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Lutero na Dieta de Worms, por Anton von Werner, 1877.

Alguns anos atrás, o finado David Watson disse publicamente que a Reforma tinha sido uma tragédia na história da Igreja. Sua declaração causou uma grande celeuma na época, particularmente entre aqueles que pensaram que Watson estava repudiando mais de quatrocentos anos de história e tradição da igreja da Inglaterra em nome de uma unidade cristã que ele e outros alegaram ter encontrado em e através de sua experiência carismática compartilhada. Quando desafiado a esse respeito, Watson meio que bateu em retirada e explicou que existiram muitos bons aspectos na Reforma, embora ela tivesse deixado uma igreja dividida e um clima de amargura entre os cristãos. Ao longo dos anos, esses sentimentos tinham causado prejuízos incalculáveis e repercussões negativas ainda podiam ser sentidas mesmo no ambiente mais secular de hoje. Em tal situação, afirmou Watson, os cristãos têm o dever de ser restauradores e mediadores, deixando de lado preconceitos antigos e aceitando uns aos outros como irmãos na fé.

O movimento carismático, ao qual Watson pertencia, tinha sido um pioneiro nesse quesito, rompendo barreiras denominacionais em todo o espectro e criando um clima de comunhão espiritual entre aqueles que eram doutrinária e institucionalmente divididos. Nos vinte anos ou mais que se passaram desde então, as relações entre as igrejas não têm sido sempre tranquilas, mas seria justo dizer que os diálogos ecumênicos entre evangélicos de diferentes denominações e católicos romanos produziram mais frutos do que teria parecido possível naquele tempo. Também é verdade, naturalmente, que esses diálogos provocaram alguma inquietação (em ambos os lados), e que o futuro do diálogo evangélico-católico é, na melhor das hipóteses, duvidoso. No lado evangélico, muitos acreditam que foram tão longe quanto podiam ir e alguns, inclusive, acham que isso foi longe demais. Para eles, a Reforma foi uma separação de caminhos que nunca pode ser desfeita e Roma permanece alienada e hostil àquilo que eles entendem como a verdade do evangelho.

As diferenças que dividiram a igreja no século dezesseis foram realmente tão profundas a ponto de não mais poderem ser sanadas? Qual deve ser a atitude dos protestantes, especialmente dos protestantes evangélico-conservadores, para com os católicos romanos e sua igreja? David Watson estava certo ao chamar a Reforma de “tragédia”? Se sim, devemos buscar corrigir essas diferenças? O que efetivamente significaria “corrigir as diferenças”? Se quisermos alguma vez vencer a hostilidade dos séculos, essas são questões com as quais evangélicos e católicos romanos têm de lutar, por mais doloroso e difícil que possa ser às vezes. Se não fizermos isso, então nem as interações que desenvolvemos até aqui nem qualquer diálogo futuro poderão nos levar muito longe no caminho da reconciliação.

Em apoio à afirmação de Watson, certamente é verdade que o ódio entre católicos e protestantes causaram guerras e perseguição em muitos países diferentes e que os efeitos disso ainda são visíveis em alguns lugares hoje. Cristão nenhum pode ficar feliz com isso, e todos nós temos espaço para nos arrependermos do notório odium theologicum que tão amiúde tem dominado o debate teológico e sufocado esse espírito de caridade, o qual está no centro do ensino de Cristo. Protestantes e católicos deviam reconhecer que esse histórico de confrontos geralmente tem beneficiado apenas os céticos, ateus e outros depreciadores do cristianismo que dominam nossa sociedade secular. No século dezessete, o espetáculo de cristãos torturando e matando uns aos outros em nome de versões conflitantes da “verdade absoluta” foi o suficiente para enfadar almas sensíveis, e isso se tornou um importante fator de contribuição para o surgimento do Iluminismo, que procurou construir um novo consenso social baseado na razão humana em vez de nas interpretações incompatíveis da revelação divina. Nesse sentido, a Reforma e seu resultado foi de fato trágico, e podemos concordar inteiramente com David Watson.

Além disso, devemos reconhecer que no século vinte, e com um ímpeto cada vez maior desde o Segundo Concílio Vaticano, os católicos romanos fizeram, pela primeira vez, uma tentativa sincera e abrangente de mudar essa atmosfera de desconfiança e ódio mútuos. O movimento ecumênico pode ter começado a quase uma centena de anos atrás como um esforço para coordenar a obra missionária entre protestantes, mas desde aproximadamente 1960 ele se alastrou para incluir tanto católicos romanos como a Igreja Ortodoxa[1]. Isso aconteceu em parte porque as terras históricas da Igreja Ortodoxa têm impelido essas igrejas a buscarem apoio em outros lugares, e em parte porque a Igreja Romana tem atinado para a necessidade de modernização e envolvimento com o mundo mais amplo – aquilo que o último Papa João XXIII chamou de aggiornamento[2]. O ecumenismo se tornou, assim sendo, uma subcultura cristã, proporcionando uma ampla gama de encontros, publicações e iniciativas tencionados para mostrar como cristãos de diferentes persuasões podem trabalhar juntos. Isso tem se mostrado mais bem-sucedido no nível acadêmico, onde protestantes e católicos agora interagem uns com os outros como algo natural. Tanto é assim que, nos dias de hoje, as Sociedades Bíblicas Unidas conseguem (e o fazem) produzir edições e traduções das Escrituras projetadas para servir a todos os cristãos, sem discriminação, e somente mui raramente resultam em problemas sérios[3].

Também têm havido progressos consideráveis na junção de empreendimentos litúrgicos, com textos comuns sendo produzidos para a Oração do Senhor, os Credos e os Dez Mandamentos. O adorador casual que visita um culto anglicano, luterano ou católico pode não se dar conta imediatamente de onde ele está, tão semelhantes são as formas de culto ora em uso. Ademais, todos cantamos os mesmos hinos e coros, que desconhecem fronteiras denominacionais. A banalidade extrema da maioria dessas coisas (para não mencionar o estilo intumescido e sem inspiração das liturgias modernas) pode ser incômoda para os que têm ouvidos sensíveis, embora esta não seja uma questão denominacional, exceto em certos círculos católico-romanos[4]. Mas contra esses sinais de convergência crescente entre as igrejas deve ser posta a desintegração crescente dentro de muitas delas. Os católicos romanos hoje não estão tão unidos em torno do Papa como estavam há cinquenta anos e a crítica à hierarquia agora é corriqueira, particularmente entre o laicato[5]. Mas, a despeito desse desafio, Roma tem, até aqui, conseguido conter as críticas dentro de certos limites. Os leigos podem queixar-se da falta de mulheres padres, por exemplo, e até mesmo alguns padres podem criticar os pronunciamentos papais de um tipo ou outro. Mas, quando chega a hora da verdade, nenhum porta-voz da igreja Católica, sobretudo nenhum bispo, é permitido afastar-se da linha oficial da igreja sem que seja punido por isso[6]. Em nítido contraste com isto está o desaparecimento quase completo de qualquer forma de disciplina eclesiástica na maior parte das igrejas protestantes. O pior de tudo, em muitos casos, é que não são os leigos, mas a liderança oficial das igrejas protestantes que nega os princípios mais básicos do cristianismo e promove um estilo de vida totalmente discrepante com os padrões bíblicos. A Igreja da Inglaterra pode suspender um clérigo que se recusa a batizar um bebê e ameaça ordinandos que não querem usar uma estola em sua ordenação, mas não faz nada para silenciar os bispos que negam a ressurreição de Cristo ou que estimulam a prática da homossexualidade.

Essa situação coloca os membros de igrejas fiéis em uma posição difícil caso eles tentem defender as confissões de fé de suas igrejas e duplamente, portanto, se tentarem insistir que tais confissões deviam ter alguma autoridade sobre as consciências dos membros das igrejas. Um anglicano evangélico que define sua posição sobre a Escritura e os Trinta e Nove Artigos é uma figura impopular cujos pontos de vista estão sujeitos a serem rejeitados peremptoriamente – com ou sem a ridicularização que certamente será expressa em privado, ainda que isso não chegue ao conhecimento do público. A principal razão para isso é que tal lealdade aos ensinos oficiais da igreja, se fosse para serem aceitos largamente, acarretaria no afastamento de uma proporção significativa da alta liderança da igreja. Isso não está na ordem do dia, portanto, e os protestantes conservadores devem ou viver dentro de uma igreja que eles consideram corrupta ou sair e fundar uma organização fragmentada com tudo o que isso implica[7].

De qualquer modo, eles estão em uma posição difícil com respeito ao catolicismo romano, uma vez que não conseguem justificar facilmente sua separação de Roma como uma igreja corrompida quando sua própria comunidade religiosa é algo muito pior – na prática, ou mesmo no papel. Este é um assunto de particular importância para protestantes comprometidos, pois a lacuna de credibilidade entre o que suas igrejas oficialmente proclamam e o que a liderança realmente acredita é tão grande que muitos membros normalmente leais são tentados a olhar para outros lugares. Com efeito, não poucos têm ido para Roma ou para uma das igrejas orientais em busca da autoridade e segurança que suas próprias igrejas não podem lhes dar. Isso não vem de hoje, como se sabe, e os anglicanos têm se acostumado a ver isso entre os antigos anglo-católicos. Mas, recentemente, o movimento espalhou-se para além desse campo de recrutamento tradicional para atrair pessoas que vêm de um tipo muito diferente de protestantismo. Essa tendência é mais visível nos Estados Unidos do que em outros lugares, mas existem, hoje, muitas pessoas de um contexto conservador-evangélico que se tornaram católicos romanos, e talvez como muitos que foram para a Igreja Ortodoxa. Em termos de números globais, isso pode não ser muito significativo, uma vez que também há muitos católicos e ortodoxos que se tornaram evangélicos, mas o tipo de convertido é notoriamente diferente. Católicos (e ortodoxos) que se tornam protestantes são, normalmente, pessoas que eram apenas membros nominais dessas igrejas. Eles raramente conhecem muito sobre elas além daquilo que podem ter experimentado quando crianças e dificilmente já pararam para estudar a sua teologia com seriedade.  Muitas vezes eles ouviram o evangelho em uma situação paraeclesiástica, fizeram uma profissão de fé e se juntaram a uma igreja evangélica, tornando-se membros de igreja ativos pela primeira vez. Suas memórias do catolicismo ou da Igreja Ortodoxa podem ser amargas, especialmente porque eles não ouviram o evangelho naquele ambiente, mas eles raramente estão bem-informados do que rejeitaram.

É muito diferente com evangélicos que têm sido atraídos a Roma ou para a Igreja Ortodoxa. Normalmente se trata de pessoas que têm se comprometido profundamente com sua fé (senão a uma igreja específica), e que são bem versadas nos fundamentos da teologia evangélica. Elas têm sido atraídas por essas outras formas de cristianismo em parte porque as percebem como guardiãs mais autênticas da tradição antiga e porque praticam o tipo de disciplina que falta em suas próprias comunidades, mas também porque estão convencidas de que o catolicismo (ou a Igreja Ortodoxa) é a “plenitude” de um cristianismo que eles absorveram apenas parcialmente em um ambiente evangélico. Para elas, o protestantismo, e em especial o protestantismo evangélico, é uma forma truncada de cristianismo – o evangelho menos algo, contrariamente à acusação evangélica tradicional de que o catolicismo romano (e presumivelmente a Igreja Ortodoxa também) é o evangelho mais uma porção de acréscimos posteriores. Mesmo quando o devido desconto é dado ao romantismo nesta observação[8], essas pessoas podem se tornar prosélitos articulados de suas novas igrejas. Todas elas são mais persuasivas porque não há dúvidas de que possuem um conhecimento genuíno e interno do mundo evangélico (e protestante) e suas crenças. Os evangélicos podem achar que elas estão erradas, mas não podem rejeitar as acusações peremptoriamente.

Há alguma verdade na afirmação de que o protestantismo evangélico é uma forma inadequada e deficiente de cristianismo? Os problemas de disciplina que vemos nas igrejas protestantes podem ser atribuídos a algum elemento perdido que os católicos (e/ou a Igreja Ortodoxa) possuem? O que podemos dizer a alguém como Scott Han, um ex-evangélico: que a conversão a Roma é comparável ao retorno do filho pródigo que desperdiçou sua herança em uma tentativa vã de ser livre?[9]

O desenvolvimento da tradição teológica cristã

Para responder essas perguntas, temos que olhar para trás para ver como a tradição teológica cristã cresceu e se desenvolveu desde os tempos do Novo Testamento. Há muitos modos diferentes de examinar isso, mas uma abordagem trinitariana pode reivindicar, com justiça, ser a mais fiel ao espírito íntimo desse desenvolvimento. Afinal de contas, é a doutrina da Trindade que tanto distingue o cristianismo de outras religiões – incluindo os estreitamente relacionados judaísmo e islamismo – como une todos os cristãos professos[10]. Se olharmos para o desenvolvimento cristão em termos trinitarianos, podemos ver que houve uma progressão lógica da pessoa do Pai para sua obra, depois para a pessoa e obra do Filho e, por fim, para a pessoa e obra do Espírito Santo.

O conflito sobre a pessoa do Pai é que contrapôs Jesus aos judeus de seu tempo e isso é, por conseguinte, visível no Novo Testamento. Quando Jesus ensinou seus discípulos a orar, ele lhes mandou dizer “Pai Nosso” e o Novo Testamento preserva a palavra aramaica abba, como tendo sido usada pelo próprio Jesus. A partir de João 5.18 descobrimos que esse ensino não foi benquisto pelos judeus, pois isto soou para eles como se Jesus estivesse se equiparando a Deus. A lógica por trás desta crença é simples. Uma criança é igual a seus pais no sentido em que ambos são plenamente humanos; portanto, se Jesus é o Filho de Deus, ele precisa ser plenamente divino. Jesus provavelmente quis dizer apenas isso no tocante a si mesmo, mas ele também mandou seus seguidores orarem a Deus como “Pai nosso”, o que indica que ele quis que eles tivessem um relacionamento com Deus que fosse significativamente diferente de qualquer coisa a qual os judeus estavam acostumados. É difícil encontrar a maneira certa de expressar essa diferença, mas talvez possamos dizer que os judeus olharam para Deus “no lado de fora”. Deus era uma presença no meio deles, não se devia chegar muito perto dele e definitivamente não se podia tocá-lo. Ele estava situado além do seu povo e, consequentemente, a lei que ele lhes deu era fundamentalmente externa em sua natureza e exigências. Jesus Cristo, contudo, internalizou a lei para que nele fôssemos, de alguma forma, “mergulhados” em Deus. Apenas para colocar como o Novo Testamento o faz, o véu do templo foi rasgado ao meio para que, agora, possamos ficar com Deus no santo dos santos (Mateus 27.51; Efésios 2.6). As barreiras foram removidas para nos permitir conhecê-lo e experimentá-lo de um modo outrora impossível. Numa palavra, podemos chamar Deus de “Pai” como Jesus chamou, porque, mediante a nossa adoção como filhos, participamos do relacionamento que é seu por natureza (Gálatas 4.6).

Uma vez que o ponto foi entendido, a teologia cristã passou para a próxima questão, que dizia respeito à obra do Pai. Aqui os cristãos encontraram oposição não tanto da parte dos judeus, mas de muitos diferentes grupos a quem ora damos o rótulo genérico de “gnósticos”. Esse pessoal acolheu todo tipo de teorias estranhas sobre a relação da criação à redenção, mas, basicamente, a maioria deles acreditava que Yahweh era um deus inferior, que havia sido suplantado pelo Pai de Jesus Cristo a quem eles identificavam com o deus redentor. Contra esta teoria, a igreja teve que proclamar que o criador e o redentor eram um e o mesmo Deus. Nossa redenção em Cristo não é fruto de uma batalha cósmica entre duas deidades opostas, mas o cumprimento de um plano que estava na mente do Pai desde o início. Ao unir criação e redenção como a obra de um único Deus, os cristãos estavam redefinindo a relação entre espírito e matéria, tal como essa questão era entendida de modo geral no mundo antigo. Eles estavam afirmando a soberania desse Deus sobre toda a criação – forma alguma de mal, por mais poderosa que possa parecer, era sequer párea para ele. Dentro da Divindade Trinitariana, moldar o plano da criação e da redenção era a obra especial do Pai. Foi ele quem enviou primeiro o Filho e depois o Espírito para realizar a sua vontade. Ao apegar-se a isso e insistir que a visão unitária (independentemente dos seus problemas) era superior ao dualismo cósmico, a igreja, consequentemente, livrou-se do gnosticismo e emergiu com uma mensagem do evangelho que reivindicou toda a criação.

O próximo estágio do desenvolvimento teológico cristão teve a ver com a pessoa de Cristo, e isso originou-se naturalmente da questão da obra do Pai. Se o Pai era tanto criador como redentor, onde o Filho se encaixava aí? Era possível dizer que, como parte de seu plano, o Pai criou o Filho e fez dele o nosso redentor? Este era o ensino de Ário (336 d.C.) e por um tempo pareceu que ele fosse dominar a igreja completamente. Havia muitos versículos bíblicos que pareciam indicar que o Filho era de certa forma inferior ao Pai, e não foi difícil usar o termo “geração” para que ele significasse “criação” – afinal de contas, nós ainda falamos do nascimento como “procriação”! O que Ário fez foi forçar a igreja a repensar toda a sua teologia, a fim de deixar perfeitamente claro que o Filho era uma pessoa divina absolutamente igual ao Pai, embora distinto dele de alguma forma misteriosa. Foi o Filho quem se tornou um homem e morreu na cruz, não o Pai[11], embora a plenitude de Deus habitasse no corpo do Filho (Colossenses 2.9).

Levou muito tempo para se desenvolver as implicações disso, mas a história da igreja do Primeiro Concílio de Nicéia (325 d.C.) até o de Calcedônia (451 d.C.) – e até mesmo posterior – é a história de como isso foi feito. Houve um preço a pagar por essa elucidação porque foi nessa época que dois grandes ramos da igreja se separaram do corpo principal. Um foi o ramo que conhecemos hoje como “monofisistas”, pois ele aderiu à crença de que em Cristo há apenas uma natureza – a divina –, embora ela, de algum modo, tivesse adquirido todos os atributos da humanidade também[12]. O outro é o ramo que chamamos de nestoriano, em homenagem a seu suposto fundador, Nestório (451 d.C.). Os nestorianos sustentavam uma estrita distinção entre as naturezas divina e humana em Cristo, mas levaram isso tão longe que correram o risco de dividir a sua pessoa em dois[13]. A igreja teve que manter um equilíbrio aqui, enfatizando a unidade da pessoa de Cristo e a distinção de suas duas naturezas. Isso só foi possível pela transformação de ideias comumente aceitas de como essas duas coisas estavam relacionadas na cabeça deles. Antes do Concílio de Calcedônia, a maioria das pessoas pensava primariamente em termos de natureza (p. ex., a palavra “Deus” significava o que hoje chamaríamos de “deidade” ou “divindade”, e “homem”, o que chamaríamos de “humanidade”) e uma “pessoa” era apenas a forma visível que a natureza subjacente assumia. Na batalha pela unidade da pessoa de Cristo, os cristãos viraram esse jogo e disseram não – a pessoa do Filho é primária, e possui sua natureza. Ao tornar-se um homem, ele adquiriu uma segunda natureza sem perder a primeira. Foi isto o que lhe tornou possível salvar-nos como um homem, sem abdicar de seu poder e identidade como Deus.

Uma vez que isto foi estabelecido, a questão teológica concentrou-se na obra de Cristo. Na igreja primitiva, esta questão foi respondida apelando-se para o ser encarnado do Filho – como Gregório de Nazianzo colocou: “O que não foi assumido [pelo Verbo], não foi redimido”[14]. Para saber se fomos salvos ou não, era, portanto, necessário saber se o Filho de Deus era um ser humano completo ou não, com uma alma, uma mente, uma vontade e assim por diante. Isso foi bom até certo ponto, mas não explicou porque o Filho de Deus teve que sofrer e morrer por nós. Como colocaríamos hoje, não havia nenhuma doutrina desenvolvida da expiação, relacionando a morte de Cristo ao sacrifício anual feito pelo sumo-sacerdote no antigo Israel, embora tal ligação esteja claramente presente no Novo Testamento. Foi somente nos dias de Anselmo de Cantuária (1033-1109) que esse problema foi acompanhado diretamente, e é digno de nota que Anselmo tenha começado com a encarnação – por que Deus se fez homem?[15] Mas, embora tenha começado neste ponto, Anselmo foi mais além e discutiu em detalhes o que a encarnação do Filho de Deus de fato fez na cruz. Sua conclusão foi que Cristo pagou o preço pelos pecados de todo o mundo, dando satisfações a Deus, o Pai, pelas ofensas que seu povo havia cometido. A teoria de Anselmo foi amplamente aceita, e logo tornou-se o ensino padrão da igreja ocidental.

A doutrina de Anselmo não adentrou a Igreja Ortodoxa, contudo, pois, àquela altura, outra controvérsia havia irrompido, desta feita no tocante à pessoa do Espírito Santo[16]. João 15.26 declara muito claramente que o Espírito Santo procede do Pai e esse ensino foi incorporado no Credo Niceno, mas nada foi dito sobre a parte desempenhada pelo Filho nisto. O Espírito Santo procede apenas do Pai ou do Pai e do Filho? As Igrejas Ortodoxas responderam que apenas do Pai e a Igreja Ocidental (seguindo Agostinho), do Pai e do Filho. Esta controvérsia jamais foi resolvida e continua sendo o principal obstáculo para a comunhão plena entre o Oriente e o Ocidente. A questão também é complicada de lidar aqui[17], mas praticamente ninguém concordaria que esta diferença de crença é refletida em um senso visivelmente diferente de espiritualidade nas duas igrejas. O cristianismo ocidental geralmente é considerado ser menos “místico” e sobrenatural em tonalidade do que sua contraparte oriental e isto pode dever-se, ao menos em parte, ao seu entendimento diferente da procedência do Espírito Santo. O que é certamente verdade é que a doutrina agostiniana da dupla procedência está enraizada em um entendimento específico da Trindade como uma comunidade de amor divino e os teólogos ocidentais, de modo geral, acreditavam que a doutrina é necessária se essa comunidade de amor deve ser percebida na experiência da igreja.

A última questão teológica que teve de ser abordada diz respeito à obra do Espírito Santo e é aqui que a divisão entre o catolicismo romano e o protestantismo se faz sentida. Ambos os ramos da igreja ocidental concordam que o Espírito Santo é o Espírito de Cristo e que é ele quem dá vida ao corpo de Cristo. Mas eles divergem quanto à forma como isso acontece. Colocando de modo simples, podemos comparar a diferença com o que já observamos sobre o judaísmo e o cristianismo[18]. O catolicismo romano acentua a obra externa do Espírito – o sacerdócio, os sacramentos, a igreja e assim por diante. Ele justifica essa abordagem afirmando que ela é objetiva, ou seja, que a pessoa que é batizada da forma correta recebe o dom do Espírito Santo e é nascida de novo, independentemente da opinião pessoal dela sobre isso. Por esse motivo, o entendimento católico de “fé” está indissoluvelmente atado às obras, pois as atividades externas estimulam e fortalecem a fé. Sem as obras, particularmente as obras sacramentais da igreja, não pode haver fé – a própria ideia é um contrassenso.

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Liderados por Lutero, os protestantes rejeitaram esse modo de pensar porque creem que a obra do Espírito Santo é primariamente interna, resultando em uma mudança do coração e da mente. É por isso que Lutero insistiu que um crente é justificado, à vista de Deus, somente pela fé (isto é, sem obras), mas isso também explica porque seus oponentes católicos não aceitaram esse ensino – eles não entenderam o que ele quis dizer. Os católicos não tinham problema algum com a ideia da justificação pela fé – nem mesmo com a justificação “somente” pela fé, mas, por causa de seu entendimento da obra do Espírito Santo como fundamentalmente externa, eles não puderam imaginar como podia haver fé sem obras. As duas necessariamente andavam juntas, quase do mesmo modo que o casamento não é apenas um compromisso espiritual entre duas pessoas, mas uma mudança de estilo de vida que envolve uma cerimônia pública e a subsequente coabitação. Ter um sem o outro não faz sentido e assim foi com a tentativa de separar a “fé” das “obras”. Para os católicos, Lutero estava dizendo que um cristão podia ser salvo pela mera crença, quer seu comportamento correspondesse a ela ou não. Os protestantes, por outro lado, apelaram para o ensino do apóstolo Paulo em Romanos 6 – o ensino de que, uma vez que a pessoa é nascida de novo, todo o resto flui naturalmente desse fato básico. Em outras palavras, se o Espírito Santo mudou seu coração, então seu comportamento (“obras”) refletirá isso, mas, se isso não ocorreu, quantidade alguma de “obras” pode fazer isso acontecer – praticar boas obras de maneira mecânica, mesmo que sejam práticas que possuem o selo de aprovação da igreja, não trará você ou quem quer que seja para mais perto de Deus.

É esse senso da presença interior e do poder transformador do Espírito Santo na vida do crente que distingue o protestante do católico mais claramente. Seus efeitos são imediatamente visíveis quando discutimos a questão da segurança da salvação. Pergunte a um católico romano se ele irá para o céu quando morrer e ele dirá que não sabe. Ele confia na igreja para a sua salvação e espera que, ao fazer o que ela diz, estará na trilha certa quando morrer; mas se (como é bem provável) ele não chegou completamente a esse ponto, ele pode ir para o purgatório resolver seu débito excedente de pecado pelo tempo que for preciso até que seja digno de ser admitido no céu. Faça a mesma pergunta a um evangélico e ele dirá de maneira muito simples que sim, que irá para o céu quando morrer, pois foi unido a Cristo não apenas em sua morte, mas também em sua ressurreição e vida nova. Ao ouvir isso, o católico provavelmente acusará o evangélico de presunção (“como você pode dizer uma coisa dessas?”), ao que o protestante responderá dizendo que sua segurança não está baseada em nada do que ele fez ou realizou, mas na graça de Deus que lhe foi prometida em Cristo. Se obter o céu fosse uma questão de merecimento, então ninguém jamais iria para lá, uma vez que nem mesmo um milhão de anos no purgatório poderiam tornar uma pessoa sequer mais digna do que ela já é. Aqueles que vão para o céu são completamente indignos deste dom da graça e sempre o serão mesmo após chegarem lá. Por quê? Porque ir para o céu é uma questão de estar unido a Cristo de tal maneira que é sua justiça, e não a nossa, que fornece a plataforma sobre a qual podemos ficar na presença de Deus. Como Jesus mesmo disse, ele nos escolheu, não o contrário (João 15.16). Sei que irei para o céu porque, conquanto eu continue a pecar até o dia em que eu morrer, a justiça de Cristo e o perdão que vem dela não podem falhar. Minha segurança de salvação não é presunção, mas fé – e “somente” fé.

Isso nos traz de volta à teoria da expiação de Anselmo que Lutero e seus seguidores modificaram pouco, mas de modo significativo. Anselmo falou que Cristo morreu pelos pecados, mas Lutero modificou isto para dizer que Cristo morreu por pecadores. Em outras palavras, Cristo morreu não por coisas, mas por pessoas, exatamente como o Espírito Santo opera não em coisas, mas em pessoas. Cristo morreu por mim e, ao fazer isso, ele limpou os meus pecados no processo. Um católico crê que ele morreu por nossos pecados em um sentido objetivo, mas, se quisermos nos beneficiar desta morte, temos de recorrer à graça disponível para nós através do(s) sacerdócio(s) da igreja. Essas são as obras da fé que tornam a graça de Deus uma realidade em nossas vidas. Os protestantes dizem não a isso – a graça de Deus é dada a nós pela presença interior do Espírito Santo, que é o Espírito do Cristo que morreu por mim. Ainda sou um pecador e qualquer justiça que eu possa reivindicar é sua, não minha. No linguajar da teologia reformada, ela é “imputada” a mim, não “transmitida” ou “infundida”. A diferença é que eu permaneço totalmente dependente de Cristo para tudo quando sua justiça é “imputada”, pois ela continua sendo sua posse plena e exclusiva. Se, por outro lado, ela tivesse de ser “transmitida” ou “infundida” a mim, então eu me tornaria, em alguma medida, justo em mim mesmo e, em algum sentido, seria capaz de cooperar com Deus na consecução da minha própria salvação.

Aqui nós constatamos que a teologia católica não faz a mesma distinção entre justificação e santificação a que os protestantes estão acostumados. Visto que os protestantes creem que foram justificados de uma vez por todas através da morte de Cristo na cruz, eles consideram o subsequente crescimento na vida cristã como um processo de santificação que nos acompanhará enquanto vivermos nesta terra. Eu posso ser mais ou menos santificado, mas nunca mais ou menos salvo – essa é uma obra definitiva de Cristo que não pode ser desfeita, por mais pobres que os frutos de nossa santificação possam se revelar. Os católicos, por outro lado, veem a justificação e a santificação como dois lados da mesma moeda – um crente é justificado na medida em que é santificado e este último pode ser usado como um indicador por meio do qual se mede o primeiro. Por esse padrão de progresso, ninguém pode ter certeza de sua salvação, uma vez que mesmo os maiores santos dificilmente estão santificados o bastante aos olhos de Deus! Os católicos, às vezes, acusam os protestantes de acreditarem que podem fazer o que bem entenderem nesta vida que isso não afetará sua salvação, uma acusação que ilustra muito bem o seu próprio modo de pensar, mas que deixa muitos protestantes perplexos. Em nossa concepção, uma pessoa que nasceu de novo não pensará em pecar a contragosto, porque em Cristo ela se fez nova criatura e o antigo modo de pensar já passou (Romanos 6.1-14). Todo cristão sabe, por experiência, que tem de depender de Deus por graça para vencer a tentação e o pecado presente.  O Espírito Santo dentro de nós nos dá a força para vencer essa luta e os protestantes evangélicos creem que qualquer um que não perceba isso não é um cristão de jeito nenhum.

É verdade que o sucesso ou fracasso na luta espiritual não afeta minha salvação, mas isso é porque ela não se apoia em minhas “obras”, mas em uma base completamente diferente. Essa base é a escolha (eleição) de Deus por mim, totalmente à parte de qualquer coisa que eu possa ter feito para merecê-la. O protestantismo é uma negação radical de qualquer tipo de mérito e os evangélicos creem que aqueles que estão mais perto de Deus são aqueles que são mais conscientes de quão desmerecedores eles de fato são. O indivíduo mais espiritual é também o mais humilde, pois ele sabe muito bem que tudo depende da vontade de Deus e de Sua iniciativa. Sugerir o contrário é depreciar a glória de Deus, por mais boa que a intenção possa ser e, por essa razão, não pode haver lugar algum para as obras (ou a jactância a que as obras bem-sucedidas possam levar) em nossa salvação.

Para onde vamos daqui?

A partir disso, ficará claro que o protestantismo evangélico não pode ser considerado como uma forma inadequada de cristianismo. Ao contrário, seria melhor dizer que ele é o entendimento teológico mais plenamente desenvolvido de nossa fé que já surgiu. Isso não significa que ninguém entendeu a obra do Espírito Santo antes do século dezesseis ou que é preciso ser um evangélico de carteirinha para ser salvo. Sempre houve muitos cristãos fiéis que não entenderam essas questões com tal profundidade, mas que, não obstante, experimentaram a graça salvadora de Deus em suas vidas. O conhecimento é algo maravilhoso – pelo que devemos ser eternamente gratos –, mas ele não é a base na qual somos salvos e até mesmo o crente mais esclarecido ainda tem muito a aprender. Pode muito bem ser que a igreja passe por mais convulsões no futuro na medida em que é chamada a desenvolver as implicações de seus ensinos em áreas que até agora permanecem escondidas de nossos olhos e as gerações futuras possam olhar para nós e se perguntarem se entendemos alguma coisa sobre aquilo que no momento nos é desconhecido. Pode ser que eles concluam que não entendemos, mas estarão errados se, por esse motivo, nos negarem o nome de cristãos. Do mesmo modo, devemos ser cuidadosos em não pronunciar juízo sobre as gerações anteriores que não partilharam do nosso entendimento do evangelho em cada detalhe. Por exemplo, quando olhamos para um gigante da fé como Agostinho, imediatamente reconhecemos nele um irmão de fé e vemos nossa experiência de graça refletida na sua experiência – embora também saibamos que ele não explicou a expiação substitutiva penal da maneira como explicamos. Permanece uma pergunta sem resposta se Agostinho teria feito isso, caso a oportunidade para tal surgisse, da mesma forma como não podemos dizer, hoje, como trataríamos uma controvérsia futura da qual não temos conhecimento.

O que importa aqui é que devemos chegar a uma disposição comum, uma vez que a questão foi levantada. Em sã consciência, devo dizer que um católico romano que não aceita a doutrina protestante da justificação pela fé somente possui uma compreensão inadequada do verdadeiro significado do cristianismo do Novo Testamento. Isso não significa que tal pessoa não possa ser um cristão, mas os evangélicos de toda parte desejarão que ela chegue a um entendimento mais profundo de sua fé. Isto não é porque queremos que ela se torne um protestante, mas porque queremos que ela chegue mais perto de Deus. Se ela vai deixar a Igreja Católica Romana depois ou não é com ela, embora muitos evangélicos atestem, a partir de experiência pessoal, que pessoas que passam a experimentar a graça de Deus à maneira evangélica consideram cada vez mais difícil permanecer na comunhão romana. Isso não é meramente porque Roma falhou em entender a que o Protestantismo se resume, mas porque ela é efetivamente oposta a ele. Falhar em entender o evangelho evangélico é uma coisa, mas rejeitá-lo conscientemente é outra completamente diferente.

A tragédia da Reforma não é que Lutero e seus seguidores dividem a igreja – isso foi a última coisa que eles queriam fazer –, mas que muitas partes da igreja foram relutantes em apreciar a importância do que ele descobriu. Entende-se: afinal de contas, é difícil apreender a importância de novas ideias quando a ouvimos pela primeira vez. Mas, após tantos séculos de igrejas e sociedades protestantes estarem na vanguarda do desenvolvimento humano de modo geral, dificilmente podemos negar que Lutero tinha algo a dizer e que todos os cristãos precisam ouvir. Rejeitar isso em nome da “tradição” ou “autenticidade” é preferir uma forma interrompida de desenvolvimento teológico que não faz jus à plenitude da revelação bíblica. Aqueles que optam pelo equivalente espiritual do ábaco e rejeitam o computador podem ser descritos de muitas maneiras, tanto positivas como negativas, mas eles não podem razoavelmente ser considerados como cristãos mais completos do que aqueles que partiram para ideias mais altas!

Tendo dito isto, devemos aceitar que cristãos evangélicos podem aprender muita coisa de outras tradições e a importância da disciplina eclesiástica é uma delas. A causa de Cristo não é cumprida quando seus servos ordenados a negam e é questão de urgência que encontremos modos de lidar com isso. Nunca nos esqueçamos que é esta fraqueza, tanto quanto qualquer outra, que atrai alguns de nossas fileiras para formas mais autoritárias, mas também mais logicamente consistentes de cristianismo. É bem verdade que é difícil manter a primazia de uma fé interna e sincera e impor a disciplina eclesiástica ao mesmo tempo porque sempre é possível supor que, por mais equivocada que uma pessoa possa estar sobre algo que ela diga ou faça, “seu coração está no lugar certo”. Isso pode ser verdade, pelo menos em alguns casos, e é precisamente por essa razão que devemos respeitar a liberdade de consciência e expressão de uma pessoa. Não se trata de “caça à heresia” no sentido tradicional, mas de credibilidade eclesiástica. É esperado um padrão mais alto daqueles que são licenciados para ensinar e não podemos aceitar levianamente uma situação na qual nossos porta-vozes oficiais traiam sua fé – muitas vezes, de forma bastante consciente e sem remorsos. Antes de atirar pedras em Roma (ou em qualquer outra), devemos colocar nossa própria casa em ordem, para que aqueles que nos observam possam, pelo menos, ver que praticamos o que pregamos, ainda que discordem de nós. Esse é o desafio que nos está proposto na presente época e é improvável que a atração de Roma (ou das Igrejas Ortodoxas) diminua significativamente até que aprendamos a como lidar com ela.

É improvável que o diálogo entre a Igreja Católica Romana e os evangélicos vá muito longe, pois é um encontro entre duas instituições que são completamente diferentes uma da outra, ainda que haja pontos de compatibilidade. O catolicismo romano é uma igreja altamente organizada, com uma estrutura de comando central. Por outro lado, isso significa que ela pode tornar-se uma instituição evangélica amanhã se o Papa decretasse. Mas, por outro lado, isso também significa que nada acontecerá oficialmente até que ele decrete, e é pouco provável que isso se dê em breve.

Os evangélicos, em comparação, são um grupo diverso sem uma unidade institucional ou porta-voz oficial. Ainda que a maioria deles fosse chegar a um acordo sobre uma reunião com o Papa, mesmo assim isso só aconteceria um passo de cada vez. Como temos visto acontecer com os diálogos mais recentes, sempre haverá dissidentes e muitos dos envolvidos na discussão não darão lugar a Roma em alguma forma de reconciliação – eles não veem qualquer necessidade de fazer isso e muitos deles continuam crendo que Roma é uma igreja sem reforma que não é satisfatória em sua forma atual. O máximo que pode ser realisticamente esperado é que evangélicos e católicos cooperem mais em áreas (trabalho de assistência e obras sociais, estudo acadêmico etc.) em que possam e aprendam a respeitar uns aos outros mais do que fazem no momento. Reconciliação (se é que será possível um dia) é um caminho muito longe e aqueles evangélicos que sentem que seus irmãos que entraram em diálogo com católicos romanos venderam seus direitos de primogenitura por um prato de lentilhas, podem ficar tranquilos. O que estamos engajados é num derramamento de amor cristão, que é uma afirmação, não uma capitulação da verdade cristã. Aqueles que amam a verdade andam na luz, e não precisam ter medo de perder de vista Aquele que é a Luz do mundo. Nessa Luz veremos o caminho a seguir, qualquer que seja a forma que nossas futuras relações ecumênicas assumirão.

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[1] Ironicamente, a maioria dos protestantes que mais se preocupa com missões hoje também tendem a ser aqueles que são mais os desconfiados com o movimento ecumênico!

[2] Nesse aspecto, Roma é muito diferente das igrejas ortodoxas, as quais normalmente têm resistido a qualquer forma de modernização. 

[3] Isso acontece muito frequentemente com a Igreja Ortodoxa, que está ligada à tradução Septuaginta (Grego) do Antigo Testamento e ao assim chamado Texto Bizantino ou eclesiástico do Novo Testamento, o que lhes dificulta aceitar traduções baseadas nas edições críticas modernas.

[4] Muitos católicos romanos conservadores consideram todas as liturgias modernas e vernaculares – para não falar dos hinos e coros – como protestantismo sorrateiro.

[5] Isso é verdade inclusive entre países tradicionalmente conservadores como a Irlanda. Fintan O’Toole, que escreve para o Irish Times, disse recentemente que os católicos irlandeses agora se tornaram “protestantes” em seu modo de pensar, pois não estão mais preparados para seguir os ensinos morais da igreja sem reflexão. Isso pode não ser o que um protestante pensa de um “protestantismo”, mas tampouco é o que a Igreja Católica tradicionalmente tem esperado do seu rebanho.

[6] Professores de universidades católicas, por exemplo. Foi sua falha em ficar em linha com a infalibilidade papal que acarretou na destituição do cargo de Hans Kung em 1979. Ele manteve sua cátedra, mas não foi mais considerado como oficialmente “católico”.

[7] Na tradição anglicana, por exemplo, tem havido muitas evasões, especialmente nos Estados Unidos. Mas com muita frequência esses grupos são mais unidos no que eles divergem do que no que eles afirmam, e muitos têm achado difícil (ou impossível) trabalhar juntos.

[8] É relativamente fácil contrastar o melhor no catolicismo romano (ou na Igreja Ortodoxa) com o pior no protestantismo (evangélico) e concluir que o primeiro é superior. Mas qualquer um que viveu em um ambiente católico romano ou da Igreja Ortodoxa sabe que a grama não é mais verde em seu lado do quintal.

[9] Scott Hahn. Rome Sweet Home (Fort Collins, CO: Ignatius Press 1994). 

[10] Isto ainda é verdadeiro hoje. Grupos como as Testemunhas de Jeová não são considerados cristãos, principalmente porque negam a Trindade.

[11] Existem pessoas que pensam que Jesus era o Pai encarnado e que, portanto, foi o Pai quem morreu na cruz. Eles são chamados de “patripassianos”.

[12] Hoje, a Igreja Copta do Egito, as igrejas da Etiópia e Armênia e a antiga igreja “Jacobita” da Índia do Sul são todas “monofisistas”.

[13] Os nestorianos eram muito numerosos outrora, mas atualmente têm sido reduzidos a um pequeno número de adeptos no Iraque e em diferentes países de emigração, especialmente os Estados Unidos. Eles são, por vezes, chamados de “assírios”.

[14] Epistle, 101.

[15] Este foi o título da grande obra de Anselmo sobre o assunto: Cur Deus homo?

[16] Anselmo, na realidade, envolveu-se nisto quando estava exilado na Itália (1098). Ele escreveu um tratado sobre o assunto que surgiu de um debate que ele teve com o clero grego em Bari e que permanece sendo uma das mais importantes declarações do tema a partir de uma perspectiva ocidental. Uma nova tradução apareceu recentemente em G. R. Evans, ed., Anselm of Canterbury. The Major Works (Oxford 1998).

[17] Aqueles que estão interessados devem ver meu artigo “The Filioque clause in history and theology”, no Tyndale Bulletin XXXIV (1983) pp 94-144.

[18] Esta comparação não é nova – Lutero viu com muita clareza que a Igreja Romana era um tipo de judaísmo em comparação com seu próprio entendimento da doutrina cristã.

Traduzido por Leonardo Bruno Galdino e revisado por Jonathan Silveira.

Texto original: Was the Reformation a Tragedy? Church Society.

Gerald Bray é professor de Teologia da Beeson Divinity School, da Universidade de Samford, de Birmingham (Alabama, EUA). É o editor responsável pela Série Teologia Cristã da Editora Cultura Cristã, e é um teólogo respeitado internacionalmente, reconhecido pelo pensamento claro e pela lógica incisiva. Seus muitos livros incluem Quem é Jesus (Shedd Publicações) e A doutrina de Deus (Editora Cultura Cristã).
De alcance abrangente, de tom ecumênico, de confissão ortodoxa, e de visão perspicaz de capa a capa, esta obra estabelece novo padrão para obras de eclesiologia. A ternura do Dr. Bray em relação à igreja exala em cada página, tornando o livro espiritualmente enriquecedor e intelectualmente informativo. Parte história, parte teologia, e parte sabedoria prescritiva de um membro de igreja experiente – esta obra é completa. Creio que será referência clássica para uma síntese da eclesiologia protestante.

Bryan Litfin, Instituto Bíblico Moody

Publicado por Shedd Publicações.

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