em suas ações malignas. Paulo, em todas as suas cartas, tomou por certa a oposição contínua e poderosa de Satanás ao povo de Deus, e tratou com suas igrejas sobre como reagir a esse mal. Ao mesmo tempo, contudo, Paulo tinha convicção de que a morte e a ressurreição de Cristo haviam derrotado e despojado os poderes das trevas (Cl 2.15). Como entender essas duas perspectivas aparentemente contraditórias?

Primeiro, é verdade que, na cruz, Cristo conquistou uma vitória decisiva sobre os poderes. Em virtude de sua morte e ressurreição, ele quebrou o domínio opressor do mal sobre a humanidade, o que lhe permite resgatar pessoas do reino de Satanás e torná-las parte de seu reino. Uma vez que essas forças não têm poder ou autoridade sobre Cristo, também não têm poder ou autoridade sobre os que são membros de seu corpo. Os crentes consentem com a influência dos poderes malignos apenas na proporção em que não dependem dos recursos a seu dispor em Cristo. Os crentes podem resistir às tentações de Satanás ao pecado quando se apropriam do poder de Deus que lhes é oferecido por meio de sua união com Cristo.

Segundo, uma batalha decisiva muitas vezes determina o resultado de uma guerra. A vitória de Cristo na cruz definiu para sempre o resultado do conflito de Cristo com os poderes das trevas. A guerra continua, mas cada batalha é um confronto relativamente secundário em comparação com a batalha vencida pela morte e ressurreição de Cristo. Oscar Cullmann fez uma analogia proveitosa sobre o conflito de Cristo com os poderes ao usar dois acontecimentos importantes da Segunda Guerra Mundial: o Dia D e o Dia da Vitória na Europa.[1] Ninguém duvida que o resultado da Segunda Guerra Mundial foi decidido quando as forças aliadas desembarcaram na Normandia em 6 de junho de 1944 (Dia D). No entanto, o Dia da Vitória na Europa, isto é, o dia da vitória final, só chegou em 8 de maio de 1945, quase um ano depois. Muitas batalhas foram travadas e muitos soldados morreram, mas o fato de o inimigo não ter conseguido impedir a invasão bem-sucedida dos aliados definiu a guerra. Outro estudioso relaciona esses acontecimentos ao conflito de Cristo e da igreja com os poderes:

O Dia D foi apenas um prelúdio para o Dia V, o Dia de Cristo, a parúsia, o dia da vitória final de Deus em Cristo. É a convicção de que, embora a campanha talvez ainda se arraste e o Dia V, o dia de glória final, ainda não possa ser avistado, o Dia D acabou e os poderes do mal receberam um golpe do qual jamais se recuperarão.[2]

A igreja continua a viver nesse período de combate com os exércitos inimigos remanescentes. A vitória final é garantida, mas é ainda um tempo de perigo, e há muitas batalhas a serem travadas. Satanás e seus poderes continuam a atacar a igreja, a manter a humanidade cativa e a promover toda espécie de mal no mundo inteiro. Os crentes continuarão a sofrer os efeitos angustiantes do mal em grande escala instigado pelos poderes das trevas — males como guerra, políticas públicas moralmente deploráveis, crimes, violência de gangues e afins. Contudo, os poderes não podem mais nos fazer prisioneiros, nos separar de Deus e nos manter em pecado. Temos liberdade em Cristo. Temos uma mensagem de redenção e de liberdade a proclamar.

A natureza tripla das influências malignas

Ao enfocarmos sobre o tema dos principados e poderes pode levar o leitor a concluir que Paulo atribuía uma raiz demonológica a todo o mal. Não é o caso. O conceito paulino da natureza da influência maligna sobre as pessoas é bastante equilibrado.

Em Efésios 2.1-3, Paulo diz que o comportamento pecaminoso nasce de três influências persuasivas que podemos visualizar como três fios combinados para formar uma corda resistente. Essa corda amarra os descrentes firmemente e os mantém em escravidão no reino das trevas. Pode ser proveitoso retratar essas três fontes de influência maligna da seguinte forma:

  1. O mundo: “a ordem deste mundo”
  2. O Diabo: “o príncipe do reino do ar”, “o espírito que agora atua nos desobedientes”
  3. A carne: “as vontades de nossa natureza pecaminosa […] seus desejos e pensamentos”.

Do modo mais simples possível, podemos categorizar essas três influências como “o mundo, o Diabo e a carne”. No entanto, temos de considerar em mais detalhes o que Paulo disse de forma específica. Nessa passagem, Paulo estava revelando a natureza da vida de seus leitores antes de se voltarem para Cristo. Aqui, um conjunto de princípios dominantes nos ajuda a entender o conceito paulino de que o mal influencia a vida das pessoas em geral, sejam elas cristãs ou não cristãs. Os cristãos ainda precisam combater as mesmas fontes de influência maligna por meio do poder de Cristo. Aqueles que não são crentes, e estão, portanto, separados de Cristo, encontram-se escravizados por essas influências e não têm poder nem capacidade de escapar.

Quando Paulo falou da “ordem deste mundo”, tinha em mente a poderosa influência das atitudes, dos hábitos e das preferências sociais contrários aos padrões de santidade de Deus. Literalmente, o texto culpa o caráter da “era deste mundo”. Há um contraste nítido entre o caráter “desta era” e o da “era vindoura”. John R. W. Stott descreve muito bem o caráter da “era deste mundo”:

As duas palavras, “era” e “mundo,” expressam todo o sistema social de valores contrário a Deus. Esse sistema permeia e, na verdade, domina toda a sociedade não cristã e mantém as pessoas em cativeiro. Onde quer que pessoas estejam sendo desumanizadas — por opressão política ou tirania burocrática; por uma perspectiva secular (que rejeita Deus), amoral (que rejeita absolutos) ou materialista (que exalta o mercado de consumo); por pobreza, fome ou desemprego; por discriminação racial; ou por qualquer forma de injustiça — ali podemos detectar os valores sub-humanos “desta era” e “deste mundo”.[3]

Essa influência começa quando a pessoa nasce, com os valores que lhe são transmitidos por seus pais e pela família mais ampla. É reforçada ao longo de toda a vida, tanto formal quanto informalmente, por meio do sistema de ensino e da mídia, bem como por pressão de pares. Continua a ser transmitida por meio de formas de pensar, tradições, costumes e até mesmo instituições. Isso não significa que tudo na sociedade é mau. No entanto, há muita coisa na sociedade que nos afasta de Deus.[4]

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“O príncipe do reino do ar”, a segunda influência maligna que Paulo retratou, é um ser sobrenatural poderoso encarregado de toda a hoste de espíritos malignos que, de acordo com a crença dos antigos, residia no ar. Esse governante é, mais precisamente, um “espírito”, e Paulo descreveu seu método de forma bastante imediata e direta: “O espírito que agora atua nos [ou entre os] desobedientes”. Seria impreciso dizer que todos que desobedecem a Deus estão “possuídos” por um espírito maligno. No entanto, Paulo deixou claro que esse agente perverso e seus emissários exercem um tipo de influência bastante próximo e pessoal sobre indivíduos. Esse espírito exerce forte influência persuasiva, embora muitas traduções em nosso idioma não captem essa descrição. Quando Paulo disse que o príncipe “atua”, usou uma palavra que fazia parte de seu vocabulário de poder e que pode ser traduzida por: “O espírito que agora opera poderosamente…”. A GNB traduz por “o espírito que agora controla as pessoas”. Observe que Paulo enfatiza aqui a obra do espírito maligno em pessoas, e não em instituições.

A última influência maligna que Paulo ressaltou foi o que ele chamou “a carne”. Essa é a expressão predileta de Paulo para falar do impulso interior das pessoas de agir de maneiras que se desviam do padrão de retidão de Deus. Indica não apenas a força motivadora interior por trás das ações associadas ao corpo, como pecado sexual, mas também aspectos da vida de pensamento, como inveja e ira. Esse impulso interior de fazer o mal é contrastado com o novo impulso de viver com integridade moral proporcionado pela dádiva divina do Espírito Santo (cf. Gl 5.19-23).

Portanto, Paulo apresentou o verdadeiro caráter da influência maligna em todas as suas três manifestações. A fonte das tendências malignas é tanto interior quanto exterior às pessoas, bem como sobrenatural. Indivíduos têm uma propensão interior para o mal, e seu ambiente (seus pares, a mídia, normas sociais, e assim por diante) também os influencia fortemente. Essa perspectiva que associa as categorias “o mundo, a carne e o Diabo” também era parte importante do pensamento de Tiago (veja Tg 3.15), de João (1Jo 2.15-17; 3.7-10) e, supostamente, do pensamento comum na igreja primitiva.

O ensino de Paulo indica que a explicação para nosso comportamento não se encontra exclusivamente na natureza humana ou na influência do mundo. De modo semelhante, uma explicação exclusivamente demoníaca para comportamentos divergentes é indevidamente míope. Antes, devemos explicar comportamentos com base simultaneamente na natureza humana, no ambiente e na influência demoníaca. Uma parte talvez desempenhe um papel predominante, mas as três partes precisam ser levadas em conta. A teologia de Paulo sobre esse assunto tem implicações importantes para aqueles que se dedicam a ministérios de aconselhamento. No entanto, também precisamos considerá-la de grande relevância para a vida da igreja.

O aspecto demoníaco recebe a maior ênfase em Efésios e Colossenses, enquanto a carne é mais proeminente em Romanos e Gálatas. As situações gerais dos leitores de cada livro talvez contribuam para essas ênfases específicas. Se os leitores efésios e colossenses tinham a tendência de precisar de ajuda para lidar com seu envolvimento passado com práticas de ocultismo, esse fato pode explicar por que o aspecto demoníaco é enfatizado mais fortemente nessas duas cartas.

Em última análise, porém, Paulo considerava Satanás o principal adversário de Cristo e de seu reino. A explicação demoníaca para o comportamento perverso precisa ser vista como o fio que liga todas as três influências malignas. Na prática, Satanás explora as tendências depravadas da carne e exerce certa medida de controle sobre todos os níveis de determinada ordem social.

Por meio da cruz de Cristo, os cristãos são libertos dessas influências persuasivas e escravizadoras. A morte e a ressurreição de Cristo trouxeram a “era vindoura”, a qual irrompe na presente era. Hoje, os crentes já participam de muitas das bênçãos e de muitos dos recursos da era por vir. Por meio da cruz de Cristo, nossa carne foi crucificada, e podemos viver sob os impulsos do Espírito Santo, que nos conduz e nos capacita. Por fim, a cruz de Cristo marcou a vitória decisiva de Deus sobre os poderes do mal. Por meio da união com Cristo, os cristãos podem resistir a Satanás e ser vitoriosos sobre seu reino.


[1] Oscar Cullmann, Christ and time, tradução para o inglês de Floyd V. Filson (Philadelphia: Westminster, 1949), p. 139-43 [publicado em português por Fonte Editorial sob o título Cristo e o tempo].

[2] A. M. Hunter, conforme citado em J. Christian Beker, Paul the Apostle (Philadelphia: Fortress, 1980), p. 159 [publicado em português por Academia Cristã sob o título Apostolo Paulo: vida, obra e teologia].

[3] John R. W. Stott, The message of Ephesians, The Bible Speaks Today (Downers Grove: InterVarsity, 1979), p. 73.

[4] Para uma descrição proveitosa da natureza perversa do “mundo” e “desta era” e como essa realidade influencia a ordem social, veja Stephen C. Mott, Biblical ethics and social change (Oxford: Oxford University Press, 1982), cap. 1: “Biblical faith and the reality of social evil”, p. 3-21.

Trecho extraído e adaptado da obra “Poderes das trevas: principados e potestades nas cartas de Paulo“, publicada por Vida Nova: São Paulo, 2024, p. 183-190. Traduzido por Susana Klassen. Publicado no site Cruciforme com permissão.

Clinton E. Arnold é Ph.D. pela Universidade de Aberdeen na Escócia, com pós-doutorado pela Universidade Eberhard Karls Tübingen, na Alemanha. Atualmente é professor de Novo Testamento na Talbot School of Theology, Universidade Biola, na Califórnia, e autor de vários livros, entre eles Ephesians: power and magic. Arnold é casado com Bárbara e têm três filhos e três netos.
Poderes das trevas é um livro raro que desenvolve uma teologia bíblica equilibrada sobre demônios, principados e potestades. Clinton Arnold procura focar nas cartas de Paulo, especificamente no que elas ensinam sobre esse tema. Ademais, visando ampliar o quadro sobre esse assunto, ele investiga as crenças gregas, romanas e judaicas do século 1 e também a perspectiva de Jesus sobre magia, feitiçaria e adivinhação.

Arnold não compactua com as diversas interpretações recentes que acreditam que principados e potestades são meras estruturas sociais, econômicas e políticas impessoais. Ele propõe que o Novo Testamento vê essas forças como seres pessoais e organizados, os quais Jesus derrotou na cruz, e ele as sujeitará a si plenamente na segunda vinda.

Publicado por Vida Nova.

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